Vladimir Cunha Publicado em 16/05/2011, às 12h45
O Belém Hilton está movimentado nesta noite de sábado. No lobby do hotel, o entra-e-sai de músicos, roadies, técnicos e produtores é constante. Quem não está conversando com os fãs, dando autógrafo ou descarregando equipamento espera pela condução para a Micareta que acontece nesse final de semana na saída da cidade. Do lado de fora um grupo de fãs que não conseguiu entrar se espreme sob a marquise do hotel, procurando abrigo da chuva enquanto é vigiado de perto por um trio de seguranças. A cada van que chega, um cordão de isolamento é montado para impedir que eles avancem em cima dos artistas.
Lá dentro, porém, além dos sortudos que conseguiram burlar a segurança, outro tipo de fã chama a atenção. Com o indefectível visual shortinho jeans/sapato de salto-alto/top e chapinha no cabelo, as meninas mais bem-apessoadas, digamos assim, têm o passe liberado e desfilam pelo lobby atrás de alguém ou de alguma coisa para passar o tempo. No telefone interno do hotel em frente ao banheiro masculino, espero na fila enquanto um grupo de três meninas liga para um hóspede. Alguém atende. Ela pergunta pelo show e por um lugar na van. Em seguida desliga, desanimada. "Ele ficou de ver", diz às amigas. Uma delas avista um rapaz e sai correndo atrás dele. Conversam rapidamente enquanto as outras duas esperam ao telefone. A moça volta e faz um sinal negativo com a cabeça. A que está ao telefone espera mais um pouco, liga de novo e pergunta à pessoa do outro lado da linha se "vai rolar ou não". Entusiasmada, diz para as amigas que está tudo certo e põe o aparelho no gancho. A turma sai em debandada de volta ao lobby do hotel.
Pego o telefone e ligo para o quarto de Dito, produtor e uma espécie de anjo da guarda de Ivete Sangalo. Ninguém atende. Tento novamente. Nada. Na terceira tentativa uma gravação me informa que o hóspede não está no quarto. Começo a ficar preocupado com a possibilidade de ter levado o bolo da produção de Ivete. Se não rolar uma entrevista hoje, a matéria dança, já que o outro dia que tenho ao seu lado é o domingo, em cima de um trio durante mais de quatro horas de Micareta. Enquanto ligo novamente, fico pensando no que pode ter dado errado. Um ataque de mau humor da diva? Ivete cansada de dar entrevistas? Problemas na produção? Ingressos enca-lhados? Vai saber... Estranhos são os caminhos do show business.
Saio em busca de ajuda. Quem salva a minha pele é a recepcionista do hotel. "O Dito?", pergunta ela, "é ele ali com aquele pessoal."
Dito está cercado por uma legião de adolescentes. De longe, dá para perceber que se trata de um sujeito paciente. Ouve as conversas, os comentários sobre a carreira de Ivete e até mesmo os pedidos de ingresso para o show de domingo. E é ele quem guarda as cartas, as fotos, os presentes e toda espécie de oferendas dos fãs para a sua musa. Mais tarde descubro que Dito tem outra missão: subir até o quarto da cantora com os pedidos de autógrafo e esperar que ela assine uma por uma todas as folhas de caderno, fotos, papéis de carta, cartazes e encartes de CD recolhidos no lobby do hotel. Na volta, ainda encontra tempo para conversar novamente com os fãs e entregar os autógrafos de mão em mão.
Me apresento e pergunto se está tudo ok para a entrevista. Dito me cumprimenta e, para o meu alívio, informa que Ivete está me esperando em seu quarto. A cantora está hospedada no 14o andar do Hilton. Por lá, o clima é bem mais tranqüilo. Plantado na porta do elevador, um segurança de walkie-talkie e fones de ouvido guarda a entrada para o corredor que leva à suíte de Ivete. Estranho o silêncio. Enquanto no lobby o circo do pop está armado, aqui o clima é outro. Nada de caçadores de autógrafos e groupies. Muito menos músicos entediados a fim de farra.
