O Führer o queria jogando pela Alemanha, mas o artilheiro, conhecido como “Pelé do Danúbio”, preferiu a morte
Edgardo Martolio Publicado em 26/02/2014, às 13h28 - Atualizado às 13h38
No dia 12 de março de 1938, apenas três meses antes do início da Copa do Mundo da França, as tropas nazistas de Adolf Hitler invadiram a Áustria para anexar o país à Alemanha. Em quatro semanas, transformaram a jovem república parlamentarista em mais uma província do implacável Terceiro Reich. Entre as muitas intenções dessa investida, Hitler tinha uma futebolística e bem curiosa: emular Benito Mussolini, o ditador italiano e agora aliado dele na Segunda Guerra Mundial, que, em 1934, conquistou o principal troféu do futebol mundial.
Mussolini contou com uma vantagem: a Copa de 1934 foi disputada em sua própria casa, na Itália. Pouco elegante e muito ameaçador, o Duce não teve grandes problemas em conseguir o que desejava, até porque montou uma grande seleção internacional (além dos italianos, que já eram craques, recrutou cinco argentinos vice-campeões mundiais em 1930 e um brasileiro, Filô). Hitler, por outro lado, não hospedava o torneio na Alemanha nem contava com uma grande equipe. Imitando Mussolini, decidiu reforçar o selecionado alemão com o melhor do que havia na Europa na década: os austríacos do chamado Wunderteam (na tradução, “equipe fantástica”). Assim, invadiu e anexou a Áustria e pensou ter solucionado tudo. Ou nem tanto.
Nascia então uma história comovente protagonizada pelo maior jogador austríaco da história e um dos melhores de todos os tempos, Matthias Sindelar. Apelidado “Paperman” (homem de papel) ou “Papierene” (bailarino de papel) por sua leveza – media 1,75 m e pesava 63 kg –, Sindelar era letal com a bola nos pés e parecia voar em campo, exibindo movimentos ágeis e elegantes. Ao contrário de outros de seus companheiros, ele se recusou a ser alemão e rechaçou a ordem de defender a camisa da seleção da Alemanha. Não há relato de maior coragem e respeitabilidade na história do futebol que a desse atacante pouco lembrado nos dias de hoje, que pagou com a vida a negativa de cumprir ordens do maior criminoso da história da humanidade.
De humilde família judia de origem tcheca, Matthias Sindelar nasceu em 1903 na pequena Kozlau, antiga Morávia, mas logo se mudou para Viena – então no Império austro-húngaro. Foi criado pela mãe, a quem ajudou trabalhando como serralheiro (com 14 anos, perdeu o pai na frente de batalha da Primeira Guerra Mundial). Habilidoso com a bola desde cedo, logo chamou a atenção do clube Hertha, e não demorou a defender as cores do mais bem cotado FK Austria Vienna.
O regime nazista tinha um grupo de especialistas observando a seleção da Áustria desde a Copa de 1934, quando derrotou a França e a Hungria (só não conquistaram o título porque caíram diante da Itália na semifinal, em uma partida polêmica; curiosamente, nos Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, a Itália voltou a vencer a Áustria, sem a presença de Sindelar e, também, em jogo duvidoso). Antes desse Mundial, o time austríaco viveu a melhor fase de sua história, goleando a Alemanha por 5 x 0 e 6 x 0, a Suíça por 6 x 0, a Escócia por 5 x 0 (primeira derrota escocesa para uma seleção de fora da Grã-Bretanha) e a grande rival Hungria por 8 x 2, com três tentos de Sindelar.
Setenta e duas horas após a invasão da Áustria, Hitler já havia solicitado que oito dos craques do Wunderteam se colocassem às ordens do treinador Sepp Herberger, a começar por Sindelar. A seleção austríaca já se encontrava psicologicamente golpeada pela morte de seu grande treinador, Hugo Meisl, um ano antes, em 1937. Meisl é o treinador que declarou a famosa frase “prefiro jogar com dez a incluir um perna de pau”. Mesmo assim, a Áustria era a principal candidata a vencer a terceira Copa do Mundo, para a qual já estava classificada.
Ao lado dos “Mágicos Magiares”, como ficou famosa a seleção da Hungria de Puskas, Kocsis, Hidegkuti e Czibor, os austríacos do Wunderteam constituíram a chamada “Escola do Danúbio”. O nome foi dado porque ambas as seleções encarnavam um modo especial de jogar futebol, com técnica individual e tática de conjunto desconhecidas até então, e porque mostravam essa arte principalmente em gramados de Viena e Budapeste, capitais banhadas pelas águas do segundo maior rio da Europa, depois do Volga. Hitler nunca entendeu por que os atletas alemães não jogavam dessa maneira se o Danúbio nasce na Alemanha, na Floresta Negra, na união dos rios Brigach e Breg. Quase invencível, o Wunderteam sofreu apenas quatro derrotas em 54 partidas, até o regime nazista interromper bruscamente a trajetória vitoriosa.
