Seis anos após sua morte, Stieg Larsson se tornou o autor mais vendido do mundo – e o mais enigmático. A vida dele se transformou em mito: será que ele foi assassinado? Ele era um espião? Existia mesmo uma garota com tatuagem de dragão?
Por Nathaniel Rich/ Tradução: J.M. Trevisan Publicado em 11/05/2011, às 16h16 - Atualizado em 19/03/2012, às 16h13
O escritório da publicação antirracismo Expo fica no último dos sete andares de um prédio comercial no bairro classe média de Fridhemsplan. É um edifício cinza em uma travessa cinza em uma parte cinza de Estocolmo. Stieg Larsson o escolheu por isso. Nos dez anos desde que cofundou a revista antirracismo, ele e sua equipe haviam sido perseguidos, o escritório de sua gráfica vandalizado e a polícia descobriu fotos de Larsson e sua namorada em posse de um violento grupo neonazista. Ele precisava de um local que não pudesse ser encontrado com facilidade. O nome Expo não é visto em lugar algum da recepção. Ao lado da campainha para o sétimo andar há um único nome: "Larsson". Na tarde de 9 de novembro de 2004, Larsson e um amigo entraram na recepção. Como de costume, ele estava com pressa. Tinha de terminar a próxima edição da Expo e o fim do prazo para um livro curto sobre a ascensão do neonazismo na Suécia se aproximava. E recentemente havia recebido uma notícia que mudaria a vida dele: uma trilogia que ele havia escrito (de uma vez só, em um período intenso de dois anos) havia sido vendida para uma editora, e, no dia anterior, ele havia se reunido com um produtor para discutir a possibilidade de um contrato cinematográfico. A série de livros, que Larsson chamou de Millenium, era um híbrido de fantasia sexual e thriller político-policial, estrelando um jornalista investigativo e uma hacker cyberpunk fria e libidinosa chamada Lisbeth Salander, que tinha uma tatuagem de dragão no ombro e dúzias de piercings pelo corpo. Ela tem poderes quase mágicos: sobrevive à violência sexual sádica, a um tiro à queima roupa na cabeça e à prosa devastadora. "Em uma época de grande perigo", escreveu Larsson, ela permanece "fria, calma e controlada".
O próprio Larsson era tudo, menos calmo. Naquele dia, estava mais pálido que o normal. Ele nunca se exercitava, sobrevivendo à base de uma dieta de fast-food e cigarros - cerca de 60 por dia. "Você não parece bem", observou o amigo. Larsson apertou impaciente o botão do elevador, mas ele não chegava. "Não tenho tempo para isso", disse. E seguiu para as escadas. Na altura do sétimo andar, suava muito e respirava com dificuldades. Enquanto Larsson desabava em uma cadeira na mesa de reuniões da Expo, o editor de fotografia da revista correu para ver se ele estava bem. Larsson colocou a mão no coração. Não conseguia falar. "Stieg, estou aqui", disse o editor. "Estamos cuidando de tudo. Aguente firme." Larsson pareceu ouvi-lo, mas então desabou, com a cabeça caindo sobre a mesa. Quando os paramédicos chegaram, o elevador já funcionava. Colocaram uma máscara de oxigênio no rosto de Larsson e levaram-no para a ambulância. "Quantos anos ele tem?", perguntou um dos paramédicos. "Tenho 50, droga", resmungou o escritor, através da máscara. Com isso, não estava dizendo que era jovem demais para morrer, ou jovem demais para ter um ataque do coração. O que ele queria dizer era: não tenho tempo para isso.
Stieg Larsson sonhava em ser escritor, mas mesmo ele não imaginava que Os Homens que Não Amavam as Mulheres (e suas duas continuações) o tornaria o autor mais vendido do mundo. Os livros já venderam 48 milhões de cópias, em 46 países. Nos Estados Unidos, a trilogia vendeu mais de 13 milhões de cópias só em 2010 - uma quantia mais ou menos igual às vendas dos livros mais recentes de John Grisham, Dan Brown, Stephenie Meyer e Stephen King juntas. No Brasil, foram quase 331 mil cópias vendidas da trilogia, entre as duas versões publicadas pela Companhia das Letras (uma normal e outra econômica, de preço reduzido).