De camiseta branca e short preto, sem maquiagem e cabelo amarrado em um rabo-de-cavalo, Ivete me recebe e avisa que podemos conversar ali mesmo no quarto. Longe dos aparatos do show business - sem truques de fotografia, fi-gurinos extravagantes, penteados caríssimos ou plugins do Photoshop - parece mais bonita ao natural do que nas capas de revista ou nas fotos de divulgação. É simpática, mais até do que eu poderia esperar, e me chama sempre pelo nome. Enquanto conversamos consegue conciliar o profissionalismo que a situação exige com uma certa descontração. Em cima da cama, um notebook ligado à internet, de onde atualiza o seu blog e resolve questões de trabalho com seu empresário e sua assessoria de imprensa. "Sou workaholic, bicho. É um caso a se tratar na terapia", diz ela. "Você não sabe a minha alegria quando chego em um hotel que tem conexão wi-fi. Vou logo ligando o notebook. Quando estou muito cansada, peço para dar uma parada. Pelo menos uns 15 dias sem fazer show. Uma semana depois já estou ligando para o escritório pedindo pelo amor de Deus para marcarem alguma coisa."
Ela não está exagerando. Em Belém, na sexta-feira, primeira noite da Micareta, Ivete saiu direto de seu jatinho particular para o show depois de passar a tarde gravando jingles e chamadas de rádio em um estúdio no Rio de Janeiro. São mais de 15 anos de carreira se contarmos o tempo em que cantava nos bares de Salvador. Após tanto tempo subindo e descendo de trios elétricos, tocando por todo o Brasil e aparecendo em programas de televisão, Ivete garante que para ela é como se estivesse fazendo tudo pela primeira vez.
"É uma coisa meio inebriante", responde. "Esse vício de subir no palco, de ouvir as pessoas gritando seu nome, de fazer um show. Sou viciada nisso, Vladimir. Claro que tem a questão do ego e eu estaria mentindo para você se dissesse que essa egotrip não me agrada. Claro que agrada. É fascinante."
"Engraçado você assumir isso com tanta naturalidade."
"Ah... Se você for entrevistar algum artista e ele disser que não gosta disso ele está mentindo. Mas tomo muito cuidado para não deixar que isso me domine. O meu lado estrela fica em cima do palco. Quando desço para o camarim muda tudo. A partir daí a minha vida é outra, o meu assunto é outro. Não dá para ser popstar o tempo todo. Tenho horror a essa história de ser diva, de dar piti, de atormentar a produção dos meus shows com exigências impossíveis. As pessoas não podem ter medo porque Ivete vai chegar. Às vezes, o camarim dos meus músicos tem mais comida que o meu. O que me preocupa mesmo é a qualidade do meu show, um som bom, uma luz boa. É por isso que eu brigo. Odeio apresentar show meia-boca. E até poderia fazer isso, chegar lá, tocar de qualquer jeito, escorada na minha fama ou em uma campanha de marketing qualquer. Mas não é a minha. Não quero sashimi no camarim, mas quero um puta som na hora do show."
Chega o jantar - salmão grelhado com legumes. Enquanto Ivete come, a conversa muda de sua rotina de trabalho para a sua carreira. Ao contrário de seus contemporâneos da axé music, Ivete deu um salto ao se inserir em definitivo como uma artista pop dentro do mercado fonográfico nacional. Chiclete com Banana, Asa de Águia, Ricardo Chaves, há muito nenhum deles lança CDs com músicas inéditas ou faz turnês, restritos que estão ao circuito dos carnavais fora de época e aos blocos do Carnaval de Salvador. Enquanto isso, Ivete se apresenta por todo o Brasil - em média 12 shows por mês com cachês que variam entre R$ 100 e R$ 150 mil, segundo uma fonte ligada à produção da Micareta em Belém -, já vendeu oito milhões e meio de discos, fez seis turnês internacionais, firmou parcerias com Samuel Rosa e Herbert Vianna, teve um DVD produzido pela MTV Brasil e lançou músicas que conseguem sobreviver aos sacolejos e modismos da folia baiana.
