Um dos últimos autores notáveis do Brasil, Luis Fernando Verissimo ouve muito e fala pouco enquanto aproveita discretamente os prazeres da vida
Marcelo Ferla Publicado em 15/10/2012, às 12h13 - Atualizado em 24/10/2012, às 15h24
Luis Fernando Veríssimo subiu a escadaria da parte frontal da mansão dos anos de 1930, no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Caminhou até o fundo da casa, cumprimentou cordialmente os técnicos de som, adentrou o pequeno estúdio de rádio e depositou na mesa um exemplar de seu livro de 2003, Banquete com os Deuses. Antes de começar a gravar o programa sobre jazz que apresenta na emissora online minima.fm, discutiu sobre futebol (mais especificamente sobre o Sport Club Internacional) com a filha mais velha, Fernanda, e com o cineasta José Pedro Goulart. Música (sobretudo jazz) e futebol (principalmente o Inter) são velhas e constantes fontes de prazer do escritor, cronista, cartunista, tradutor e roteirista de 76 anos, um dos grandes best-sellers da literatura nacional em todos os tempos.
Durante a gravação, Verissimo dá toda a atenção para o jazz, que pronuncia como se escreve em português, “jaz”, apesar de seu contato precoce com a língua inglesa. “Eu tinha de 6 para 7 anos quando o pai [o escritor Erico Verissimo] foi convidado para lecionar Literatura Brasileira na Universidade da Califórnia”, ele relembra. “Não sabia falar nada de inglês, mas logo me botaram numa escola e aprendi meio na marra. Praticamente me alfabetizei em inglês, e a partir daí fui sempre ligado na cultura americana.”
Com um lápis verde entre os dedos, sobrancelhas arqueadas e voz baixa, Verissimo conduz o programa com a propalada timidez, em uma antítese do locutor de rádio tradicional, lendo trechos de seu livro e interagindo com a filha. Às 11h23, um breve silêncio precedeu uma frase com tom de pedido e leve impaciência:
“Ok, por hoje deu?”
Na semana seguinte, Verissimo retornou mais disposto ao mesmo estúdio. Pediu “água com bolinhas”, discutiu a pauta do programa com a filha, teceu comentários como “o trompete antigamente era chamado de pistom”, seguiu anotações que rabiscara em uma pequena folha de papel e demonstrou total conhecimento de causa ao falar sobre Charlie Parker, Miles Davis, Count Basie, Benny Goodman, Dizzie Gillespie, Chet Baker e Louis Armstrong – este, o primeiro grande ídolo do escritor, a quem assistiu ao vivo em 1953, “em Washington, com o Fernando Sabino”, e em Paris, em 1959, quando “ele foi condescendente demais e incluiu ‘La Vie en Rose’ no repertório”.
Leia trechos da entrevista com Luis Fernando Verissimo que ficaram fora da edição impressa.
“O senhor já ouviu seu próprio programa?”, pergunto, duas semanas depois, em uma manhã excessivamente quente de inverno em Porto Alegre. Estamos na sala de estar da casa de Verissimo, decorada com quadros e muitos livros, no arborizado bairro Petrópolis, onde nasceu e reside com a mulher, Lúcia. “Não, na verdade não. Rádio é uma experiência nova, que eu nunca tinha feito, não sei como tá saindo. É um pouco eu contando minha relação com a música”, ele explica, tímido. “Mas, como você está notando, tenho lapsos de memória, então quando se vai falar no passado é um problema.”
Para quem ficou cerca de duas horas relembrando com detalhes velhos tempos de jazz e futebol, confortavelmente sentado em uma cadeira do papai vermelha, com um dos pés no banquinho e sem os sapatos, enfatizar lapsos de memória é uma autocrítica demasiada. Mais do que pequenos esquecimentos, foram muitas pausas. O ar sempre contido e uma discrição quase metódica davam o tom da conversa, pontuada por frases certeiras de quem indubitavelmente sabe a medida das palavras. Verissimo é um homem que ouve muito e fala pouco, talvez porque espera que a genialidade de seus textos seja suficiente. Entretanto, torna-se ainda mais comedido ao comentar sobre a geração espetacular em que se insere, e que tem sido tratada como insubstituível a cada perda que sofre.
“Sou da geração que teve o Millôr Fernandes, o Ivan Lessa, essa turma toda”, ele cita. “Dizer que eles são insubstituíveis é uma maneira de me valorizar também. Dizer que não tem ninguém igual a eles é uma maneira de me consolar um pouco. Vai vir mais gente tão boa e genial quanto eles, mas a gente gosta de pensar que nossa geração foi especial. Talvez não tenha sido especial, mas a gente gosta de dizer isso.”