No meio disso tudo, o autor foi parar em meio a uma mitologia pessoal: as histórias sobre ele aumentaram em extravagância na mesma proporção das vendas. Algumas falam em um suposto interrogatório nas mãos de agentes da inteligência militar e sobre sua aversão a profissionais de medicina, como a que tinha Elvis Presley (segundo um amigo, Larsson se consultava com um bruxo africano). Há acusações de que ele nem teria escrito os livros, de que teria sido envenenado por nazistas, que não teria morrido de ataque cardíaco, mas sim encenado a própria morte. Há boatos sobre um quarto livro Millenium ainda inédito (a namorada de Larsson confirma, mas diz que concluir o texto inacabado seria como "tentar completar um quadro de Picasso" e que, assim, jamais permitirá que seja publicado). E há especulações malucas sobre a existência de uma Lisbeth Salander, a heroína dos livros, na vida real.
O patrimônio de Larsson, enquanto isso, ficou enredado em uma saga pública que colocou sua namorada de 32 anos, Eva Gabrielsson, contra a família do escritor. Uma vez que Larsson nunca assinou um testamento e não chegou a se casar com Eva, a fortuna póstuma foi herdada pelo irmão e o pai dele. Os Larsson ofereceram US$ 2,6 millhões à namorada; ela recusou. Não está claro o que ela quer. "Acho que Eva quer ser a vítima", diz Joakim, irmão de Stieg. "Sentimos muito por isso. É triste, sabe." Erland, pai de Stieg, acrescenta: "É um meio de fazer com que as pessoas tenham pena dela e a amem". A disputa pelo dinheiro atraiu a atenção da imprensa sueca, com os dois lados se saindo mal. A família não gastou quase nada do dinheiro de Larsson. Joakim tira um salário de cerca de US$ 3.500 por mês, e o único sinal exterior que Erland exibe de sua riqueza sãos as luvas marrons de camurça que usa quando dirige seu Kia, mas a família foi demonizada por excluir Eva. "Na Suécia, somos vistos como parentes gananciosos e brutais", diz Erland. "Temos uma reputação muito ruim." Já Eva parou de dar entrevistas. "Estou cansada de negar coisas sobre Stieg, sobre mim e sobre o que aconteceu depois que ele morreu", ela conta por e-mail. "Por conta disso, escrevi um livro sobre o assunto, e espero que seja o fim de todas as mentiras e especulações."
Como todas as mitologias modernas, o mundo de Stieg Larsson se transformou em uma indústria. A família, os editores e ex-companheiros de trabalho agora passam a maior parte de tempo falando com a multidão de jornalistas que vai à Suécia esperando desvendar os vários mistérios que cercam o autor e seus livros. "Estou exausta", diz a editora de Larsson, Eva Gedin, que tem pacientemente dado entrevistas a centenas de jornalistas. "Não consigo continuar desse jeito." Anna-Lena Lodenius, que coescreveu com Larsson um livro sobre a extrema direita, diz: "Frequentemente penso que, depois que eu morrer, só serei lembrada por ter conhecido Stieg Larsson". Para Kurdo Baksi, ex-publisher da Expo, a quem Larsson chamava de "irmão mais novo" falar sobre o amigo se tornou um trabalho em tempo integral. Ele foi o primeiro a publicar um livro sobre o escritor (Stieg Larsson: Our Days in Stockholm), e dá uma média de 20 entrevistas por semana.
"Acho que ele faria o mesmo por mim se estivesse vivo", diz Baksi.
"Quero dizer, se eu tivesse morrido, publicado três livros e fosse muito, muito famoso."