Embora faça questão de afirmar que se sente pouco à vontade com o rótulo de "rainha do pop". "Tudo bem que você me chame de 'pop'", rebate ela, séria, "é um direito seu. Mas acho que ainda continuo fazendo música baiana. Minhas raízes estão lá, nesse mesmo som que comecei fazendo no início dos anos 90. Se você disser que eu me-lhorei como cantora, que hoje em dia mi-nha voz é melhor, que o meu show é me-lhor, aí eu sou obrigada a concordar. Só não vou é negar aquilo que eu sou. Na verdade acho que o que eu fiz foi expandir a minha música em outras direções. Mas na essência o que faço ainda é música baiana. Ouço muita coisa. E de tudo isso que ouço, algumas coisas incorporo ao meu trabalho, outras não. Curto Stevie Wonder, Raul Midon, Gil Scott-Heron, George Clinton, Billie Holiday, Los Hermanos, Skank. Tem ainda Maria Bethânia, a minha diva maior. E o James Brown. Rapaz... Toquei com ele em Bruxelas e foi inacreditável. Bati foto e tudo. Ele com aquela capa maravilhosa e eu lá, ajoelhada na frente dele. Na verdade eu ouço o que cai nas minhas mãos e me agrada. Fica tudo misturado no meu iPod."
"iPod? Então você baixa MP3 sem culpa?"
"Ô, meu irmão, culpa do quê? Estou esperando o momento em que vamos chegar a um denominador comum entre a velocidade com que a tecnologia se desenvolve e essa coisa obsoleta que é o mercado fonográfico. Claro que não se pode vender um disco meu, com os custos que ele tem, pelo mesmo preço do pirata da esquina. Em contrapartida, não se pode esperar que, em um país subdesenvolvido como o nosso as pessoas consigam comprar um disco pelo preço que ele é vendido nas lojas. Temos de chegar a um meio-termo. Não tínhamos pensado nisso antes porque a pirataria não nos incomodava tanto quanto incomoda hoje."
"E qual seria a saída?"
"Acho que se existe uma saída, ela passa pela internet. Até porque no futuro ninguém mais vai vender disco. Eu mesma compro minhas MP3 no iTunes. Vou lá, escolho o que quero, pago e depois vem a conta no cartão de crédito. Talvez seja o caso de investir também em singles. O mundo hoje é muito imediatista e as coisas são consumidas em uma velocidade muito grande. Por isso, essa nova forma de comercializar música, por meio dos singles ou da venda de MP3 pela internet, me parece ser a solução mais rápida e barata para resolver o problema. Tudo bem que de repente ela seja menos lucrativa que a forma anterior. Mas aceitá-la é garantir a sobrevivência da própria indústria musical."
A mesma firmeza com que defende seus pontos de vista ela aplica à sua carreira. Enquanto conversamos, Ivete demonstra ter o controle absoluto sobre todos os aspectos do seu trabalho. É ela quem esco-lhe pessoalmente os instrumentos e os amplificadores que usa nas turnês e decide como serão as fotos e arte do encarte dos CDs. A empresa que gerencia sua carreira é tocada pelo irmão, Jesus. E é também da família de Ivete o trio Maderada, usado pela cantora nas micaretas e no Carnaval de Salvador. Shows, gravações, programas de TV, nada é feito sem a sua aprovação. Durante as gravações, opina ainda sobre a timbragem dos instrumentos, a mixagem e o arranjo das músicas.
"O processo de composição é feito junto com os meninos da banda. Eu meto meu bedelho mesmo. Talvez eu nem saiba o que quero. Mas o que não quero eu sei. E nessa de não saber o que eu quero pinta muita coisa diferente, muita coisa nova. Se achar que não tá legal peço pra mudar o ritmo. Quando tá muito agressivo peço para pegar mais leve. Quando tá caído peço mais suingue. É aquele groove ali, que é uma coisa quase tribal com uma letra que nem diz muita coisa, que serve mesmo só para pontuar. Mas é uma levada tão boa, tão bem construída, que a gente acaba usando."
"Então é uma coisa meio instintiva, não tem aquela história de pôr a música na partitura..."
