Quando ninguém esperava, David Bowie saiu da aposentadoria e anunciou o retorno ao mundo da música. Este é apenas mais um capítulo da saga enigmática de um dos maiores e mais persistentes mitos do rock
Redação Publicado em 08/02/2013, às 11h41 - Atualizado em 11/03/2013, às 12h42
Por Andy Greene
No estúdio magic shop, em nova York, aqueles trabalhos ficaram conhecidos como “as Sessões Secretas”. Depois abreviaram para “o Segredo”. “A gente dizia um para o outro: ‘Acabei de receber um telefonema sobre o Segredo’. Ou: ‘O Segredo vai chegar em duas semanas’”, conta Steve Rosenthal, proprietário do local. “Não contei nem para os meus filhos quem estava trabalhando lá. Para ninguém.” Em 8 de janeiro, dia de seu 66º aniversário, David Bowie finalmente revelou o segredo ao mundo: o primeiro álbum de estúdio dele em dez anos, The Next Day, sairia em 12 de março. Um vídeo do melancólico primeiro single, “Where Are We Now?”, foi colocado no ar e rapidamente visto quase 1 milhão de vezes.
Bowie não dá uma entrevista desde o fim da turnê de 2004, depois de um enfarte; quase uma década de silêncio depois, muitos fãs achavam que ele havia se aposentado. “Na verdade ele está muito bem de saúde”, diz o produtor de longa data, Tony Visconti. “Ele só estava cansado de tudo.”
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O músico começou a compor para The Next Day em um estúdio caseiro em Nova York há dois anos e meio. Em novembro de 2010, ligou para Visconti, um veterano de álbuns clássicos de Bowie, falando sobre incrementar as músicas. “Fiquei chocado”, diz Visconti. “Me deixou muito feliz. Começamos a trabalhar poucos dias mais tarde.”
Após gravar as demos em um pequeno estúdio no East Village, Bowie tirou uns meses para escrever as letras. Depois, voltaram a se reagrupar com uma equipe rotativa de músicos (incluindo parceiros de longa data de Bowie, como o baterista Sterling Campbell e a baixista Gail Ann Dorsey) no mais espaçoso Magic Shop, para a primeira das várias sessões esporádicas realizadas nos últimos dois anos. “Sentávamos na sala de controle, tomávamos espressos com biscotti e ele nos mostrava músicas no violão”, conta o guitarrista Earl Slick, que começou a tocar com Bowie em 1974. “Então eu pegava minha guitarra e tocava até a chegarmos a um ponto em que ambos estávamos satisfeitos. Duas das músicas têm um som meio Stones, quase como Diamond Dogs também tinha.”
Tony visconti produz os álbuns de David Bowie desde Space Oddity (1969). Eles trabalharam juntos em muitos dos maiores sucessos de Bowie, incluindo “Heroes”, Young Americans e Scary Monsters. Depois de uma longa pausa, uniram forças novamente no início da década passada para Heathen e Reality. Há dois anos, Visconti começou a trabalhar com Bowie no agora ansiosamente aguardado The Next Day.
Uma discografia selecionada com tudo o que David Bowie fez de melhor... e algo mais.
A Rolling Stone conversou com Visconti sobre as sessões secretas da dupla, como a história medieval inglesa inspirou algumas das músicas e por que é improvável que Bowie faça uma turnê – embora ainda haja a possibilidade de um único show.
Houve algum momento nos últimos anos em que você pensou que Bowie nunca mais gravaria novamente?
Fiquei um pouco assustado depois que ele teve o problema no coração. David também ficou assustado. Não conversamos por um ano depois daquilo. Ele simplesmente estava se recuperando e não falava com ninguém, mas fui uma das primeiras pessoas para quem ele enviou um e-mail, e ficamos em contato constante desde então. Só que ele falou sobre música somente há dois anos, então nunca me disse que tinha se aposentado, e toda vez que o encontrava, parecia estar com a saúde muito boa.
Vários boatos sobre a saúde dele começaram a circular. Toda vez que almoçava, ou tomava um café com ele, olhava para meu velho amigo, que estava com uma aparência ótima. Só que a música não o interessava até dois anos atrás, e foi aí que ele me telefonou. David disse: “O que acha de fazermos algumas demos?" Fiquei um pouco chocado, para ser sincero – foi tão casual. Foi simplesmente o tópico seguinte na discussão.
