Além de nos privar de um pensador, a morte de Millôr Fernandes deixa o humor nacional sem referência
Antônio do Amaral Rocha Publicado em 16/04/2012, às 10h24 - Atualizado às 10h33
Millôr Fernandes foi assim chamado por um vacilo do escrivão, que esqueceu de cortar o “t” e escreveu uma letra “n” que se parecia com um “r”. Deveria, portanto, se chamar Milton, nome que carregou até os 18 anos. Mas conta-se que quando foi tirar os documentos oficiais, o rapaz ficou sabendo que não poderia se chamar Milton, uma vez que no registro de nascimento estava escrito “Millor”. Inaugurando a verve cômica e satírica que o acompanhou por toda a vida, ele adotou assim o nome, mas solicitou a colocação de um acento circunflexo, contrariando todas as regras gramaticais.
A longa vida intelectual e autodidata de Millôr (1923-2012) se iniciou aos 14 anos, quando começou a trabalhar na revista O Cruzeiro, assumindo a imprensa como carreira e dando dignidade à função. Em sua biografia, ele escreveu: “1943: começam os anos gloriosos da revista O Cruzeiro, que um grupo de meninos levaria dos estagnados 11 mil exemplares tradicionais a 750 mil” – entre esses meninos estava ele próprio. A partir daí, colaborou com quase todos os jornais e revistas do eixo Rio-São Paulo e adquiriu status de um dos mais respeitados nomes da inteligência brasileira. Formado na velha escola do jornalismo, na raça e na prática, e se aventurando no humor, no desenho e no cartum (deliciosamente toscos e coloridos), Millôr fez escola ao criar personagens para si mesmo, como Vão Gogo (corruptela de Van Gogh). O amplo conhecimento da língua inglesa fez com que se firmasse também como tradutor, notabilizando-se como um dos maiores especialistas da obra de William Shakespeare no Brasil.
Na década de 70, quando os generais de plantão transformaram a vida do país, impondo a ordem unida e a continência no lugar do bom dia, Millôr e seus amigos de Ipanema – entre eles Jaguar, Ziraldo, Ivan Lessa, Paulo Francis e Henfil – criaram aquele que seria um dos mais significativos jornais da imprensa alternativa. Surgia O Pasquim, onde a presença de Millôr dava certo verniz intelectual à publicação, totalmente voltada ao humor e à resistência política.
Ele era um frasista de fina habilidade. “Livre pensar é só pensar”; “Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim”; “De todas as taras sexuais, não existe nenhuma mais estranha do que a abstinência”; “Nunca ninguém perdeu dinheiro apostando na desonestidade.” Sobre a imprensa, Millôr também opinou: “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”. Para os personagens da política, sempre reservou opiniões transgressoras, sem condescendência alguma: “Nossos políticos entram sempre pelo portão da esperança, sentam no trono furta-cor da decepção e saem pela porta suíça da decepção”. A especialidade desse carioca nascido no Méier era o humor refinado – não aquele estilo rebaixado típico da televisão, mas como um estiloso continuador da verve machadiana (apesar de o próprio Millôr ter assumido implicâncias pessoais com a obra de Machado de Assis).
Quando a imprensa digital se transformou em necessidade, Millôr não demorou a se lançar online, em um site em que publicava desenhos, frases, ditados e pensamentos, sem deixar pedra sobre pedra. Também foi figura atuante no Twitter, onde se denominava “O Guru do Méier”, com quase 369 mil seguidores. Sua última postagem, do dia 23 de março dizia: “Pode ser que um dia se passe Brasil a limpo. Até agora a quadrilha política fez do Brasil apenas papel higiênico”. Depois disso, não pôde dizer mais nada. Uma parada cardíaca, seguida de falência múltipla dos órgãos, em 27 de março, calou para sempre uma das línguas mais ferinas de que a vida intelectual brasileira já dispôs.
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