(interrompendo) "Mas quando! Meu negócio é sentimento, não o virtuosismo, porque tem cara que toca pra caralho e não tem o feeling. Tem de ter o feeling, a pegada. Tem vezes que ao vivo eu sequer canto, deixo a banda mandando ver. Me dá uma coisa, sabe? Eu piro com a batida, com a linha de baixo, com a levada da guitarra. É quase um mantra, para o cara entrar naquilo ali e ficar doido, sair de si. Eu posso te dizer que, mesmo sem ser muito técnica, tenho um entendimento completo do que deve ser um show meu, das músicas pra dançar, das músicas pra ouvir, das músicas que não dizem nada, mas completam o show mesmo assim."
Claro que o improviso ela deixa para a música, enquanto nos negócios cada passo é planejado à exaustão. Talvez por isso ela se sinta tão segura ao falar sobre a gravação de seu próximo DVD, marcada para 16 de dezembro no Maracanã. A idéia surgiu de um convite do Multishow, canal por assinatura pertencente à Rede Globo. Em visita aos escritórios da Universal Music, a gravadora de Ivete, Marcelo Toller, o diretor de eventos especiais do canal, ouviu a cantora contar a outra pessoa que estava pensando em lançar um DVD. Toller, que não conhecia Ivete pessoalmente, se apresentou a ela e decidiu ali mesmo se associar ao projeto. Dessa parceria sairá um especial de televisão, um DVD e um disco ao vivo. Gravado em vídeo digital com 14 câmeras, em um padrão semelhante ao dos DVDs internacionais, o material será lançado em março de 2007. Primeiro em uma exibição no Multishow, depois nas lojas de todo o Brasil. Para Toller, Ivete foi uma escolha óbvia. Na sua avaliação, a artista certa para estar à frente de um projeto como esse. Tudo muito mega, do jeito que Ivete gosta. O que ela quer é fazer disso algo grandioso, que possa se igualar à passagem de qualquer evento internacional de grande porte pelo Brasil. Daí ter arriscado tanto, escolhendo um lugar onde um público de 30 mil pessoas pode ser considerado um fracasso. A estrutura do show é gigante e envolve uma equipe de 350 pessoas, palco de 19,8 metros de comprimento por 17,6 metros de profundidade e um telão LCD de 15 x 6 metros, o maior já usado no Brasil. O público esperado: 80 mil pessoas. O custo do evento: R$ 2 milhões.
Ivete quer pagar para ver e parece saber exatamente o que isso representa para sua carreira. Nas suas próprias palavras, quer provar que pode duelar de igual para igual com qualquer estrela do pop mundial. Ou, numa análise mais profunda, implantar um novo patamar de qualidade no show business brasileiro. Se der certo, é possível que ela se distancie ainda mais dos seus colegas de axé music em termos de popularidade e faturamento e abra caminho para, pelo menos, mais dez anos de carreira.
"Por que ir ao Maracanã assistir somente a um artista de fora se aqui a gente tem gente tão popular quanto esses caras?", indaga. "Meu trabalho é como se fosse um filho meu. Se você tem um filho, quer que ele seja o melhor da turma, o mais talentoso, o mais inteligente. Comigo é a mesma coisa. Quero o melhor e quero me superar profissionalmente, provar que é possível manter no Brasil um trabalho de nível internacional. Mesmo que não encha tanto quanto a gente espera, acho que vou conseguir provar que isso é possível. É uma questão de auto-estima mesmo, de ser brasileiro e querer ver as coisas mudarem. Não se trata de megalomania. Eu posso sair desse projeto e ir fazer um acústico pra 100 pessoas ou gravar dentro do meu quarto. O que quero mesmo é quebrar as barreiras, mover a coisa pra frente. Não quero perder o passo. Quero arriscar."
"Você também deu a palavra final na direção do show?"
