Alex Antunes Publicado em 22/09/2008, às 18h45 - Atualizado em 20/02/2013, às 15h05
Estamos no bairro do Morumbi, em São Paulo. Dois dogues alemães devoram pães franceses e recebem borrifos de água com alguma substância que se usa para que eles não mordam os móveis. Ela aparece vestindo corpete e calcinha cor-de-rosa, cinta-liga - um visual burlesco, meio cabaré. Do topo dos saltos e das pernas esguias, a atitude é segura, de modelo. Só o gostinho com que agarra um pequeno chicote (com strass rosa no cabo) e o bate na palma da mão traduz alguma malícia. Ela se troca. Volta toda de negro: outro corpete com calcinha, tudo em couro. As botas, apertadas atrás com cordões, sobem até a coxa - é uma legítima dominatrix. Tainá Müller se coloca sob as luzes. Então ela cresce para a câmera.
Com um único cão na coleira, sua imagem lembra o arcano "A Força", do tarô, aquele em que a mulher segura um leão pela boca (e que o mago Aleister Crowley renomeou como "Luxúria"). Conduzindo os dois cães, ela parece a impetuosa carta "O Carro". Ao lado de Tainá, os dogues se tranqüilizam. Só quando ela se afasta, eles se estranham e são retirados do estúdio, rosnando um para o outro. Sozinha com a câmera, closes vão revelando diferentes personas. Mas não são caras e bocas de modelo. São diferentes sentimentos, da alegria ao deboche, da intriga à tristeza. De trás da modelo emerge a atriz. Ao final da sessão, comento sobre essa expressividade. "Foi o que me disseram em Milão", ela responde, rindo.
Aos 25 anos, a gaúcha Tainá Müller acaba de ganhar os prêmios de melhor atriz com seu filme de estréia, Cão sem Dono, nos festivais de Recife e de Cuiabá. Nada mal para uma (quase) ex-modelo que já era ex-jornalista. "Comecei a trabalhar cedo para pagar minhas festas [risos]. E a carreira de modelo paga minhas contas", explica. "Com 16 anos, me vestia de Picatchu, de Pateta, fazia mágica, teatro em festa infantil - os personagens eram a Tia Batatinha e Tia Moranguinho; às vezes eu era a Batatinha, às vezes a Moranguinho." Mas tinha alguma diferença? "A Batatinha era mais calma, a Moranguinho mais enfezada [risos]. Na verdade, a empresa se chamava Batatinha & Moranguinho [mais risos]." Depois, já na faculdade de jornalismo, Tainá coordenou um núcleo na MTV local. "Escrevia, apresentava e editava minhas matérias só com dois assistentes - trabalhava umas dez horas por dia. No fim do curso, acumulando a TV e os trabalhos de conclusão - minha monografia foi sobre a cobertura dos blogs durante a Guerra no Iraque! -, estava no limite da resistência. Comecei a ficar doente, com bruxismo, psoríase. Aí disse: 'Tem alguma coisa muito errada na minha vida'. Estava jogando minha juventude no lixo."
Durante todo esse tempo, Tainá estava namorando com o escritor Daniel Galera, autor do livro Até o Dia em Que o Cão Morreu, do qual o filme foi adaptado. "O engraçado é que o livro foi escrito quando já estávamos juntos e conta a história de uma modelo. Mas só fui trabalhar com isso um ano depois, em 2004." Alguns detalhes coincidentes entre a personagem de Galera e o que veio a acontecer com sua namorada são notáveis: Até o Dia em Que o Cão Morreu fala do sonho da modelo de ir para Milão (no filme virou Barcelona), para onde Tainá acabou indo. Marcela, a personagem, posa para fotos de pés, como Tainá (que calça número 35, o predileto dos fotógrafos) veio a posar também.