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Como o processo começou?
Eu estava trabalhando em outro projeto em Londres, e ele não sabia disso. Falou: “Bom, quando você volta?” Respondi: “Daqui a alguns dias”. Na manhã seguinte ao meu retorno, estava no estúdio com ele tocando baixo. Eram Sterling Campbell na bateria, Gerry Leonard na guitarra e David nos teclados. Ficamos neste pequeno estúdio no East Village [em Nova York] fazendo demos por uma semana. Fiquei me beliscando, não podia acreditar que aquilo realmente estivesse acontecendo. Do nada para esta gravação de demos.
Ele tinha músicas compostas a esta altura?
Sim, ele as compôs em casa. Tinha um gravador digital de oito ou 16 faixas. Elas estavam bem redondas. David teve boas ideias para linhas de baixo e padrões de bateria. Rapidamente pensamos nos acordes e os escrevemos no papel. Gerry Leonard e eu lemos a folha de acordes. A sala tinha cerca de 2,5 m por 2,5 m, incluindo a bateria. Estávamos amontoados, sem fôlego depois de uma hora ou duas.
O que despertou tudo isso? Ele estava parado há tantos anos...
David simplesmente disse: "Estou com vontade de compor novamente”. Não sei quanto tempo antes começou a escrever, ele simplesmente apareceu com oito músicas.
Quantos dias vocês passaram fazendo demos no estúdio no East Village?
Passamos cinco dias e só gravamos alguma coisa no último dia. Ficávamos escrevendo notas. No quinto dia, foi difícil lembrar o que fizemos no primeiro, mas acabamos conseguindo. Então, ele desapareceu por quatro meses e disse: “Vou começar a compor agora”. David escreveu mais músicas e as elaborou ainda mais, veio com letras e melodias, que não tinha no começo. Só que isso é típico de todo álbum em que comecei a trabalhar com ele. Scary Monsters, todo disco começava com talvez uma música pronta e dez ideias, então é normal.
O que aconteceu depois?
Em abril de 2011, entramos em um estúdio no centro de Nova York. Só trabalhamos por períodos de duas semanas. Tirávamos até dois meses de folga depois de cada período e ele escrevia mais coisas. Eu escutava e tinha algumas ideias, nos comunicávamos constantemente. Então, isso foi cerca de 18 meses atrás. Se você somar todas as semanas no estúdio, provavelmente passamos três meses e meio, na verdade.
Você disse que o primeiro single, "Where Are We Now?" (ouça abaixo), não é como as outras músicas no álbum. Elas também fazem uma retrospectiva da vida de Bowie?
Na verdade, não – só essa. É realmente a única desse tipo. Todas as outras faixas no álbum são uma espécie de observação. Ele escreve na terceira pessoa. Algumas delas pertencem à sua vida, mas outras são coisas como um comentário social. David estava lendo muitos livros sobre história medieval inglesa e compôs uma música sobre história medieval inglesa. É a faixa-título, "The Next Day". É sobre alguém que era um tirano, muito insignificante; eu nem sabia de quem ele estava falando, mas, se você ler a letra, é uma história bem horrível.
Você disse que há cinco rock músicas de rock no álbum.
Sim. "The Next Day" é bem rock. O mesmo acontece com "The Stars (Are Out Tonight)" – é bem roqueira também.
As faixas não-rock são mais suaves? Qual é o clima?
São músicas mais funk, em mid-tempo. Muito evocativas. "Dirty Boys", a segunda faixa, é muito vulgar.
Em que sentido?
É obscura e sexy. Há um solo de sax fantástico. Sabe, David toca sax barítono, mas convidou seu amigo Steve Elson para tocar o instrumento neste álbum. Acho que Steve estava na banda do Saturday Night Live. É um cara baixinho, tem um sax barítono enorme e toca um solo sujo nesta faixa que parece música de strippers dos anos 50. Bem à moda antiga... não ficaria deslocada em Young Americans.
Conte sobre "Dancing Out in Space".
É uma faixa bem rápida. Tem uma batida Motown, mas o restante dela é completamente psicodélico. Tem uma vibração muito flutuante. Usamos um cara chamado David Torn, que toca guitarra; ele vem com um monte de equipamentos com os quais cria essas paisagens aurais, e as usa em um contexto de rock com todo esse som ambiente. É louco, um som completamente louco nesta faixa.
