<b>Faça você mesmo</b><br> Um flagrante do icônico Festival O Começo do Fim do Mundo, ocorrido em 1982. Para divulgar o movimento, os punks recorriam a fanzines e flyers - Reprodução

Os Selvagens da Noite

Alguns dos principais protagonistas do punk BR comentam o auge do movimento e o que os motivava na época

José Flávio Júnior Publicado em 16/05/2017, às 15h45 - Atualizado às 16h46

‘‘Punk no brasil era Ramones, Sex Pistols e machadada.” A constatação é de João Gordo, vocalista da banda mais lembrada internacionalmente quando o assunto é o punk rock produzido por aqui. Ainda que com um tom bem-humorado, o cantor do Ratos de Porão diz isso por reconhecer que os tempos áureos do movimento no país foram marcados por brigas de gangues e facções, em um clima tão beligerante que acabou definindo os rumos do gênero. “Eu fui para o metal porque lá tinha um monte de mulher e não tinha treta”, assume Gordo, fazendo referência ao período em que o Ratos, seguindo o exemplo de bandas inglesas, apostou no crossover de punk com heavy metal e passou a frequentar outra cena em meados da década de 1980.

A grande peculiaridade dessa história é que o principal responsável para o punk nacional ser tão violento é um filme chamado The Warriors, de 1979, que aqui ganhou o nome de Os Selvagens da Noite. Esse cult movie que retrata gangues de Nova York fez a cabeça de dez entre dez punks da cena. “Eu saí do cinema querendo dar uma machadada em alguém. Meu sonho passou a ser jogar coquetel molotov nas pessoas”, diz Gordo. “O filme ilustrava o que a gente já era”, pontua Ariel Uliana Jr., vocalista do Invasores de Cérebros. “Já havia rivalidade entre as turmas, até mesmo entre o pessoal da rua de cima e o da rua de baixo. Depois do filme, ficou mais agressivo. Todo mundo descolou um canivete de mola para brigar”, completa.

Gastão Moreira, diretor de Botinada: A Origem do Punk no Brasil, o documento mais completo sobre a cena nacional, confirma que a influência do longa de Walter Hill foi decisiva para moldar o movimento, muito mais do que as questões estéticas e ideológicas que pautaram o punk original. “Como aqui chegava pouca informação de fora, houve uma má interpretação do filme. A questão da divisão por gangues, de andar uniformizado, isso mexia com a molecada. Até eu, com 13 anos, fiz uma gangue no colégio.” Tina Ramos, a Tina Punk, esposa de Ariel e figura emblemática do movimento por estar sempre presente nos agitos, vai além: “O centro de São Paulo era o próprio cenário do Warriors. A gente ia para o som e não sabia se ia voltar vivo.” A expressão “ir para o som” podia significar ir para um show ou apenas uma festa com som de fita cassete, algo muito comum à época – se alguém tinha um disco, ele era copiado em cassete infinitamente.

Uma turma na zona norte, especificamente na Vila Carolina, era uma das mais antenadas de São Paulo. Eles já faziam circular material de bandas de protopunk, como Stooges e MC5. Clemente Nascimento e Ariel integravam esse núcleo, que também se articulava com donos de lojas de discos, gente com o pé dentro de gravadoras e até com o futuro radialista Antônio Carlos Senefonte, que na hora de batizar seu programa perguntou para os amigos se Kid Vinil soava bem. Clemente tem memória do compacto com “God Save the Queen”, dos Sex Pistols, sendo lançado no Brasil ainda em 1977 – e ele tendo discernimento do que era aquilo. Ou seja, não é precisa a tese de que os punks de São Paulo eram uns ogros sem referência, em oposição aos meninos de Brasília, que conseguiam os discos com seus pais diplomatas.

“Só na Vila Carolina éramos mais de 50 caras comprando discos e começando a fazer som. Em Pirituba, também havia mais uns 50”, lembra Ariel. “Lá em Brasília era meia dúzia de filhinhos de papai que até tinham os LPs, mas isso é movimento? Aqui, a gente roubava disco. Um disco importado custava quase um salário nosso. Era algo com paixão. A gente criou uma coisa com verdade”, completa. A dureza de grana, aliada a uma maneira rude de lidar com o mundo, é citada por Tina para explicar o estilo dos punks da época. “A gente criava o visual. Não tinha dinheiro para inventar muito. Era jaqueta preta, paletó, gravata, batom, sombra, sapatinho, minissaia, cabelo arrepiado, maquiagem carregada. O problema é que ainda estávamos na ditadura e éramos parados toda hora. A polícia achava que a gente era puta. Uma mulher tinha de ter atitude para andar como a gente andava.”