Mas não foi por ser namorada de Daniel que Tainá ingressou no projeto da filmagem. Na verdade, não foi nem como atriz. Ela foi escalada exatamente por sua experiência como modelo e assistente de direção. "Quando fui fazer jornalismo, já estava interessada nas cadeiras de cinema, pois não tinha curso de cinema em Porto Alegre. Depois, trabalhei na Casa de Cinema como assistente do Carlos Gerbase e do Giba Assis Brasil [diretores gaúchos]." É aí que entram em cena os cineastas Beto Brant e Renato Ciasca, de Cão sem Dono. Entre 1997 e 2002, Brant concluiu com Os Matadores, Ação entre Amigos e O Invasor, sua trilogia mais obviamente política. "Filmei a violência rural, a violência política e a violência urbana. Em 1995, quando começamos, vínhamos da ditadura e do período Collor e havia a necessidade de tocar em certos assuntos. Mas o ceticismo de O Invasor me levou ao limite da angústia", conta Brant, "e então o Marco Ricca me desafiou a fazer Crime Delicado [2005]".
Essa adaptação da obra de Sérgio Santana foi o início de um ciclo mais intimista, no qual Cão sem Dono é o segundo passo - e esse modo deve continuar no próximo filme, baseado no livro Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, de Marçal Aquino. "Depois do Crime, Brant queria uma história de amor pequena e contemporânea", conta seu roteirista Marçal Aquino, que indicou o livro de Daniel Galera. "Estava bem no meio da escrita da história que será o próximo filme. Já gostava muito do Galera, conhecia-o pessoalmente e sugeri que adaptássemos Até o Dia em Que o Cão Morreu. Depois de escrever o roteiro, fiquei doente e me afastei um tempo. E aí tive a surpresa de saber que a atriz seria a Tainá. Se bem que, vindo do Beto, uma escalação inusitada de ator nunca é propriamente uma surpresa [risos]." Renato Ciasca, que trabalhou em todos os longas de Brant como produtor e assumiu a co-direção neste, explica o método de trabalho do time: "Eu, o Beto e a [produtora] Bianca Villar fomos escolher o elenco em Porto Alegre. No primeiro momento, costumamos fazer entrevistas com os atores e não testes de câmera. A Tainá ainda era nossa assistente - e as melhores perguntas nas entrevistas eram dela. Ela era muito mais bonita do que as outras e sabia muito mais do que nós do assunto [risos]". Tainá continua: "Estava me sentindo um fracasso em não conseguir a mulher que eles queriam!. Entrevistamos várias meninas que eu achava que tinham a ver e eles não gostavam. Aí eu perguntava: 'Mas que mulher é essa?'. E eles: 'Uma mulher como você... [risos]'" Em algum momento tinha que cair a ficha.
Na verdade, a responsabilidade do elenco viria a ser grande, maior do que a habitual. Cão sem Dono foi filmado como uma quase não-história, desacelerada e rarefeita, em que mesmo elementos fortes como doenças e angústias são dores surdas, desdramatizadas, apenas com algumas breves explosões de paixão e desespero. Parece que, a cada filme, Beto Brant faz questão de "desaprender" algum aspecto da narrativa convencional, incorporando uma sutileza quase iraniana ao seu (não)estilo. Diante da câmera contemplativa, na contramão dos truques frenéticos de montagem e efeitos, acabou ficando com o elenco a responsabilidade de sustentar o interesse e a credibilidade do longa. "Este é um filme sobre o espaço privado. O motoboy não aparece andando de moto; a modelo não aparece fotografando; o zelador do prédio na intimidade é um artista plástico", define Brant. "Nesse sentido, Barcelona não é um lugar para onde ela quer ir, para onde se tira passaporte. Barcelona é um estado de espírito."