Como aqueles que me precederam, encontro-me com todas as pessoas que eram mais próximas a Larsson. Escuto diligentemente suas histórias, mapeando as oscilações entre o protocolar bem ensaiado e o extraordinariamente fantasioso. Mas é só quando encontro Therese Larsson, a sobrinha de 26 anos do autor, que as coisas começam a fazer sentido. A morte do tio foi devastadora para ela, e, com exceção de uns poucos jornais suecos locais, ela tem evitado falar com a imprensa. Mas tem ficado cada vez mais perturbada por ele ter se tornado um ser mitológico. "O que leio nos jornais... não é ele", diz, no escritório de seus pais. "Esse não é o Stieg."
Larsson não era filho único, mas por boa parte de sua infância viveu como um. Os pais dele se conheceram quando eram adolescentes, em uma festa ao ar livre no verão de 1953, em Skelleftehamn, uma pequena cidade a 800 km ao norte de Estocolmo. O pai estava em licença do exército. Vivianne era a filha de um operário. No ano seguinte, Karl Stig-Erland Larsson nasceu em Skelleftehamn, cuja população era de três mil pessoas. Quando Stieg ainda era bebê, Vivianne e Erland se mudaram para Estocolmo na esperança de arrumar empregos, deixando o filho para trás com os pais dela. Ele cresceu em Bjursele, uma vila de apenas 60 habitantes. Quando garoto, morou na cabana dos avós na floresta. Na época, ainda valia uma antiga lei sueca que barrava as crianças de frequentarem a escola antes de atingirem os 7 anos. Criada um século antes, a intenção da lei era proteger meninos e meninas pequenas de serem devoradas por lobos no caminho até a escola. Assim, ele cresceu cercado de árvores, sem escola, sem televisão - só com livros. Amava histórias de detetive, especialmente a série de Astrid Lindgren sobre o garoto detetive Kalle Blomkvist. O avô Severin era também fonte de fascínio constante. Ele tinha se oposto aos nazistas durante a Segunda Guerra e sido um comunista convicto a vida toda; Larsson mais tarde viria a publicar tratados políticos em publicações trotskistas sob o pseudônimo "Severin".
Stieg Larsson logo começaria a criar suas próprias histórias. Quando seus pais e o irmão mais novo, Joakim, o visitavam no Natal, as duas crianças brincavam na floresta, e à noite ele narrava contos elaborados sobre um garoto detetive chamado Joakim Larsson, com títulos como "O Mistério do Assassino na Casa ao Lado". "Eu simplesmente adorava ouvilo", diz Joakim. "Se as histórias eram verdadeiras ou falsas, não importava." Quando Stieg tinha 8 anos, Severin morreu, e o garoto se mudou com a avó para Umeå, onde o resto da família tinha se estabelecido. O pai dele arrumou trabalho em uma loja de roupas, e a mãe conseguiu uma cadeira no conselho municipal; o pai mais tarde viria a trabalhar como ilustrador para um jornal local. Em um minúsculo apartamento de um dormitório, a avó do escritor ficava no sofá enquanto ele e Joakim dormiam em um beliche. Os pais dormiam no corredor, no chão. Perturbado por violentos contratempos e pela morte de Severin, Stieg refugiou-se em suas fantasias.
Na adolescência, Larsson fundou dois fanzines de ficção-científica, contribuindo com histórias, artigos e ilustrações. Como pagamento, os leitores podiam mandar as próprias histórias ou escrever uma carta ao editor. A barreira entre ficção-científica e política sempre foi tênue, mas aqueles eram os anos 70 e o movimento jovem sueco havia atingido o estado de urgência alucinada. A revista regularmente recebia cartas de jovens de esquerda. Havia uma única exceção: um fã chamado Lars-Göran Hedengård, que defendia o presidente norte-americano Richard Nixon apaixonadamente e apoiava a Guerra do Vietnã. Larsson não podia deixar que os comentários passassem sem réplica. A revista logo foi dominada por suas respostas às cartas de Hedengård. Como ficou claro, Hedengård era ativo no movimento pró-fascismo. Larsson estava ciente da existência de grupos intolerantes na Suécia, mas ficou chocado em saber que eles estavam sendo renovados com pessoas da geração dele. Ele se propôs a expor tudo o que pudesse descobrir sobre aquelas pessoas, muitas das quais operavam em segredo. Havia se tornado um detetive.
