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O Último Grande Herói

Torturado, violento, complicado: por que não conseguimos nos desgrudar do Cavaleiro das Trevas?

Jonathan Lethem Publicado em 10/08/2012, às 12h56 - Atualizado às 13h01

Meu filho de 2 anos tem um super-herói preferido. Ele é muito firme nesta convicção, apesar de nunca ter lido um gibi do Batman nem ter visto um filme do Batman. Como é que ele sabe? Ele ganhou de presente uma lancheira do Batman, apesar de não precisar de lancheira, pois tem só 2 anos. Ele ganhou a lancheira para compensar o fato de o irmão mais velho ter ganhado uma com algum outro ícone. E por que escolhi a do Batman? Por impulso. Talvez tenha sido um gesto inconsciente. O primeiro super-herói que amei foi o Batman. A primeira tentativa de desenhar de que eu me lembro foi um desenho do Batman. Eu me lembro de ter me esforçado para reproduzir o emblema do morcego no peito, as cápsulas alinhadas no cinto. Nunca desisti do Batman; em vez disso, é como se o contorno dele contivesse todas as outras curiosidades que jamais iriam me acometer; é como se o contorno dele contivesse a mim.

Talvez Batman persista porque ele tem um nome bom e uma máscara legal, uma roupa que não é de palhaço e nenhum superpoder. Como o menos infectado pelo absurdo de sua categoria, ele oferece à categoria desesperançada algumas pequenas possibilidades. O Superman usa pijama de trenzinho; Batman usa uma versão atlética de terno com sobretudo. Ele é o nosso primeiro super-herói humano, e também é o mais essencial.

Ele surgiu na revista em quadrinhos Detective Comics. O sobretudo que se transforma em capa, e a capa é uma versão durona do sobretudo de detetive. Ele tem a silhueta de um Philip Marlowe que bota para quebrar, mais uma figura solitária com o código do cavaleiro urbano. E ele carrega o estigma de seu trauma, um ferimento no passado, bem parecido com o detetive curtido, cujo próprio trauma está codificado no significado de um sobretudo: guerra de trincheira. O detetive de sobretudo é um veterano da Primeira Guerra Mundial que retornou. O Batman é um veterano de uma guerra secreta do eu, ferido de uma maneira que nenhum civil seria capaz de compreender adequadamente.

Outro fator simples é seu apelo duradouro: Batman tem a galeria mais profunda de oponentes na comparação com qualquer outro herói. Se o inimigo faz o homem, ele está feito. Claro que o maior inimigo de Batman é o Coringa. No entanto, tantas entre suas outras nêmeses – aquelas que tiram cara ou coroa, aquelas aves que não voam – reproduzem a absoluta falta de seriedade do Coringa. Em sentido mais profundo, o verdadeiro inimigo de Batman é a piada em si – júbilo, gozação. Ele se coloca na oposição do que é cômico, apesar de ter surgido no habitat do gibi. Batman transmite um clima severo, de resolução determinada, traída com persistência pela pegadinha, pela tolice e pela bobagem. Ele emite um chamado urgente para o nosso lado sério, mas o Batman, que luta tanto contra o crime quanto contra o abismo existencial com as armas inadequadas de punhos fechados e dentes cerrados, beira o risível. A nossa crença é a de que sua grande razão de ser o sustenta.

A famosa recusa de Batman de brandir uma pistola, a arma que matou seus pais, conecta-o ao problema clássico da fronteira do oeste norte-americano, que ganhou forma em filmes como Rastros de Ódio, Atire a Primeira Pedra e O Homem que Matou o Facínora. A questão é: será que o homem é violento o bastante para limpar pessoalmente o caminho para a civilização, se ele próprio não está apto a participar da sociedade civilizada? Batman resolve esse paradoxo simplesmente ao remover sua máscara. Aliás, seu código é risível em seu rosto. O primeiro criminoso que ele confronta, na Detective #27, mergulha em um barril de ácido e Batman declara que é “um fim adequado para o tipo dele”. E seus diversos substitutos de armas – bumerangues, aviões, dinheiro – são tão letais quanto têm de ser. Batman é a morte. Ele é a morte negada ou meditada por meio da moralidade crua do destino.

Batman também é gótico, com sua brancura insuportável, seu isolamento de vingador. Ele se destaca como a dobradiça entre a imagem dos super-heróis e a dos mortos-vivos: vampiros, lobisomens, fantasmas. À sombra da legitimidade de Batman está à espreita um Drácula adequadamente americanizado – noturno, subterrâneo, sedutor. Mais do que um vestígio da imagem europeia decadente do monstro aristocrata ainda reside na identidade secreta de Batman. No entanto, quanto mais a sério levamos Bruce Wayne, mais provável é que passemos a rejeitar este odioso integrante do 1%, perpetuando assim seu ciclo de abuso. Bruce Wayne não compartilha nada da profunda necessidade existencial de Batman. Melhor acreditar que o Batman seja o verdadeiro eu e que Wayne seja um simples fiapo, um resíduo. Batman apenas finge ainda ser Bruce Wayne.


O Batman de Adam West [do seriado de TV dos anos 60] foi um axioma. Ele é impossível de apagar, não por ter exposto a imagem do Batman como uma farsa, mas porque a cafonice fez com que parecesse ainda mais perturbadora, apesar de ainda assim um quê de intensidade ter sido transmitido. E o capuz dele nunca foi tão bom. Nós literalmente sonhávamos com a textura daquele capuz: será que era de borracha, de plástico, de alguma outra coisa? Quem desenhou aquelas sobrancelhas? Por que as orelhas de morcego são tão pequenas, e ainda assim perfeitas? Essa alquimia confundiu mestres posteriores do figurino de Hollywood. Se o Batman for um barômetro dos sentimentos coletivos a respeito de autoridade e do poder do estado, então Adam West era uma imagem da contracultura do Batman, o equivalente a indicar um porco à presidência. Em qualquer época, temos o Batman que merecemos. A versão atual de Christopher Nolan toma o Batman brilhantemente reacionário e niilista de Frank Miller da década de 80 e destila toda a tragédia – deixando um Batman psicopata com o apoio do Estado para a nossa era de vingança remota triunfal. Ele é o avião tripulado e manipulado por controle remoto da guerra urbana do século 21.

No entanto, o personagem não fica parado no ponto. Todos os Batmans contraditórios ecoam em cada versão sucessiva, elevando a linha de base de incoerência do original. Retorne mais uma vez à Detective Comics número 27. Ali, você descobre que o personagem que dá o ponto de vista da história não é Wayne nem Batman, mas sim o Comissário Gordon, que parece pensar no Batman como uma extensão furtiva de seus próprios impulsos negados. O verdadeiro Batman entra em foco nessa encruzilhada, em que uma criatura digna de Franz Kafka – que surge de sua toca subterrânea vestindo sua identidade traumática humilhante no lado externo do corpo, como a carcaça de um inseto – encontra os devaneios sádicos de um policial cansado e sedentário.

Para dar sentido a tudo isso, para resolver esta nuvem de contradições, seria necessário retornar ao início: seria necessário ter 2 anos de idade e lembrar-se de como foi a sensação de ter o primeiro vislumbre de um vingador encapuzado cruzando o céu noturno, com a capa esvoaçando enquanto atacava malfeitores lá do alto. Você precisaria de uma lancheira.

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