Hitler resolveu celebrar a anexação da Áustria com uma disputa entre a Alemanha nazista e o Wunderteam, que faria assim seu último jogo como tal – a partida foi marcada para menos de um mês após a invasão e dois meses antes da Copa de 1938, em 3 de abril. O Führer, obviamente, fazia questão de uma vitória alemã. Entretanto, Sindelar jogou brilhantemente, e chamou a atenção pelo exagero na comemoração de seu gol, o primeiro do jogo, celebrando-o de modo extravagante frente ao palco das autoridades nazistas e zombando dos militares presentes. Se para Hitler foi difícil assimilar a “traição” austríaca e a derrota por 2 x 0, foi impossível aceitar a provocação de um atleta de “raça inferior”. Sindelar não sabia ainda, mas aquele seria seu último jogo oficial.
Joseph Goebbels, ministro da Propaganda do nazista, disse a Sindelar que a ofensa seria esquecida se ele defendesse a Alemanha na Copa da França e o time germânico conquistasse o primeiro lugar. Imediatamente, o austríaco se recusou a jogar para os invasores, declarando-se “gravemente machucado”, a tal ponto que anunciou oficialmente que estava se “aposentando do futebol de alta competência”. Se o dia do jogo escreveu seu certificado de morte, com essa decisão Sindelar praticamente perdeu as chances de ser perdoado. Um colega de equipe e membro sigiloso do Partido Nazista, cujo nome nunca foi confirmado, delatou Sindelar, revelando que se tratava de uma farsa dele para não se dobrar ante a Alemanha. Hitler, transformando o atleta rebelde literalmente em um bandido, decretou: “Sindelar não pode jogar futebol nem atravessar as fronteiras”. Em paralelo, o Führer demonstrou compreender a mensagem de Sindelar e de outros três jogadores (Josef Bican, Peter Platzer e Karl Zischek), convocando para o Mundial quatro dos oito austríacos – apenas os que “eram fiéis à cruz suástica”: Josef Stroh, Rudolf Raftl, Johann Mock e Franz Wagner. Outros, como o artilheiro Horvath, foram considerados velhos para jogar um Mundial.
A vaga da Áustria não foi ocupada na Copa, que começou com um país a menos. A Fifa chegou a convidar a Inglaterra para substituí-la, mas os britânicos não aceitaram a proposta. Logo na estreia no torneio, a Alemanha, com os austríacos Stroth, Mock e o goleiro Raftl em campo, não conseguiu superar a Suíça ante mais de 20 mil espectadores (o jogo e a prorrogação terminaram em 1 x 1; no desempate, cinco dias depois, a Suíça ganhou por 4 x 2). Assim como a anterior, essa Copa foi disputada no sistema de mata-mata. Ou seja: a poderosa Alemanha de Hitler acabou eliminada de cara, logo no primeiro desafio.
Os clubes onde Matthias Sindelar ganhou status de ídolo foram proibidos de atuar, alguns amigos do craque começaram a ser perseguidos e ele mesmo aceitou não mais jogar bola: abriu uma cafeteria, onde os nazistas lhe criavam problemas todas as semanas. Apesar disso, a raiva de Hitler só terminou de se expressar seis meses mais tarde: em 22 de janeiro de 1939, os bombeiros de Viena encontraram o corpo do craque ao lado da companheira dele, a italiana Camilla Castagnola, supostamente sufocados por um vazamento de gás. O “Pelé do Danúbio” tinha 35 anos.
De acordo com o relatório oficial, o casal cometeu suicídio, “por causa da pressão desumana que Sindelar sofreu da Gestapo”, segundo a imprensa local. Crônicas da época relatam que “na sede do clube FK Austria Vienna chegaram 15 mil telegramas de condolências, e o funeral foi assistido por 40 mil pessoas sob a ameaça da suástica”. Sindelar foi enterrado no mesmo cemitério vienense onde descansam os restos mortais de compositores como Brahms, Beethoven, Strauss e Schubert, com direito a discurso do presidente do clube, Michael Schwärs, com palavras que ainda hoje arrepiam: “Com Matthias Sindelar morre uma parte da Áustria”. Anos mais tarde, em um tributo lógico, a Rua Laaerberg, onde o craque viveu e morreu, passou a se chamar Sindelarstrasse.
Sim, Hitler imortalizou Sindelar.
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