Rejeitado pela Escola de Jornalismo de Estocolmo e incapaz de conseguir trabalho como repórter, Larsson optou pela tradicional tática dos aspirantes a jornalista: se um jornal não o manda cobrir uma história, ele a encontrará por si próprio. Foi para a África procurando aventura - viajando de ônibus pela Argélia, Marrocos e Quênia. Em uma passagem pela Etiópia, conheceu membros da Frente Popular de Libertação da Eritreia, um grupo separatista marxista, e, mais tarde, contou a amigos que havia treinado uma companhia de mulheres soldados no uso de lançadores de granada - uma história que ele foi aumentando no decorrer dos anos. Seu maior temor - além de contrair malária e desenvolver um problema no fígado - tornou-se realidade em Addis Ababa. Uma mochileira da Nova Zelândia, que Larsson conheceu em um ônibus, contou a oficiais da inteligência militar na embaixada britânica que ele sabia o tipo de armas que os rebeldes etíopes tinham. Larsson foi pego, mas se recusou a responder a qualquer pergunta.
Durante as viagens pela África, ele escreveu artigos, mas os editores suecos não estavam interessados. Voltou para casa sem um tostão e com malária, e foi forçado a aceitar um emprego de carregador de pacotes no correio de Estocolmo. Um amigo, tocado pela situação, acabou ficando com pena e arrumou para Larsson um cargo de datilógrafo na Tidningarnas Telegrambyrå, uma agência de notícias. A partir daí, criou o costume de se autoproclamar repórter, mas os amigos sabiam que estava blefando. Pelos próximos 20 anos, Larsson seria creditado por escrever apenas 25 textos, muitos deles resenhas de novelas policiais. Cinco eram entrevistas com o corpo editorial que ele formou posteriormente na Expo - entrevistas, essencialmente, com ele mesmo. Larsson sentia que tinha algo a provar e estava irritado com o fato de sua cruzada de um homem só contra a intolerância estar sendo solenemente ignorada - mas ele era incansável. "Stieg era incapaz de ser neutro", diz Baksi. "No momento em que sentava à frente de um computador, tomava algum partido."
Enquanto Larsson penava para se estabelecer como jornalista, sua obsessão pela extrema direita começou a crescer irracionalmente. Colecionava cada jornal, panfleto e parte de correspondência de extremistas que conseguia encontrar. A ideia de um arquivo veio a ele depois de ler o thriller O Dossiê Odessa, de Frederic Forsyth - um jornalista investigativo descobre um arquivo com informações sobre uma organização internacional nazista secreta, na qual tenta se infiltrar como agente disfarçado. Larsson virou correspondente do jornal britânico antirracismo Searchlight. Então, em 1991, algo notável ocorreu: Extremhögern ("A Extrema Direita"), um relato coescrito por ele traçando a ascensão dos grupos de extrema direita, ultrapassou todas as expectativas de vendas. Em dez anos, vendeu cerca de seis mil cópias. Mas Larsson ainda se sentia frustrado: estava beirando os 40 anos e a carreira jornalística dele balançava. Tinha evoluído do cargo de datilógrafo na TT - ele agora elaborava os gráficos que iam junto com os artigos -, mas os editores ainda não o encarregavam de escrever matérias. Não que ele não se dedicasse. Quando saía para beber depois do expediente, tinha pouca paciência para papo furado, tentando voltar a conversa para assuntos substanciais. Se alguém discutia algo sobre o que não entendia, ele ia para casa e pesquisava online. Na manhã seguinte, recitava os fatos que demonstravam seu conhecimento. "Larsson era um autodidata e tinha um extremo senso de conhecimento sobre todos os tipos diferentes de assunto", diz Robert Aschberg, apresentador de televisão e colunista que também atua como Publisher da Expo. "Informação era como uma droga para ele: tinha de saber tudo."