Pergunto para ele o que o leva a essas escolhas peculiares de elenco - como a de se arriscar em apostas surpreendentes como a (acertadíssima) em Paulo Miklos para o vilão de O Invasor. "Às vezes, a gente não acha o bom ator certo para o papel. E, às vezes, uma pessoa [não ator] está naturalmente mais próxima do personagem. No caso do Invasor, queria essa ambivalência do Paulo [Miklos], que é um demônio no palco e um camarada fora dele", explica Brant, que já tinha dirigido o titã nos clipes de "Nem Sempre Se Pode Ser Deus", "Taxidermia" e "Será Que É Isso Que Eu Necessito?". "Já a Lílian [Taublib, de Crime Delicado] canta, escreve poesia", acrescenta o diretor. Lílian, por sinal, não tem uma perna - como a personagem de Crime - mas, revelada nesse filme, acaba de ser convidada para fazer um outro papel em que sua personagem não é portadora de deficiência. Como no caso de Miklos e Lílian, Brant "criou" mais uma atriz. "É que o poder de convencimento do Beto é grande", goza Aquino. Já a escolha de Tainá nem foi uma invenção tão compulsória. "Nós ainda não sabíamos, mas ela já estava fazendo um curso de atriz em São Paulo", explica Renato. "Assim que começamos as entrevistas em Porto Alegre, a Vanise [Carneiro, produtora de elenco] sugeriu o Julio Andrade de cara. Mas ele nos pareceu alegre demais para o papel [risos]. E a garota também não aparecia. Depois de umas duas ou três semanas, quando definimos a Tainá, a Vanise insistiu em trazer o Julinho de novo para o teste, e então vimos que eles eram o casal."
Julio Andrade, 30, é uma criatura do cinema. Depois de uma estréia no curta Velinhas (1998), com o diretor Gustavo Spolidoro, ele já fez dezenas de curtas e longas gaúchos, como O Homem Que Copiava (2003), Meu Tio Matou Um Cara (2004) e Sal de Prata (2005), além de Batismo de Sangue (2006), do mineiro Helvécio Ratton. E o ator é só elogios tanto para a direção de Beto e Renato quanto para a parceira dramática Tainá. "No cinema, em geral, a parte técnica é tratada como se fosse mais importante. Com eles, depois que a luz e o cenário estão prontos, ainda tem o tempo do ator." Mas, mesmo com toda essa experiência e apoio, pareceu que a coisa não ia decolar. Nas filmagens, Brant segue o roteiro apenas na cabeça, na intenção de cada cena. "Nenhum roteirista consegue tanta naturalidade nos diálogos como conseguimos com este filme. O roteiro é uma receita de bolo; não é 'o' bolo", diz Aquino. "Teve um momento em que chegamos a fazer oito ou dez vezes a mesma cena. Não é que a gente buscava a perfeição", apressa-se em esclarecer Julio, "mas tratava-se de encontrar 'a cena boa' para a câmera, que ficava lá rodando, registrando toda a pré-produção. Se alguém quisesse mijar, a câmera ia atrás [risos]".
Só que algo na química entre o casal principal não estava funcionando bem. É que, na transposição da literatura para o cinema, houve uma sutil mudança de um livro "de menino" para um filme "de menina". Na história escrita, é mais a teimosia do personagem masculino que transforma a atitude da moça (e, por extensão, a vida dos dois). No filme, é a mera presença (ou ausência) da moça que transforma a atitude do cara diante da vida (e a vida dos dois). Foi Tainá quem melhor captou e expressou essa mudança na "hierarquia" da história. "A Tainá é uma menina muito inteligente, que sabe o que quer. Quando eu estava perdido, foi ela que me ajudou", reconhece Julio. "Eu apenas disse 'te empresta mais para o personagem' para o Julio; ele não conseguia ficar naquele personagem tão seco do livro." É curioso como mesmo quando desaparece da história por um tempo, durante o terço final do filme, é ela que continua a comandar os desdobramentos.
Em 2004, quando resolveu seguir a sugestão de um amigo e procurar uma agência de modelos, apesar da altura (1,70 m) e da idade avançada (21 anos), ainda trabalhando na MTV, Tainá recebeu da sua booker um telefonema que iria mudar tudo: "Pega um biquíni que nós vamos fazer uma polaróide. Nem vou te falar o que é para você não criar expectativa". Era uma viagem para a Tailândia, onde Tainá ficou durante três meses e emendou com mais três na China, na cidade de Guang Zhou. "Na China, a gente trabalha por hora. E eles querem fazer um catálogo com 200 peças em quatro horas - a orelha chega a doer de tanto trocar de roupa [risos]. E ainda descontam o tempo que a gente passa no banheiro." A experiência ficava entre o constrangedor e o engraçado. "Perdi os pudores na carreira de modelo. Na inauguração de um shopping de Bangcoc, fiz vitrine viva, com peruca, biquíni de bolinha verde e batom vermelhão, toda pintada de preto, com o prefeito dando entrevista na frente da vitrine."