"A direção do show é minha... Muita calma nessa hora (risos). Talvez não seja o show mais bem dirigido (risos), mas é como eu quero fazer, porque vou ter a certeza de que ele vai ter a minha cara. É um show muito objetivo, grandioso e com um altíssimo nível tecnológico. O Maracanã não é qualquer lugar, cara. É o Maracanã. Eu me curvo à sua história, quantos gritos de emoção foram dados ali. Seja com o futebol, seja com a música. Ou seja com a chegada do Papai Noel (risos). A chegada do Papai Noel é um evento da porra, rapaz (risos)."
"A Blitz já tocou em uma chegada do Papai Noel, não?"
"Pra você ver como o cara é pop. Mas voltando ao DVD... Ele tem essa coisa tecnológica, mas acreditando muito mais na música e na força dos meus convidados do que em pirotecnias, embora seja um show sofisticado do ponto de vista visual. Quanto às músicas, vamos ter algumas inéditas e canções que são emblemáticas dentro da minha carreira. E pra cantar comigo vai ter Buchecha, Asa de Águia, Samuel Rosa, Banda Eva e Alejandro Sanz, que virou um grande parceiro meu durante minha passagem pela Espanha. Sou fã de todos eles e me aproveitei do fato de ser cantora para chamar essas pessoas todas que admiro e que, de alguma forma, me influenciam."
Falando em convidados, pergunto sobre a suposta presença de Bono no show. A idéia rolou depois de um encontro com o vocalista do U2 no Carnaval de Salvador. Convidado do ministro Gilberto Gil, Bono se animou com a folia baiana e pediu para cantar com Ivete. Juntos, mandaram ver uma versão improvisada de "Vertigo".
"Eles estavam numa coisa, queriam ir atrás do trio. Ele e The Edge. Agora, como eu ia tirar esses homens de lá, menino? Porque ia encher de gente em volta, né? Não ia dar certo. Então a gente acabou cantando comigo no trio e eles no camarote de Gil. Quer dizer, eu quase não cantei de tão nervosa que estava. Curto o U2 desde pequena, embora não falasse inglês direito e só enrolasse as letras. Quando terminou o Bono ficou 'Ivete, don't go, Ivete, don't go'. Aí eu parei e falei: 'Então, peraí, seu sacana, que você vai cantar uma comigo. Bono, repita: 'E aí, chupa toda/ Chupa toda' e ele repetia 'Tchupa tuda/ tchupa tuda'. Nessa acabamos cantando "Chupa Toda" eu, ele e Gil. Foi por isso que pensei em chamá-lo. Mas entendo ele não poder ter vindo. O cara é muito ocupado e, além do U2, tem seus projetos humanitários. Seria legal, mas infelizmente não rolou."
Ao mesmo tempo em que Ivete enfrenta uma infinidade de reuniões sobre a gravação do DVD, voa para cima e para baixo de jatinho para cumprir sua agenda de shows e grava comerciais de televisão, se lança no que pode ser mais uma vertente de sua carreira: o cinema. No filme Xuxa Gêmeas, além da estrela principal ela contracenou com Murilo Rosa e outros atores profissionais. Sem muita experiência, contou com a ajuda de seus colegas no set e acabou tomando gosto pela coisa. Para o futuro ela conta que gostaria de estrelar um filme próprio. Mas nada de regionalismos nem estereótipos da mulher nordestina. O que Ivete quer é fazer um drama urbano e contemporâneo, até mesmo pop. Como sua música, que se universalizou cada vez mais com o passar dos anos.
Tarde de domingo. dentro da van, converso com os músicos da banda de Ivete enquanto rumamos ao local onde será realizada a Micareta. Dentro do carro, o papo é sobre cientologia, discos voadores e a derrota de Antônio Carlos Magalhães para o PT na disputa pelo governo da Bahia. Faço um paralelo com a situação no Pará, onde a candidata petista Ana Júlia Carepa venceu o ex-governador Almir Gabriel, acabando com 12 anos de governo tucano no estado. Alguém muda de assunto e menciona um boato de que os controladores de vôo podem parar novamente na segunda-feira e que a banda corre o risco de ficar presa em Belém (somente Ivete e alguns produtores vão de jatinho, os músicos e a equipe técnica viajam em aviões de linha). Preocupado com a falta de segurança nos vôos domésticos, um dos percussionistas conta a história da escala que o grupo fez em São Luís do Maranhão. Assim que o avião pousou, todos os equipamentos sofreram uma pane geral. As luzes se apagaram, as turbinas desligaram e os instrumentos de vôo pararam de funcionar. Caso o avião tivesse demorado mais alguns minutos para pousar, banda e equipe técnica dificilmente teriam sobrevivido ao desastre.