Ainda assim, Larsson era incapaz de deixar a TT. Sentia-se orgulhoso de trabalhar para a agência de notícias - e precisava do salário. Raramente usava bancos, mantendo tudo o que tinha na carteira e pagando as contas em dinheiro. O pai o alertou: era hora de pensar nele mesmo. "Escreva algo comercial", disse Erland. Relembrando a paixão do filho por Astrid Lindgren, sugeriu que ele tentasse escrever literatura infantil. De certo modo, Larsson já havia tentado. Por algum tempo, tinha trabalhado em sua própria versão dos livros Tvillingdetektiverna, de Sivar Ahlrud, em que os garotos detetives agora eram adultos e tinham de resolver crimes mais sérios. Mas não funcionou e ele jogou tudo fora. O único passo adiante, concluiu, seria começar suas próprias publicações, como tinha feito em Umeå com seus fanzines. Não havia dúvidas sobre qual seria o assunto. No começo dos anos 90, grupos neonazistas faziam protestos na rua e a população imigrante de Estocolmo estava sendo aterrorizada por um assassino serial conhecido como Laser Man. O assunto que era alvo da obsessão arcana de Larsson - um movimento extremista de direita fragmentado em um país que havia sido governado pela esquerda por mais de um século - havia subitamente se tornado a maior notícia da época dele.
A edição de estreia da Expo veio em agosto de 1995, com o objetivo de estudar e examinar "tendências antidemocráticas, de extrema direita e racistas na sociedade sueca". Os primeiros números não atraíram muita atenção, mas a revista foi notada pela única parcela do público que importava: os nazistas. O escritório da gráfica foi vandalizado e bancas que vendiam a revista tiveram suas janelas quebradas e paredes pichadas com a mensagem: "não imprimam a Expo!". Era a melhor coisa que poderia ter acontecido a uma revista investigativa estreante. A violência atraiu grande atenção da imprensa - o episódio ficou conhecido como "o caso Expo" - e os dois maiores jornais da Suécia publicaram, em parceria, uma edição especial da Expo. A revista nunca teve mais do que mil assinantes durante
a vida de Larsson e sempre deu prejuízo, mas a voz dela foi ouvida.
Mesmo antes do lançamento da Expo, Larsson estava preocupado com as ameaças feitas contra ele. Tinha instalado uma porta como as de cofres (e à prova de fogo) em sua casa e mudava sua rotina diariamente - indo e voltando do trabalho em horários variados e sempre tomando caminhos diferentes. Seus amigos não sabiam como lidar com seu crescente estado de vigilância. As ameaças contra ele eram verdadeiras? Ou era parte de seu autoencenado ato como jornalista investigativo? Até que algo que justificava as teorias mais paranoicas de Larsson aconteceu. Em uma tarde, o telefone tocou na mesa dele na TT. A voz do outro lado da linha estava estranhamente alegre. "Alguém vai matar você hoje", disse o homem. E a linha ficou muda. Larsson foi até a janela. No banco do outro lado da rua estava sentado um homem com uma mala grande. Ele olhava para a entrada do prédio como se estivesse esperando alguém. Larsson sabia que a polícia não acreditaria em sua história e que ele não teria provas para prender um homem sentado tranquilamente em um banco. Larsson podia escapar pela porta dos fundos, mas o homem poderia voltar no dia seguinte, e no outro. Ele ligou para a polícia.
"Haverá um assalto a banco hoje à tarde", Larsson disse a eles. "O assaltante está neste momento sentado em um banco em frente a Kungsholmstorg 5."
"Quem está falando? De onde você está ligando?"
Larsson desligou. Minutos mais tarde, uma viatura policial encostou em frente ao escritório. O homem foi detido, sua mala revistada. Continha várias armas de fogo. Ele saiu pela porta dos fundos e correu para casa.