E quanto a "Boss of Me"?
É uma das mais lentas, funk. É bem sólida. Há um pouco de Young Americans ali, mas realmente não é... É um novo tipo de direção para ele, melodicamente. A faixa não soa como um Bowie típico, mas é muito boa.
OK. Fale sobre "Heat".
Bom, ela encerra o álbum e é muito dramática. Não tenho muita certeza sobre o que ele canta nela, mas é uma balada clássica do Bowie. Ele canta com a voz mais bonita, uma voz muito profunda, muito sonora, e não posso revelar muito sobre a faixa porque, sinceramente, não sei exatamente do que trata, se é sobre estar em uma prisão real ou ficar preso em sua mente. Novamente, com certeza não é sobre ele – está cantando como a voz de alguém.
Conte sobre "I'd Rather Be High".
Há algumas músicas sobre guerras mundiais, sobre soldados. Uma delas é "How Does the Grass Grow", sobre a maneira como soldados são treinados para matar outros soldados, como têm de fazer isso tão impiedosamente. "How Does the Grass Grow" é parte de um cântico que aprendem enquanto golpeiam um boneco com suas baionetas. "I'd Rather Be High" é sobre um soldado que saiu da guerra, está esgotado e, em vez de se tornar um ser humano novamente, acho que lamenta "I'd rather be high/ I don't want to know/ I'm trying to erase these thoughts from my mind" [Preferia estar chapado/Não quero saber/Estou tentando apagar esses pensamentos da cabeça].
Quem tocou no álbum?
Tivemos dois bateristas. O principal foi Zachary Alford, e Sterling Campbell também tocou em várias faixas. Foi uma pena – Sterling estava nas sessões de demo no começo, mas não sabia quando o álbum começaria e já tinha se comprometido com uma turnê com o B-52s. Chamamos Zach para substituí-lo e ele foi incrível no álbum. Só que Sterling também está presente, em músicas como "Valentine's Day" e "(You Will) Set the World on Fire", que é outra faixa quente, outro grande rock no disco.
O baixo foi predominantemente de Gail Ann Dorsey e ela tocou fenomenalmente bem no álbum, além de fazer alguns vocais de apoio com David. O outro baixista, que tocou em quatro ou cinco faixas, foi Tony Levin. As guitarras são de Gerry Leonard, que tocou em Heathen e Reality e é o diretor musical de Bowie. David Torn na outra guitarra de base. E também conseguimos que Earl Slick fizesse alguns solos fantásticos e tocasse guitarra pesada em algumas faixas. Toquei baixo em duas músicas do álbum, e é isso. David tocou teclado e violão, e também um pouco de guitarra.
Foi difícil manter isso em segredo?
Foi muito fácil manter segredo porque somos muito leais a ele. Eu o conheço há 45 anos e todos na banda o conheciam há mais de 10 anos. Amamos o cara. Ele disse: “Guardem segredo e não contem para ninguém, nem para seu melhor amigo”. Perguntei: “Posso contar para a minha namorada?” Ele respondeu: “Pode, mas ela não pode contar para ninguém”. Então, todos tinham de explicar por que estavam saindo para trabalhar de manhã, onde estavam indo e com quem estavam gravando. O grande negócio foi não contar nem para o melhor amigo. Os fãs de Bowie são imprevisíveis – se tivessem ouvido uma notícia dessas, o disfarce teria sido descoberto há anos. Uma pessoa vazou informações, mas ninguém acreditou nela...
Quem?
Robert Fripp! Ele foi convidado para tocar no álbum, não quis e, depois, escreveu em seu blog que tinha sido convidado. Só que ninguém acreditou muito nele. Foi um pouco agitado por alguns dias, mas todos disseram: “Como pode ser verdade? Ninguém mais falou disso”.
A grande pergunta: você acha que Bowie fará uma turnê?
Ele diz que só vai tocar se tiver vontade, mas nada de turnê. Se ele quiser fazer um único show em Nova York ou, não sei, Londres, só fará se tiver vontade, e deixou bem claro para a gravadora que não faria nenhuma turnê ou qualquer tipo de promoção ridiculamente longa do álbum. Foi ideia dele lançar a faixa à meia-noite do dia do seu aniversário e deixar as coisas rolarem.
Você realmente acha possível que ele só faça um show?