No insubstituível período da infância, em 1943, quando foi viver com a família nos Estados Unidos (o pai, Erico, a mãe, Mafalda, e a irmã, Clarissa), o pequeno Luis Fernando ficou tão impactado pelo clima da Segunda Guerra que começou a matar inimigos imaginários japoneses e alemães em suas brincadeiras. Assustado, o pai o levou a um médico, que o convenceu de que não era preciso colaborar com o exército norte-americano para resolver a questão. “Foi um caso neurótico de guerra precoce”, Verissimo brinca, sorrindo discretamente. “Desde então sou pacifista, acho que por causa disso.”
O som da guerra era uma novidade nefasta, mas as notas musicais sempre foram uma lembrança de berço na vida de Luis Fernando. Na coleção dos Verissimo havia muitos discos de música norte-americana, brasileira e erudita, os prediletos de Erico. “A família toda ouvia música, mas só eu enveredei para o jazz”, diz, antes de outra longa pausa, como quem se pergunta intimamente por qual motivo. O primeiro disco do gênero foi “um long-play de 10 polegadas, do Lionel Hampton”. Depois, ganhou o LP Louis Armstrong and Symphony Hall, que afirma ter gastado ouvindo “sempre, todos os dias, mesmo porque não havia outros”.
O futebol entrou em campo como forma de reintegração ao Brasil, quando a família voltou da Califórnia, em 1945. Verissimo jogava na calçada e na praia, gostava de ouvir os jogos pelo rádio e logo se transformou em um assíduo e solitário frequentador dos estádios, desde os 10 anos. A paixão pelo Internacional nasceu porque era o grande time gaúcho do período “e também porque o rival, Grêmio, tinha uma conotação um pouco antipática naquela época”, explica, em tom de brincadeira. “Era o time dos ‘alemão’, não aceitava jogador negro. E, como eu tinha ajudado a ganhar a Guerra pela democracia, não iria chegar aqui e torcer pelos alemães.”
“Mas seu pai era gremista”, provoco.
“O pai torcia pelo Cruzeiro, aí quando o Cruzeiro acabou ele passou para o Grêmio. Mas isso é uma coisa que a gente não comenta aqui em casa”, desconversa o autor do livro Autobiografia de uma Paixão, sobre a história de seu clube do coração.
Quando a família Verissimo voltou aos Estados Unidos, em 1953, Luis Fernando beirava os 17 e decidiu que chegara a hora de “brincar de jazzista na terra do jazz”. O sonho era aprender trompete, mas a realidade da escola de música de Washington, onde foi morar, ofereceu aulas de saxofone. As melhores lições, porém, vieram dos palcos dos clubes de jazz de Nova York, que continua frequentando hoje em dia – “espeluncas como o Village Vanguard, que sempre foi um horror, um porão com mesas pequenas e todo mundo aglomerado, ou o Blue Note, onde eles também amontoam a gente”. Quando podia emendar um feriado, Verissimo pedia uma mesada ao pai e ia de ônibus para Nova York. “Eu não tinha idade para frequentar as boates e clubes, mas eles sempre me deixavam entrar, talvez porque eu já tivesse um pouco de barba”, conta. No mítico Birdland Jazz Club havia um local para quem só queria assistir aos shows, sem precisar beber, o que facilitava a vida do garoto. “Era como um auditório e eu ficava sentado. Foi lá que vi Charlie Parker, Count Basie, Dizzie Gillespie. Em Washington, assisti Miles Davis e o Modern Jazz Quartet.”
Sem idade para beber e sem curtir drogas, o jovem Verissimo vivenciou um período dourado do jazz de camarote e viu de perto uma geração antológica de artistas, marcada pelos excessos, inclusive de talento. “Naquela época, o consumo de drogas era quase que exclusivamente associado ao mundo do jazz”, ele aponta. O excesso de informação, porém, foi insuficiente para fazer do futuro escritor também um grande saxofonista (Verissimo se considera um músico limitado). “Eu não leio música. Tenho que pegar tudo pelo ouvido. Então eu deveria, em primeiro lugar, ensaiar mais. O ideal seria tocar diariamente, porque a gente perde a embocadura, mas não tenho uma rotina de tocar.”