A expo fazia mal para a saúde de Larsson. O escritório era tomado pela fumaça, as mesas eram forradas de bitucas de cigarro, que flutuavam em canecas com restos de café e embalagens de fast-food meladas de maionese. Ele ficava no escritório todas as noites, depois de sair da TT, e o final de semana inteiro. Bebia quantidades obscenas de café barato e sofria de insônia. Implorava a seus amigos por verba, conduzia pesquisas e treinava sua jovem equipe, alguns dos quais havia recrutado ainda adolescentes. Os garotos o adoravam. "Era um grande velho que sabia de tudo", diz Mikel Ekman, que foi trabalhar na Expo quando tinha 19 anos.
A equipe adorava ouvir as histórias de Larsson. Algumas vezes, contou sobre uma garota que tinha sido coletivamente estuprada por adolescentes na floresta próxima a Umeå quando ele era criança. Às vezes, dizia que os tais adolescentes eram seus amigos, que também havia estado presente, olhando enquanto o crime se desenrolava, e que seu senso de culpa o havia inspirado a devotar a vida à defesa da mulher e contra a violência. Kurdo Baksi alega que essa garota serviu como principal inspiração para Lisbeth Salander, levando ao título Os Homens que Não Amavam as Mulheres. Mas Larsson mais tarde contaria a um colega da Expo que havia ouvido a história de alguém. Até onde seus amigos sabem, ele inventou tudo. Esses embelezamentos pouco importavam para a equipe. Ekman foi atraído para a Expo depois de ler o livro de Larsson sobre a extrema direita. Quando percebeu que o baile da escola dele havia sido tomado por skinheads, ligou para o escritório da Expo para falar com Larsson, que o atendeu imediatamente. Não demorou muito, Larsson estava encorajando o adolescente a se infiltrar na organização local de jovens nazistas. Ekman juntou-se à Frente Nacional Socialista, comparecendo às reuniões e relatando as descobertas. Daniel Poohl, que se tornou editor da Expo depois da morte de Larsson, também começou como espião adolescente, infiltrado em um jornal nazista. Ele relatava a Larsson, que o ensinava estratégias para manter seu disfarce. Larsson não tinha criado apenas uma revista. Tinha criado uma agência de garotos detetives.
A maior pressão que Larsson sentiu - mais que o medo de ser atacado por fanáticos da extrema-direita ou o desafio de publicar uma revista com uma equipe dominada por redatores e editores na casa dos 20 anos - era monetária. Embora estivesse sempre quebrado, dava pouca importância às finanças pessoais. Certa vez demorou tanto para descontar um cheque de US$ 6 mil que havia recebido como adiantamento por um livro sobre um partido político racista sueco, que a editora implorou para que a coautora Ekman o arrastasse até o banco. Larsson estava cansado de se preocupar com o futuro da Expo, cansado de depender da namorada Eva Gabrielsson, uma arquiteta, para organizar as finanças dele. "Não aguento mais andar por aí passando o chapéu, implorando por dinheiro para a Expo", reclamou a um amigo. "Ninguém se importa, ninguém nos dá dinheiro nenhum. Preciso de uma solução definitiva." O pai estava certo: ele precisava escrever algo comercial.