É possível, se ele tiver vontade. Falei com David há dois dias e ele disse: “Estou realmente decidido a não fazer uma turnê”, e acrescentou “talvez, talvez faça um show”, mas ninguém sabe quando.
A capa do álbum é um tanto intrigante...
Acabei de receber. Não tinha certeza de que era a capa.
É de verdade.
Achei que algum fã tinha feito uma capa de brincadeira.
Também achei, mas é verdadeira.
[Risos]
Alguma opinião?
Achei ótima! Tem um bom espaço para ele dar um autógrafo no meio.
Ziggy tocou Guitarra (e falou)
Em 1972, David Bowie conquistava os Estados Unidos na pele colorida do extraterrestre Ziggy Stardust. O jornalista Timothy Ferris acompanhou parte da lendária turnê que garantiria um capítulo especial na vida de Bowie – e também nos livros de história da cultura pop.
Um olho é verde, o outro alterna entre verde e laranja. As botas são de um vermelho brilhante, com saltos de mais de 6 centímetros. A blusa é laranja e transparente. O cabelo, tingido da cor de uma cenoura lustrosa, é empinado reto acima de sobrancelha. David Bowie já era magro antes de chegar à América do Norte e perdeu mais peso desde então; sua pele lisa parece esticada, ligando cada osso como se fosse um fio de telégrafo passando por cada poste. Ele muda de expressão constantemente, como o vento soprando sobre a superfície de um lago, como eletricidade estática. Tudo na aparência parece extremo. Ele está sentado reto em uma poltrona no quarto de hotel em Cleveland. Do outro lado da janela há vários prédios novos – parece o mostruário de uma construtora. Dois repórteres – um de um jornal local, outro da revista Creem – entrevistam Bowie. Ele responde com uma voz suave, quase um murmúrio. Encara o interlocutor, depois olha para o chão. Tudo em seu comportamento parece moderado.
“Você acha que toda a cena bissexual da Inglaterra deve muito a Ray Davies?”, pergunta o Sr. Cream. “Acho que sempre houve uma cena bissexual na Inglaterra”, diz Bowie. “Eu sei, mas quero dizer, por ter trazido isso à tona”, o repórter insiste.
O Sr. Jornal de Cleveland interrompe: “Davies não fica falando disso, entretanto. Ele parece ter se esquivado do assunto. Em duas entrevistas específicas que li, ele evitava falar a respeito.” Bowie completa: “Não é algo que cabe a mim interpretar”.
“O grande enredo por trás de ‘Five Years’, como surgiu?”, diz o Sr. Jornal de Cleveland.
“É...”
“É obviamente uma ficção científica, uma coisa futurista, mas como surgiu o lance de decidir que o mundo iria terminar em cinco anos?”
“Aquela tinha sido uma tarde ruim.”
“Você compõe a maioria das músicas no piano?”
“Em tardes ruins.”
“Qual a história por trás da frase ‘I wanted TV but I got T. Rex’ (‘Queria TV mas só tinha T. Rex’)? De onde veio essa música?”
“Foi escrita para Marc Bolan. Foi a primeira que compus para outra pessoa. A banda deles estava a ponto de se separar e eu disse para não fazerem isso, porque achava que era muito boa. Falei que escreveria um single de sucesso para ele. E escrevi. Foi fácil.”
Criado em bairros barra pesada no sul de Londres, David Jones é filho do relações públicas de um orfanato. Um único soco em uma briga quase lhe custou o olho esquerdo. A cirurgia preservou parte da visão, mas o deixou com a pupila paralisada. O reflexo de luz forte no fundo da retina faz com que o olho pareça laranja ou dourado, como o de um gato pego pelo farol de um carro. “Isso me tornou bem pacifista”, diz Bowie. “Fiquei de cama tanto tempo depois disso, com as operações no olho e tudo mais. Por causa de um único movimento perdi sete ou oito meses.”
Ele abandonou a Bromley Technical High School, passou por uma fase infeliz como artista comercial em uma agência de publicidade, formou um grupo chamado David Jones and the Lower Third e lançou um álbum. Quando o David Jones da banda Monkees ganhou proeminência, o David Jones de Bromley mudou o sobrenome para Bowie, que também é o nome de um tipo de faca.
Intermitentemente por alguns anos, Bowie se apresentou com a trupe de mímicos de Lindsay Kemp. Ele diz que a experiência foi importante para ajudá-lo a criar a performance de rock altamente estilizada que executa hoje. Na Inglaterra, fez um show que incorporava mímicos maquiados, mas não os trouxe para a turnê americana por causa dos custos.