- Pintada de preto? Mas você fez uma "nega maluca"... na Tailândia?
"Sei lá. Impossível entender a idéia que eles tinham" [gargalhando]. E a experiência, às vezes, ficava mais estranha. "Fiquei em um hotel que só tinha modelos, boxeadores e prostitutas. No 2º andar, tinha um prostíbulo. Uma amiga minha disse pra eu ir lá e aproveitar a massagem tailandesa... Epa. 'Não', minha amiga explicou, 'elas fazem só massagem também'. Então fui lá e expliquei para o atendente que queria uma massagem. Ele me levou até um aquário cheio de mulheres e disse: 'Choose one'. Insisti que queria só uma massagem, e ele: 'Ok, choose one'. Escolhi a moça mais limpinha [risos], ela me levou para uma sala onde limpou meus pés e depois fomos para um quartinho com uma cama de casal e TV. Ela ligou a TV em um programa de auditório e começou a rir muito, enquanto andava em cima de mim e me puxava... Ei, se você for colocar essa coisa de 'mais limpinha' na matéria, explica que é piada, tá?", diz ela, gargalhando, "senão vão me achar cafajeste".
O fato é que, depois de dois meses no Brasil, após a experiência na Ásia, Tainá emendou com uma temporada em Milão. E, para surpresa dela, apesar de alguns momentos divertidos, como protagonizar um clipe do grupo Gemilli Diversi ("Tipo um CPM 22 de lá", diz ela, rindo), a satisfação com a profissão não se confirmou. "Além de o trabalho ser puxado, você vai ficando endividada com os custos de hospedagem, esse tipo de coisa."
Estava encerrada a carreira de modelo internacional. Depois de uma fuga para as montanhas em um fim de semana, ela decidiu: "Acho que vou voltar para o Brasil... e ser atriz. Vim para São Paulo como modelo, mas fui estudar no curso de interpretação da Fátima Toledo. Fiz um papel na peça Ovelhas que Voam Se Perdem no Céu [dirigida por Mário Bortolotto], participo do grupo de estudos do Tapa", conta ela, "agora sou atriz com DRT e tudo" [risos], brincando com o registro de ator profissional. "Tainá tem espontaneidade e uma boa cabeça. Se não ficar deslumbrada com essa coisa de prêmios, ela vai longe", diz o sempre controverso Bortolotto. Você corre esse risco, Tainá? "O poder é ver a realidade como ela é - mas não deixar que atrapalhe o desejo", decreta ela.
Em premiações, entrevistas, sessões de foto, capas de revista, Tainá Müller chama a atenção. Talvez porque seja uma mulher ao mesmo tempo tão real e tão distante dos clichês complementares que vêm sendo servidos com fartura na cultura brasileira: a loira consumível do anúncio de cerveja e a matriarca cheia de autoridade. Ela não é uma coisa nem outra. "O poder da mulher não é o poder da cabeça, e nem o poder da boceta. É o poder do útero. O mundo é hipertexto, e a mulher pensa em hipertexto. Já o homem é funcionário [risos]. Mas o Brasil é patriarcal, atrasado. No Rio Grande do Sul, ainda rola muita faca na bota [mais risos]. A minha escolha é outra: sou uma modelo, poso de biquíni. Sou meio objeto, mas ao mesmo tempo me expresso, sou atriz, tenho uma voz." Era o que Beto Brant procurava, para além do lugar-comum: "Entre as modelos, existem umas tremendas guerreiras - não esse clichê da futilidade. A Tainá é essa mulher bacana, linda, inteligente. E se entregou sem medo, se abriu para o filme". Pergunto para Brant se ele se surpreendeu que Cão sem Dono acabou se tornando um veículo para Tainá, mais do que para os outros envolvidos. Brant faz que não porque ele sabe que ela é uma estrela. Simples assim.
Alex Antunes escreveu a matéria "A Reencarnação do Zé", sobre o novo filme do cineasta José Mojica Marins, na RS 03 (dez 06).
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