Em 2002, Larsson e Eva tiraram férias e foram para o arquipélago de Estocolmo. Ele deixou de lado o trabalho na Expo e decidiu tentar escrever um livro. Havia um interesse internacional crescente pela ficção policial escandinava, e ninguém sabia mais sobre o gênero do que ele. No lugar de um detetive tradicional, ele teria um jornalista investigativo. Seria uma versão idealizada de Larsson. "Ir para a cama com ele", escreveu Larsson, "não era ameaçador ou complicado, mas poderia ser eroticamente prazeroso." Blomkvist seria um eficiente repórter da Millennium, uma versão fantasiosa da Expo. Mas ele teria papel secundário: a figura principal da história seria a encarnação adulta de uma personagem de Astrid Lindgren: Pippi Longstocking. Nas histórias de Astrid, Pippi é uma brincalhona - uma garota de 9 anos dotada de força sobre-humana e que vive sozinha. Larsson, bem ciente de que Lindgren era a autora mais vendida na história da literatura sueca, mais tarde enfatizou a conexão com Pippi Longstocking. "Como ela seria quando adulta?", imaginou na única entrevista que deu sobre seus livros antes de morrer. "Do que ela seria chamada? De sociopata? Alguém sofrendo de déficit de atenção/distúrbio de hiperatividade? Eu a tornei Lisbeth Salander, 25 anos, com um gigantesco complexo de exclusão. Ela não conhece ninguém e não tem nenhum tipo de habilidade social." Em vez de ter a força física, Lisbeth é uma hacker. Com uns poucos comandos em seu laptop, é capaz de acessar qualquer informação do mundo. Mas os paralelos entre Lisbeth Salander e Pippi Longstocking são, na melhor das hipóteses, simbólicos. Quando tentou explicar a personagem principal de seus livros para seu irmão, Larsson apelou para uma analogia mais próxima. "Ela é como Therese", disse.
Enquanto crescia, Therese Larsson via o tio como uma figura heróica. Sempre que vinha de Estocolmo visitá-la, ele contava histórias sobre as terríveis aventuras que havia tido quando viajou de carona pela África, sobre a vez em que uma gangue de nazistas o havia atacado em Estocolomo ou a vez em que um assassino o esperava do lado de fora do escritório dele. Larsson não ia a Umeå com freqüência - sempre tinha a desculpa de algum prazo que tinha de cumprir. Mas se correspondia com a sobrinha via e-mail - Therese mandando notas curtas e recebendo de volta respostas que eram do tamanho de livros. Ele era um adulto em quem ela podia confiar, um exemplo e professor além dos pais, alguém com quem podia discutir a vida como adolescente em Umeå. Gostava da honestidade dele com ela. Ele desaprovou, por exemplo, quando Therese contou que tinha ido morar junto com o namorado dos tempos da escola. "Você é muito nova", disse. "Uma garota na sua idade deveria estar usando os rapazes como se fossem brinquedos." Ela riu. "Tudo bem", ele disse. "Você sabe cuidar de si mesma."
Larsson não a censurou por ela ter aceitado um emprego de auxiliar de enfermagem em vez de tentar a faculdade. E não comentou quando ela mostrou a grande rosa que havia tatuado no ombro. O fato de ela ter escolhido uma rosa, entretanto, é que era surpreendente. Quando mais jovem, ela vivia dizendo que faria a tatuagem de um dragão, como a personagem dos livros dele, muito depois, viria a ter. Nos dois anos em que Larsson passou escrevendo os livros, escrevia sempre para Therese fazendo perguntas sobre a vida dela: o que ela achava e o que faria em certas situações. Ela contou sobre as dificuldades com a anorexia e sobre a paixão pelo kickboxing; tinha aulas desde os 15 anos (antes disso, havia estudado jiu-jitsu por oito anos). Ele sempre tinha amado o modo como ela se vestia quando adolescente - maquiagem preta, jaqueta de couro preto, botas pretas. "Lisbeth Salander é como você", Larsson disse a ela. "Delicada por fora, mas durona por dentro."