Bowie é vago quanto a idade, mas fica claro que está no meio de seus 20 e poucos anos e que tem atuado nos palcos de um jeito ou de outro por mais de um quarto da vida. Já gravou cinco álbuns, incluindo The Man Who Sold the World e dois pela RCA, Hunky Dory e The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders of Mars. Debates sobre bissexualidade à parte, Bowie é ao mesmo tempo gay e casado com a esposa. Eles têm um filho, Zowie.
David Bowie e a esposa chegaram a bordo do Queen Elizabeth II e pegaram o ônibus rumo a Cleveland. Bowie não gosta de voar, mas descobriu que gostava do ônibus Greyhound; frequentemente o cantor sentava sozinho nos fundos, escrevendo suas músicas ou observando a paisagem pela janela. Os primeiros shows tiveram reações dúbias da crítica. Alguns resenhistas pareceram desapontados por Bowie não ser uma espécie de Super Alice Cooper, uma rainha do rock gay e um degenerado elétrico o tempo todo. Uns poucos momentos no palco podem ter contentado essas almas – como quando Bowie se ajoelha e faz um tipo de sexo oral na guitarra de Mick Ronson – mas, no geral, todos eles tiveram que encarar: não houve ninguém desmunhecando no palco.
Assim, as avaliações variaram enormemente. A minha foi que Bowie é a figura mais forte a surgir no rock em anos. É um daqueles artistas que comandam com facilidade o olhar do público a cada movimento no palco. Em sua teatralidade controlada, sua habilidade de transmitir versos altamente comprimidos e na ansiedade constante que consegue fazer brotar na plateia, me lembra Bob Dylan. Ele absorveu Dylan, os Beatles, Elvis e mais meia dúzia de outros, mas o que emerge disso é substancialmente dele próprio.
O show tem todo um fator de espetáculo. Os Spiders from Mars usam trajes colados e luminescentes, cabelos tingidos e riffs precisos. Bowie não para de se mexer, fazendo poses reminiscentes de dúzias de outros roqueiros mais antigos e se comporta muito como um fantoche. Apesar de toda essa preparação, o show retém muito de espontaneidade em uma época em que os concertos da maior parte das grandes estrelas atuais parecem enlatados.
Bowie conseguiu fazer apresentações em Cleveland e Memphis antes de ser alcançado por uma gripe. Quando chegou ao Carnegie Hall, já estava com febre. A gripe havia progredido para um estágio desgastante quando visitei Bowie em seu quarto no Plaza alguns dias depois. Ele respondeu às perguntas como alguém gripado responderia. O olhar voltado para o vazio por um longo tempo, seguido de uma sequência preocupada de palavras. “Não sou um intelectual em hipótese nenhuma”, ele disse, fungando. “Fiquei muito preocupado quando vi algumas propagandas pré-turnê sobre mim nos Estados Unidos, que me citavam como fazendo parte de algum tipo de intelligentsia new wave. Também não sou primitivo. Me descreveria como um pensador tátil. Vou pegando as coisas... Sou uma pessoa fria. Uma pessoa muito fria. Tenho um impulso lírico, emocional forte e não sei bem de onde isso vem. Não tenho certeza se sou mesmo eu que transpareço nas músicas. Elas saem e eu as ouço depois e penso, bem, quem quer que tenha escrito isso tinha um sentimento muito forte quanto ao tema delas. Não consigo ter sentimentos assim tão fortes. Fico anestesiado. Me vejo andando por aí anestesiado. Sou meio que um homem de gelo.”
Psicologia à parte, Bowie falou sobre as dificuldades de mapear sua carreira como A Estrela dos Anos 70. “É muito difícil determinar que rumo esta nova era do rock vai tomar. Há definitivamente algum tipo de nova era surgindo... Há uma volta do espírito do entretenimento. Mas há também uma mistura de relevância social, é bem difícil determinar se os próximos artistas vão existir como figuras ainda maiores por causa do mérito como entretenimento ou se terão esse status grandioso por causa de algum tipo de valor social mais nobre.”