Assim que a van chega, centenas de fãs se aglomeram ao seu redor, colando a cara nos vidros escuros do carro tentando adivinhar quem está lá dentro. O lugar onde o trio está estacionando é um descampado na saída de Belém onde normalmente acontecem os eventos musicais na cidade. Entre os foliões, a reclamação é o fato de a Micareta ter sido transferida das ruas para uma arena de shows. Como se fosse uma competição de kart, os trios agora dão voltas em uma pista armada no lugar. Cada volta demora cerca de duas horas. Quem pôde pagar, segue o cortejo com segurança dentro de um cordão de isolamento e acompanha a passagem dos trios nos camarotes particulares. Ou mesmo naqueles patrocinados por empresas de telefonia celular e cervejarias. Estes últimos - cheios de mordomias como champanhe e sushi, além da promessa da presença de celebridades - são os mais disputados. Já quem não tem muita grana, acompanha a Micareta na pipoca, a terra de ninguém onde não há qualquer tipo de regalia.
Quando o evento rolava nas ruas de Belém, o espaço era grátis. Agora que a Micareta acontece a portas fechadas, por imposição do Ministério Público paraense, paga-se R$ 10 para acompanhá-la do lado de fora dos cordões de isolamento. Entre os fãs, a mudança parece não ter agradado muito, o que explica a sensação de que há pouca gente para ver a passagem dos blocos neste domingo.
Dentro do trio, a equipe de 42 pessoas, entre músicos e técnicos, obedece a um sistema rígido de organização. Atrás fica um cercadinho vip destinado aos fãs, imprensa e aos donos do bloco e seus convidados. Na outra ponta, uma espécie de palco, onde só entram Ivete e os membros da sua produção. A banda fica no meio, junto com os três cantores de apoio. Na parte interna, uma despensa do tamanho de um banheiro de avião guarda as bebidas e comidas destinadas aos músicos, que são devoradas em questão de minutos assim que a banda pisa no trio. Nada muito complicado. Apenas uma torta de chocolate, tábua de frios, pão integral e alguns croquetes. No chão, dois coolers recheados de isotônicos, refrigerantes e água. Aparentemente, não há sinal de bebidas alcoólicas. Simples também é o camarim de Ivete, com poucos luxos além de ar-condicionado, banheiro particular e uma poltrona acolchoada. Os músicos chegam primeiro para a passagem de som. Ivete chega somente depois, direto para o show.
Enquanto o trio não anda, a disputa é para ver quem vai ficar na área vip. Junto com Lúcio, o road manager do grupo, Dito chama para cima os membros do fã-clube oficial de Belém, velhos conhecidos seus e de Ivete. Junto sobem algumas meninas, jornalistas e uma equipe de televisão. Uma vez lá em cima, ninguém pode des-cer para o espaço da despensa e do camarim e muito menos ultrapassar as fronteiras dos frisos de metal que cercam o lugar. O repórter da equipe de TV local consegue alguns minutos com Ivete e sua ida ao camarim é acompanhada de perto por Dito e um segurança. Na volta, se junta aos outros fãs à espera da saída do bloco. Assim que o show começa e o trio vai se movendo, novos fãs são chamados.
É aí que, junto com a música, rola algo que revela o tamanho do poder de sedução de Ivete Sangalo. Enquanto a banda manda ver no som, parte dos presentes se engaja em uma disputa pela atenção de Dito e Lúcio. Em cima, Ivete canta e faz o povo pular, misturando hits como "A Festa" e "Poeira" com "I Shot The Sheriff", de Bob Marley, e "Sossego", de Tim Maia; lá embaixo uma enorme quantidade de fãs está muito mais preocupada em se fazer notar para poder chegar à área vip. Entre eles, o público GLS - espalhafatosas drag queens, gays e lésbicas -, que em Belém elegeu Ivete como a sua musa e, de acordo com profissionais ligados ao evento, foi responsável por uma queda na procura de abadás para o seu bloco. Nos bastidores, a história que corre é que a presença de homossexuais acabou afastando os filhos bem-nascidos da preconceituosa elite local, os maiores consumidores das micaretas na capital paraense.