Quando completou 20 anos, Therese decidiu ir com o namorado a Estocolmo. Queria apresentá-lo ao tio. Fizeram planos, mas no último minuto Larsson precisou cancelar - tinha um prazo estourando. Pediu que ela esperasse um pouquinho mais, mas o casal precisou pegar o voo de volta a Umeå. Ele se desculpou efusivamente, e eles concordaram em combinar de se ver em breve. Larsson morreu dois meses depois. Therese, agora com 26, mora com um novo namorado. Ainda veste preto, mas seu gosto hoje cai mais para a linha de roupas casuais do que para o punk gótico, e deixou o antes curto cabelo castanho crescer. Tem um sorriso largo e uma risada grave e alegre, que surge toda vez que fala sobre suas aulas de kickboxing. E é bem treinada: sabe como quebrar um bloco de madeira com seu punho e, diz ela, como arrebentar os garotos de sua classe. O pai quer que ela entre para a faculdade, e os amigos a encorajam a se tornar enfermeira. Mas depois da morte de tantas pessoas próximas - a mãe, que foi vítima de um câncer pancreático há três anos, o tio e o ex-namorado, que cometeu suicídio -, ela se sente feliz por estar em um lugar confortável, seguro, ainda trabalhando como auxiliar de enfermagem no hospital local. "Gosto de tomar conta das pessoas e tê-las à minha volta", ela diz. Pergunto se já se sentiu tentada a reivindicar o dinheiro do tio - milhões que poderiam estar prontamente à disposição dela, exatamente como acontece com Salander nos livros. "Não penso nisso. Tenho dinheiro suficiente para comprar comida. Não preciso mais do que isso."
O status de celebridade do tio colocou Therese em situações estranhas, especialmente considerando que desconhecidos não desconfiam do parentesco dos dois - Larsson é um sobrenome comum na Suécia. Um dia, quando Therese fazia a ronda dela no hospital, uma entrevista com o pai e o avô dela estava passando na televisão. O apresentador falava sobre quantos milhões a família Larsson havia herdado com a trilogia Millennium. "Ei, Therese", disse um dos pacientes. "Qual o seu sobrenome?"
"Larsson", disse ela.
"Hah! Você podia ser parente dele!"
"É", ela disse. "Eu sou." Os pacientes riram e voltaram a ver televisão. Therese respirou fundo e voltou à tarefa de trocar suas comadres.
Nos seis anos desde sua morte, Stieg Larsson se tornou o que sempre quis ser: um escritor de sucesso que mescla as paixões do jornalismo político com os contos fantásticos da juventude. "Todo mundo conhece Stieg Larsson agora", diz a editora Eva Gedin. "Ele é um fenômeno sueco, como o Abba ou Ikea." Ela está certa - mas nem todos os amigos do autor capitalizaram em cima dessa fama súbita. Per Jarl era um dos melhores amigos de Larsson (e o jornalista que o levou para a TT) e jamais havia falado com um repórter sobre o assunto. Jarl se viu incapaz de ler os livros de Larsson durante vários anos, preocupado por achar que seria como ouvir um fantasma; por fim acabou escutando-os em CD. Foi arrebatado pelos temas profundos inseridos nas convenções clássicas do thriller policial. Em particular, a cruzada obsessiva que havia sempre motivado o amigo: o ódio da violência dos neonazistas - e de todos os homens que subjugavam mulheres e encontravam meios de abusá-las sempre que possível. "A coisa mais importante", Jarl me diz várias vezes, "é entender que há algo muito sério pelo que Stieg estava lutando".
É um dia cinza, venta muito e estamos andando em Kungsholmen, não muito longe dos escritórios da Expo. Jarl está atônito com o sucesso de Larsson. "Um de seus amigos mais próximos conta a você que escreveu alguns livros policiais - o que você deveria pensar?", conta. "E aí ele morre, e vira uma celebridade. Sou jornalista. Entendo como funciona - o hype, as pessoas fazendo dinheiro à custa dele. Mas é bizarro." Então, quando estamos para nos despedir, ele para abruptamente na rua e agarra meu ombro. "Está todo mundo falando sobre o quarto livro", diz. "Ele existe, do que se trata? Para mim, está muito claro o que é o quarto livro. O quarto livro começou no dia em que ele morreu: é tudo o que aconteceu depois disso, toda essa porra de confusão, todos os boatos." Jarl chacoalha a cabeça. "Não precisamos de um quarto livro", ele desabafa. "O quarto livro está acontecendo neste exato momento."
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