Com Let’s Dance (1983), David Bowie atingiu um nível de sucesso que não havia conquistado antes. O álbum chegou ao número 1 da parada britânica e ao top 5 nos Estados Unidos, originando três singles de sucesso: “Modern Love”, “Let’s Dance” e “China Girl”. No ano seguinte, com o lançamento de Tonight, o artista parecia decidido a seguir a fórmula dançante do sucesso e tentou explicar sua nova posição ao repórter Charles Shaar Murray.
Então você acredita que o pop em sua melhor forma é subversivo e perigoso, ao contrário dos itens de consumo inofensivos de hoje?
É muito interessante ouvir Julien Temple falando sobre “os velhos tempos”, quando ele pensa na época do Sex Pistols. Você menciona 1977, e ele diz: “Oh, aquela época era tão perigosa”. Bem, 1977 não faz tanto tempo assim, faz? Se as coisas forem cíclicas como devem ser, então aquela época está destinada a voltar. Não peguei o grosso disso tudo, porque foi no período em que eu estava me ajeitando em Berlim, e lá isso veio de outra direção, sem toda aquela raiva e ódio presente na Inglaterra. Para mim é tudo como filmagens de arquivo, e não consigo ter o mesmo sentimento. Realmente me arrependo de ter perdido isso. Imagino como eu teria recebido. Adoraria ter visto os diálogos na televisão e o clima nas casas noturnas da época. Claro, é um clima muito mais saudável. Claro que é.
Você consegue se ver contribuindo com outra ruptura dessas?
No rock, acho muito difícil... Depois do ponto de vista inicial que você coloca quando começa. A menos que seja capaz de adotar mais que essa postura inicial, é difícil surgir com outra que tenha a mesma força que a primeira tinha. Para mim, o começo dos anos 70 foi o que me deu abertura. Não acredito que eu poderia contribuir tão agressivamente novamente. Mas o interessante do rock é que você nunca acha que vai durar muito tempo. Tenho 37 anos, quase 38, e me pego pensando: “Ainda estou fazendo isto!” Por isso você está sempre redefinindo tudo o tempo inteiro. O rock continua mudando tão rápido e tão furiosamente, que fica impossível planejar qualquer coisa com antecedência. Tenho duas ou três coisas em mente: fazer mais trabalhos com Iggy Pop e tentar compor algo que seja extraordinário e ousado. Estas são as únicas coisas na música que eu sei que estarei fazendo no futuro. Além disso, não sei. Nunca sei de nada.
Chegando ao fim dos anos 80, especificamente em 1987, David Bowie já estava estabelecido como ícone não só musical, mas também de estilo. E as duas décadas de carreira já permitiam que ele se referisse com naturalidade ao passado, como fez nesta entrevista a Kurt Loder.
Você tinha alguma noção do que era estilo quando criança?
Sim, eu gostava de como as coisas combinavam e me interessava em saber como isso funcionava. Mas eu acho que sempre fui atraído pelo tosco [risos], então isso acabou me salvando, mesmo: eu nunca estava muito inteirado no gosto sofisticado quando a coisa ficava sofisticada demais. Eu não me importava com o senso de elegância e estilo, mas gostava quando a coisa ficava um pouco fora do convencional.
Seu personagem Ziggy Stardust significou um ousado distanciamento do rock. Como foram aqueles primeiros shows?
O difícil foi convencer a banda a fazer tudo aquilo.
Eram caras do rock, dos pubs, não?
Sim, esse era o maior problema, aliás, o fato de a gente não pensar nem um pouco igual. Era tipo: “Cara, qual é – não vamos ser apenas mais uma banda de rock, pelo amor de Deus” [risos]. Mas eles eram uma bandinha incrível, sabe? E embarcaram na ideia assim que descobriram que atrairiam mais garotas. Virou tipo: “Ei, elas gostam destas botas”. Pensei: “É, agora sim”. Era o que precisava. Foi só incluir uma pitada de sexo no meio e eles piraram. O cabelo deles de repente virou... oh, eram todos de cada cor possível e imaginável. Justo aqueles caras que duas semanas antes não tiravam os jeans de jeito nenhum [risos].
De onde vieram as roupas da fase Ziggy? Era você que as desenhava?
Não, foi um designer de quem eu já tinha visto as roupas, um cara chamado Kansai Yamamoto. Agora, claro, ele é um designer internacional, mas na época era muito experimental – as coisas dele eram bem diferentes do resto. Por isso as primeiras eram influenciadas por ele, e aí eu o conheci, e ele fez todas as que você realmente conhece – as roupas, as partes destacáveis, tudo aquilo. Ele disse: “Oh, essa banda é esquisita – hihihi – eles vestem minhas roupas”.