Em 1982, o escritor e dramaturgo Antônio Bivar, um dos maiores entusiastas do punk no Brasil, resolveu levar essa fauna para dois ambientes inéditos: o recém-inaugurado Sesc Pompeia e a boate grã-fina Gallery. Ele havia passado o ano anterior no Reino Unido, atento à explosão da segunda onda do punk (Exploited, Discharge), que teve boa ressonância por aqui. E, como 1982 também foi o ano em que as bandas nacionais conseguiram lançar seus primeiros registros fonográficos (compactos e coletâneas), Bivar encontrou uma cena efervescente, da qual fez questão de se aproximar. “O punk sempre me pareceu muito teatral. O coturno, o cabelo espetado. Muitos eram office boys, como eu tinha sido. Voltei a me sentir adolescente”, recorda o denominado “mestre” pelos novos amigos, hoje do alto dos seus 78 anos de idade.

No Sesc, ele teve a ideia de produzir o festival O Começo do Fim do Mundo, que reuniu 4 mil punks de todos os cantos de São Paulo e do ABC e rendeu imagens que se espalharam pelo mundo e fizeram a cidade ser conhecida como uma Meca punk. “Lembro-me da Lina Bo Bardi [arquiteta modernista que projetou aquele Sesc e outros prédios históricos, como o Masp] chegando toda de preto, curiosa. Fui atrás e ela me perguntou ‘Mas eles não são fascistas?’ ‘Não, dona Lina, são anarquistas’.” No mesmo fim de semana, Bivar lançou seu livro O Que É Punk, mas achou que o ambiente do festival não era o mais adequado para dar os primeiros autógrafos. “Rolaram umas briguinhas”, minimiza, dizendo não se lembrar de ter ido à delegacia interceder pela soltura de alguns punks na segunda noite de evento.

No Gallery, Bivar organizou uma festa pós-moderna para lançar uma edição da revista Gallery Around, que ele ajudava a editar. Sua lábia foi boa o suficiente para convencer os proprietários do título e da casa a colocar o Inocentes na grade de atrações da noite. A condição era a de que não houvesse punks na plateia, apenas em cima do palco. Mas alguns amigos da banda apareceram nos Jardins e Bivar deu um jeito de colocar a gangue para dentro. A performance dos músicos e o comportamento dos fãs já teriam sido suficientes para escandalizar os presentes. No entanto, o show ficou marcado por um gesto do guitarrista Antonio Carlos Calegari, ex-Inocentes. “Ele saiu cuspindo em toda a primeira fila”, diverte-se Clemente.

O músico defende não ter causado um tsunami com sua saliva na elite paulistana, conforme registra essa lenda do punk nacional. “Foi um cuspe direcionado a um cara apenas que ficava me olhando e dando risadinha. Queria ter descido e dado um soco, porque eu era um cara muito irritado. Nessa época, todo mundo era inimigo. Hoje, acho isso equivocado, uma besteira”, lamenta.

Calegari, que ainda se apresenta com o Condutores de Cadáver, lembra que odiava ouvir as gravações do Inocentes à época, por achar tudo tosco, mal tocado e mal gravado. Hoje, sua visão mudou. “Até pela própria ignorância, os punks brasileiros criaram o seu próprio som. Se soubéssemos tocar, copiaríamos o Police, o Gang of Four, como a geração do rock nacional copiava. Eu detestei a coletânea Grito Suburbano, detestei o primeiro disco do Inocentes. Mas, ouvindo agora, acho que ele tem estilo. E música é estilo.” Gordo reforça falando do peso que a cena daqui tem lá fora. “O punk brasileiro é muito respeitado. Tem o Força Macabra, da Finlândia, que canta em português por causa da gente. Só no Brasil mesmo que uma banda como o Ratos não tem valor. É como se a gente não existisse.”

Além de serem fantasmas para produtores de grandes festivais daqui, os punks locais ainda enfrentam cobranças nas ruas. Gordo tem seu carma de “traidor do movimento” para carregar por toda a eternidade. Com seus parceiros é mais suave, mas também rola. “Outro dia, fui em um samba com a patroa e um cara chegou para mim e perguntou: ‘Punk pode vir no samba?’ Pô, por que não?”, relata Clemente. Ele diz ainda sentir prazer em tocar punk rock e falar e pensar sobre tudo o que aconteceu nestes 40 anos. Mas, às vezes, desanima com o que vê nos palcos... “Tem umas bandas que seguem lá atrás, com os mesmos discursos, falando da revolução comunista [risos]. Legal, hein? [risos] Acho que vai dar certo! [risos]”

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