O cercadinho vip está cheio. Mesmo assim, sempre há espaço para mais gente. Isso, claro, depois da aprovação de Dito e Lúcio. De cima do trio, eles observam a multidão e escolhem quem pode subir, como em uma versão tropical da política de porta do célebre Studio 54. Um fã, com um display de Ivete em tamanho quase natural pendurado no pescoço, faz gestos, grita e implora por atenção. Dito vê a cena e o manda subir. O rapaz entra eufórico no trio e por pouco não começa a chorar. Outra fã estende uma bandeira com a logomarca do Planet Hollywood onde se lê "Planeta Ivete" no lugar do nome do restaurante e carimba o passaporte para a área vip junto com um rapaz caracte-rizado como um dos cantores do grupo RBD, inclusive com o cabelo moicano alaranjado e as pinturas faciais. No chão, um grupo de patricinhas, todas loiras e de salto alto, tenta se comunicar com um amigo em cima do trio. Com o polegar direito virado para baixo, ele retorna dando o sinal de que não pode fa-zer nada por elas.
Nesse meio tempo, Ivete dá o sangue. Em alguns momentos do show funciona como band leader, orientando com gestos as pausas e as mudanças de ritmos e tons. Uma mulher da platéia a chama de "gostosa". "Gostosa é você, minha querida", devolve a cantora. Ivete pára e começa a falar do próprio corpo e pergunta ao povo se está bonita. A resposta vem por meio de palmas e gritos de "gostosa, gostosa". "Ah, quer saber?", diz, "só as gostosas têm celulite!" A multidão vem abaixo. Na arquibancada, um grupo de senhoras se empolga, mostra as pernas e improvisa danças supostamente sensuais quando a banda volta a tocar.
Antes que o trio complete a primeira volta na arena, um outro ritual tem início: o das fotografias. Seguranças e produtores organizam uma fila. Cada pessoa tem direito a cumprimentar e bater uma foto com Ivete no espaço reservado à banda. A ansiedade é grande e os fãs se alvoroçam, nervosos que estão com a possibilidade de se aproximar de sua musa nem que seja por alguns segundos. Ivete atende um por um, bate foto e cumprimenta todos sem jamais parar de cantar.
Depois que a primeira rodada de fotos termina, é hora de descer do trio para dar lugar a uma nova leva de fãs. A ordem é botar para dentro somente quem estiver com cartazes e faixas com o nome de Ivete. No chão, uma menina começa a pular enquanto aponta para as próprias costas. De longe dá para ver um borrão. Borrão, não. Uma tatuagem. Ao que parece é a cara de Ivete com alguma coisa escrita em cima. Dito sinaliza para que os seguranças a levem para dentro do trio. Ela está tão nervosa e suas mãos tremem tanto que mal consegue ligar a câmera digital que carrega junto com um cartaz. Quando liga, entra em pânico ao ver que ela não funciona. Abre o compartimento onde ficam as pilhas e estas caem no chão e rolam para fora do trio. Fica mais nervosa e começa a chorar. Então se lembra de que tem outro par nos bolsos e põe pilhas novas na câmera. Ela funciona. Mesmo assim, a moça não consegue ter firmeza nas mãos para fazer a foto. Dito pega a câmera, bate a foto e faz o registro. Na volta, ela passa por mim e mal consegue conter as lágrimas. Não resisto e dou uma espiada na tatuagem. De fato existe ali algo que lembra um rosto, que, no entanto, sequer se parece com o de Ivete. Só dá para saber que se trata de uma homenagem à cantora porque em cima do desenho está escrito "Ivete Sangalo" em uma letra de fôrma irregular e "garranchuda".