Em 1995, décadas após experienciar os ambientes enfumaçados mais sagrados do gênero, ele recebeu um convite do contrabaixista Jorge Gerhardt para se reunir com uma turma de músicos amantes de jazz. Surgia o quinteto Jazz 6. “No Jazz 6, eu sopro o sax, mas não apito nada”, brinca. “De vez em quando dou alguma sugestão, mas geralmente quem escolhe o repertório é o pessoal. Tem dado certo, já são 17 anos de carreira. Obviamente muita gente que me conhece como jornalista e escritor vai nos ver porque eu estou tocando, mas os músicos são muito bons.”
Verissimo recorda que quando voltou ao Brasil, em 1956, tocou no Renato e seu Sexteto, um sexteto… com 11 músicos. “Participei do primeiro ano de formação do conjunto, que tocava música italiana, bolero e samba em bailes de estudantes”, relembra. “Quando nos reunimos para ensaiar eram só seis, mas com o tempo foi se juntando um povo e na hora de tocar já eram 11 integrantes.”
A coleção de CDs de Verissimo é numerosa, mas ele tem ouvido menos música do que gostaria. “A gente se abanca na poltrona para ver televisão e acaba não saindo, não tendo ânimo de levantar” – ele assiste a noticiários, filmes, séries norte-americanas e futebol. As prateleiras de discos estão na casa de Porto Alegre e no apartamento em Paris, que ele sempre visita em outubro, na companhia de Lúcia, em uma das duas viagens longas que faz no ano. São praticamente os mesmos discos, “mas algumas cantoras eu tenho lá e não tenho aqui, como a Stacey Kent, que assisti ao vivo em Paris”. Ir aos clubes franceses de jazz é agenda obrigatória. Verissimo aprecia cantoras – lá viu e gostou de Patricia Barber e da brasileira Eliana Elias. E elogia a conterrânea Elis Regina. “Ela foi uma grande cantora de jazz, mesmo sem cantar músicas do gênero. Foi como o Frank Sinatra, que era sempre considerado um cantor de jazz, apesar de raramente improvisar.”
Autor do romance Os Espiões (2009) – no qual logo na abertura cita o clássico “O Ébrio”, de Vicente Celestino –, Verissimo tem um ponto de vista contundente sobre a música verdadeiramente popular brasileira. “Os artistas populares daquela época, que a gente sempre achou meio bregas, eram muito bons. Cauby Peixoto, por exemplo, era um belo cantor. As cantoras do rádio, Marlene, Emilinha [Borba], de quem se dizia que as músicas não tinham valor nenhum, eram ótimas artistas. O próprio Roberto Carlos tem composições com uma certa sofisticação.”
O sofisticado jazz é uma paixão de Verissimo que não influenciou sua maneira de escrever. “Minha escrita tem muita influência dos Estados Unidos, do humor, da maneira despojada e formal de escrever do americano, mas da música acho que não.” A literatura beat, gênero literário da contracultura assumidamente influenciado pelo jazz, é o gancho para a entrada em outro prazer do escritor, o cinema. “Gostei do Na Estrada, é um registro interessante daquela época, mas o problema é ser muito fiel ao livro, e o livro [On the Road] não é essas coisas. Nunca achei [Jack] Kerouac muito bom. O filme tem essa virtude e um defeito, porque o livro não merece.”
O cinema é hoje um passatempo, mas já chegou a ser um objetivo de vida. Em 1962, saiu de Porto Alegre, onde trabalhava na Editora Globo, “para tentar ganhar algum dinheiro no Rio” e depois ir
para Londres – ele não sabia exatamente o que faria, desde que fosse algo relacionado ao cinema e na capital britânica. O roteiro da vida real conta que ele ficou no Rio, onde trabalhou como tradutor e redator publicitário, casou-se com a carioca Lúcia Helena Massa, teve a primeira filha (depois vieram Mariana e Pedro) e voltou para Porto Alegre em 1967, onde atualmente o casal vê muitos filmes, a maioria em casa.
“E como eu disse, a gente se aboleta na poltrona e fica difícil de sair”, diz. “Mas sempre tentamos ir ao cinema. Gosto muito de ir cedo, na sessão das 6, e depois sair para jantar.”
Futebol também é um passatempo do sofá de Verissimo. Ao vivo mesmo só vê as Copas, que frequenta desde 1986, embora o batismo tenha sido no Mundial de 1950, em Porto Alegre, quando viu a Iugoslávia vencer o México por 4 a 1. Além do Inter, acompanha os campeonatos internacionais. “Quando eu era garoto, tinha time em tudo o que é parte do mundo: o Colo-Colo no Chile, o River Plate na Argentina, o Tottenham na Inglaterra. Às vezes nem sabia a cor da camiseta, mas procurava no jornal se o time havia vencido.”