Você concebeu Ziggy como o rock star de plástico definitivo; ironicamente, a música que “ele” fez era ótima.
Eu sei, eu sei. Agora soa legal, sim. Acho irônico quando vejo uma banda como, digamos, o Sigue Sigue Sputnik, que é tão outré, tão absolutamente na veia de Ziggy, sabe? Tanto tempo depois, e a cabeça colorida dele ainda desponta por aí.
Aladdin Sane foi feito para ser uma transição consciente depois do personagem Ziggy ou algo completamente diferente?
Era para ser... Uma passagem: saindo de Ziggy sem saber de verdade para onde estava indo. Era um pouco efêmero, porque era algo que ainda estava no ar.
Você elaborou a maquiagem de Aladdin Sane sozinho?
Fui eu que inventei aquela coisa do raio no rosto.
O que significava?
Um relâmpago. Algo elétrico. Em vez de, tipo, a chama de uma lâmpada, achei que ele provavelmente seria marcado por um relâmpago. Uma coisa meio óbvia, já que ele era uma espécie de garoto elétrico. Mas a lágrima foi ideia de Brian Duffy, um fotógrafo inglês. Ele colocou isso depois. Achei bem legal.
E como Aladdin Sane se transformou na fase do disco Diamond Dogs?
Sabe-se lá Deus! Sei que o ímpeto para Diamond Dogs surgiu tanto de Metrópolis quanto do livro 1984 – eram as duas coisas que influenciaram. Na verdade, Diamond Dogs era para ser uma nova versão de 1984 – tentei conseguir os direitos musicais e transformá-lo em um musical. Mas meu escritório não se dignou a fazer algo a respeito, e então descobri que se ousasse encostar na obra, a sra. George Orwell iria me processar. Então, de repente, tive que mudar de ideia no meio da gravação, entende?
Young Americans, o álbum após Diamond Dogs, marcou uma direção artística nova para você – mergulhada nos ritmos negros dançantes. O que acha do pop negro atual?
Não há ninguém que me fascine. Não estou mais na mesma sintonia de Lionel Ritchie. Gostei de “Word Up”, do Cameo, então fui ouvir o álbum e dormi. O rap é a única coisa ousada no momento – Run-D.M.C é um dos meus favoritos. Mas tenho dificuldade com muito da música negra agora – é tudo meio dançante, não tem nada vulnerável ali, entende? Acho que o Prince é provavelmente o melhor da safra atual.
Em 1976, você se mudou para Berlim, e no ano seguinte começou um período avant-garde com o lançamento dos álbuns Low e “Heroes”. O que você acha da música de vanguarda hoje?
Bem, na América ela parece ter morrido.
Parece ser mais voltado para cada carreira.
Isso é interessante. Há Philip Glass, que agora está no zênite de sua carreira profissional, e Laurie Anderson, que faz shows na TV e nos palcos. Na Alemanha, esse período acabou. Acho que estava chegando ao fim na época em que deixei Berlim. O que tem surgido agora em Düsseldorf é bem chato.
E o Kraftwerk? Em “Heroes” há uma música cujo título é uma homenagem a Florian Schneider, que faz parte do grupo. O que você acha das músicas mais recentes deles?
São impecáveis como sempre. E boas, dentro de seu gênero. Mas eles são como artesãos – eles decidiram que vão fazer uma cadeira de madeira em particular, como desenharam, e cada uma delas será lindamente executada, mas todas as cadeiras serão iguais. É como uma indústria caseira. São artesãos.
Acha que o rock mudou?
O rock and roll é feito para nós – não para os garotos. Nós compomos, nós tocamos, nós ouvimos. Nós ouvimos rock. Os garotos ouvem outra coisa – eles têm uma nova necessidade musical, de um jeito diferente.
Você mudou muito com o passar dos anos?
Sou hoje muito mais como eu era em 1967, digamos, do que como era em 1977. Me sinto assim pelo menos. Mais alegre e otimista do que era – o contrário de quando me sentia deprimido e meio niilista no anos 70. Acho que, nesse sentido, completei o ciclo.