As duas voltas programadas na arena duram cerca de quatro horas e meia. Durante todo esse tempo, nenhum dos grandes hits de Ivete fica de fora e todos são tocados mais de uma vez, misturados ao funk "Um Tapinha Não Dói" e à canção infantil "Brincar de Índio", de Xuxa. O público não aparenta cansaço e pouco se importa em ouvir tudo de novo. O importante é manter a pulsação constante por meio da repetição dos refrãos e de células rítmicas muito bem definidas, que se alternam entre a melodia e o batuque tribal. Graduada em todas as manhas do show business, Ivete sabe a hora certa de pedir os gritos da platéia, de abrir o microfone para o público, de trocar a agitação do axé pela malemolência do reggae e de fazer as referências aos costumes locais, como a rivalidade entre os clubes Remo e Paysandu e a paixão da periferia de Belém pelo technobrega, a versão digital da música romântica popular dos anos 70 e 80.
Quando o show se aproxima do final, Ivete, que no sábado reclamava da falta da pipoca gratuita no show de sexta em Belém, anuncia que vai dar mais uma volta na arena. O público delira, embora já tenha visto a mesma apresentação duas vezes na mesma noite. No entanto, ela impõe uma condição: que as cordas que cercam o bloco sejam baixadas e que os foliões da pipoca possam seguir atrás do trio elétrico.
A festa cresce em animação e intensidade quando quem está de fora invade a área destinada aos blocos. É gente que se sujeitou a ver o trio apenas de relance, sem conforto e espremido entre as cordas e a barreira de segurança. Quando as cordas caem de vez, Ivete parece realmente satisfeita e cumpre a sua promessa de fazer mais um show.
Mais uma hora e meia e ela finalmente se despede de Belém, contabilizando quase seis horas de apresentação. No camarim, ainda encontra forças para receber e tirar fotos com mais um grupo de fãs. Com os pés enfiados em uma bacia de água, bebe suco de caixinha e belisca alguns pedaços de peito de frango grelhado. A rotina é a mesma: entrar, dar um abraço, bater foto, pedir um autógrafo e sair.
Apesar da duração do show, Ivete está disposta e bem-humorada e revela que só vai embora depois de atender o último fã. Dali é direto para o aeroporto, onde põe o pé no jato de volta a Salvador para os ensaios da gravação do DVD. Uma garota entra no camarim. Ela não carrega papel, caneta ou mesmo máquina fotográfica.
"Oi, minha linda", saúda Ivete, "Você quer bater foto? Autógrafo?"
"Não", responde ela, "quero uma lembrança."
"Ai, meu Deus e agora?", responde Ivete sem conter a risada, "o que eu vou te dar, pequena?"
Ivete olha para Dito pedindo socorro. Ele encolhe os ombros e levanta as palmas das mãos para cima. Olha para um lado, olha para outro e se atrapalha um pouco. Nem ele e nem Ivete sabem muito bem o que fazer. Até que vê um cacho de uvas em cima de uma cesta de frutas. "Toma, filha, uma lembrancinha pra você, tá?", diz Dito entregando as uvas à menina "Ai, brigada, tio", responde a garota, que abraça Ivete visivelmente feliz com o regalo e sai do camarim com um sorriso de orelha a orelha. Tem início o milagre da transubstanciação. E então um punhado de frutas se transforma no tesouro de valor inestimável que um dia Ivete Sangalo tocou. Impossível dizer se elas serão guardadas até virarem pó ou devoradas no caminho para casa. O que vai sobrar, com certeza, é a idolatria pela cantora. Cada vez mais, a única capaz de ocupar o posto de rainha do pop brasileiro. Se ela irá conseguir se manter no trono ou não, somente no dia 16 de dezembro deste ano saberemos. E teremos a confirmação no verão de 2007, época em que ela costuma reinar absoluta. Até lá, Ivete Sangalo joga duro e aposta alto. Quem tiver cacife que entre na disputa.
O jornalista Vladimir Cunha escreveu sobre o RBD na edição 1 da Rolling Stone (novembro 2006).
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