Privilegiado, viu Pelé em ação muitas vezes, jogando pelo Santos no Maracanã, e assistiu a Maradona ganhar uma Copa praticamente sozinho, no México-86. “Tem essa comparação do Maradona com Pelé, e agora o Messi, mas é difícil comparar, são épocas diferentes. Mas acho que Pelé foi melhor do que Maradona. Ele era extraordinário.”
O contraste da era romântica com o futebol elitizado não incomoda Verissimo, que se não enxerga mais aquela ligação do jogador com a camiseta, acredita na conexão romântica da torcida com o clube, “geralmente uma paixão da infância que permanece”, e comemora a presença das mulheres nos estádios. “Quando eu ia a estádio, mulher era uma raridade, se alguém levava a namorada era vaiado, jogavam bolinhas de papel. Hoje elas vão naturalmente, o futebol está mais confortável.”
E com a Copa 2014 dá para se divertir?
“Os preparativos estão meio atrasados né? Não sei, vamos ver. Mas no fim dá tudo certo.” Verissimo gosta do treinador Mano Menezes, mas acha que ele tem experimentado muita gente e fez algumas convocações indefensáveis, como a dos goleiros nas Olimpíadas, “um pior que o outro”. Acredita em Neymar, embora “seja um jogador imarcável que tem sido marcado”, mas gostaria de vê-lo jogando na Europa, onde se prepararia melhor.
O relógio encosta no meio-dia e os sinais de cansaço se tornam evidentes no escritor que prefere dar entrevistas por e-mail (e havia cumprido a desagradável tarefa de ir ao dentista antes da entrevista). Mas não posso deixar de falar sobre humor com Luis Fernando Verissimo. Ele elogia Marcelo Adnet, Fernando Caruso e o stand-up comedy em geral. “É uma coisa boa, pois valoriza o humorista”, explica. “Nosso humor sempre foi muito caricato, que começou no circo e passou pelo teatro de revista sempre com muito exagero. Já esses comediantes de stand-up são mais influenciados pelo humor americano, é mais sutil, acho isso positivo. O humor brasileiro está se afastando das suas origens, ficando mais americano – mas, no bom sentido, é um humor mais inteligente.”
O humor que faz rir por constrangimento lhe agrada?
“É a liberdade. Quando a gente fala em liberdade de expressão, está falando também desses exageros, né? Tem sempre a reação ‘isso aqui devia ser proibido!’ Não devia ser proibido, isso é inevitável.”
Por falar em liberdade, Verissimo diz achar “curiosa” e “interessante” a interferência do público no mundo da ficção por meio das mídias sociais. “A plateia dirigir o que quer ver, ou como a vilã deve ser punida, ou como deve terminar o romance… isso é um passo adiante dos folhetins de antigamente, em que as pessoas ficavam esperando o final sem saber como ia seguir a ação.”
Mas se fosse o autor, isso lhe incomodaria?
“Acho que me incomodaria. Mas tive a experiência de escrever para TV trabalhando sempre em equipe, o que é positivo porque previne qualquer vaidade autoral. A gente sabe que o texto será modificado.”
Sente prazer em escrever?
“Gosto muito de uma frase do Zuenir Ventura, que diz que ele não gosta de escrever, gosta de ter escrito. O ato de escrever não me dá muito prazer, não. Bom é ter escrito.”
De olho no relógio, aviso que farei somente mais uma pergunta.
“Jura que é só mais uma?”
O senhor está se mostrando bastante otimista. Que tipo de mundo sua neta vai herdar?
“A gente pensa muito nisso”, ele suspira. “Temos a ideia de que o mundo está desmoronando com as crises financeiras e tudo o mais, mas ao mesmo tempo tem coisas muito boas sendo feitas, e eu sou otimista. Sou otimista. Uma maneira de preparar a Lucinda para o que vem aí é preparar uma pessoa que seja solidária, que veja as coisas com clareza e, principalmente, solidariedade. É uma maneira que ela vai ter de viver esse mundo que está chegando para ela.”
Verissimo se levanta e me conduz até o portão. “Esta casa é um labirinto”, explica. Já na rua, deparo com Lucinda, 4 anos, belos olhos azuis, chegando para almoçar. Diante do vovô, ela escancara um sorriso, um daqueles de fazer qualquer um sentir-se otimista. É a mais nova fonte de prazer de Luis Fernando Verissimo.
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