Em 1999, quando lançou ‘Hours...’, Bowie já era conhecido como músico, ator, pintor, patrono das artes e pioneiro da internet. E tudo sem perder o charme, como comprovou a repórter Mim Udovitch ao entrevistá-lo.
Você é absurdamente inteligente, não?
Não! Não mesmo. Sou completamente instintivo.
Não se vê como intelectual?
De jeito nenhum. Nem remotamente! Coloque-me em uma sala com Brian Eno, que é um intelectual de verdade, e fico desnorteado.
Qual é a sua memória mais antiga?
É muito estranha. Eu estava deitado, devia ter 4 anos. Senti uma presença no jardim, então fui até a janela e estava muito escuro. Havia dois boxers, ou pelo menos pareciam boxers, só que em duas formas espectrais brancas e brilhantes, lutando. Eles viraram e olharam para mim, e eu corri de volta para a cama, cobri a cabeça e não consegui mais dormir.
Você se lembra dos seus sonhos?
Sim, e eu os transcrevo.
Conte um.
Não vou fazer isso, mas digo que pelo menos 33% das letras que escrevo têm referências aos sonhos.
Exatamente 33%?
Digamos 33%, uma vez que essa é a velocidade dos velhos LPs de vinil em RPM. Sonhos a 33%. três anos mais tarde, em 2002, david bowie revelou à mesma Mim Udovitch que já parecia estar plenamente consciente de quem ele realmente era – com uma pequena ajuda da família.
Ei, você não está fumando! Parou?
Parei. Mas você quer fumar?
Não, tudo bem. Mas estou chocado por você ter parado. É um grande feito.
Não é? E isso é o resultado de ter uma filha? Acho que sim. É o resultado de ter passado a maior parte do inverno fumando na varanda? Em grande parte.
Falando sobre o novo disco, Heathen, você se descreveu como sofrendo de “um bipolarismo fraco”.
Credito isso ao fato de eu ser canhoto. É o sinal do diabo, como todo mundo bem sabe. Embora eu tenha lido que os canhotos são bem mais espertos.
E estranhamente você se lembrou disso.
Implicavam comigo quando eu era pequeno por ser canhoto.
Quem implicava?
As crianças. Na escola, me lembro muito bem das crianças rindo de mim porque eu desenhava e escrevia com a mão esquerda. Era algo como: “Oooh, você é o diabo”.
Quando David Bowie lançou Reality (2003), nada indicava que seria o último disco dele em dez anos. Em entrevista a Austin Scaggs, ele não dava sinal de que queria parar e deixava clara a paixão pela música.
Seu primeiro instrumento foi o saxofone. Por que o sax?
Meu irmão era muito fã de jazz. Ele tocava para mim coisas bem diferentes, como Eric Dolphy e John Coltrane. Eu queria um barítono, mas ganhei um sax alto.
Você tem uma coleção de instrumentos?
Perdi e quebrei tanta coisa – e isso realmente me irrita. A única coisa que tenho e é vagamente interessante é meu stylophone, da época de Space Oddity. Ao longo dos anos, doei muita coisa para a caridade. É aquilo, você pensa: “Oh, não posso ficar dando tanta importância para isso”. E depois, se dá conta: “Onde é que eu estava com a cabeça?”
Quando foi a última vez que uma música fez você chorar?
Há uma que me deixa de um jeito que nenhuma outra é capaz. Chama-se “Four Last Songs”, composta por Richard Strauss. Particularmente na execução de Gundula Janowitz. Essa definitivamente consegue me levar às lágrimas.
Você coloca música quando acorda?
Sim, coloco. Ainda ouço vinil. Depois de jogar muita coisa fora, devo ter ainda uns dois mil discos. É a nata de toda a coleção que tive. É muito diversa. Tem de tudo, do blues do Delta a Jacques Brel. São poucas as músicas de que eu não goste ao menos de algum aspecto – exceto country & western, que não suporto.
Qual foi o último grande show que assistiu?
Este ano vi o Radiohead no Beacon Theatre [em Nova York]. Suspeitava que eles eram a melhor banda no momento, e a apresentação me convenceu. Mas também vi Lou Reed no Town Hall. Achei magnífico. Havia algo tão fundamental no que ele fez, e isso lhe deu tanto espaço para entrelaçar anedotas e comentários espirituosos – algo em que Lou é muito bom. É estimulante, porque significa que não importa a sua idade – é tudo uma questão de intenção, integridade e o poder de afetar as pessoas.
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