Por meio de uma imagem oposta à do papa Bento XVI, o pontífice está mudando não só a visão sobre a Igreja Católica, mas o modo de liderar a organização religiosa mais poderosa do planeta
Mark Binelli | Tradução: Ligia Fonseca Publicado em 13/02/2014, às 11h00 - Atualizado às 11h13
Praticamente toda quarta-feira em Roma, fiéis e curiosos se juntam na Praça de São Pedro para uma audiência geral com o papa. Desde a eleição de Jorge Mario Bergoglio em março, o público nos eventos papais triplicou para 6,6 milhões de pessoas. Em uma manhã de dezembro, a multidão de peregrinos parecia brilhar com a luz do sol, cobrindo a praça como um tapete colorido. Talvez fosse uma ilusão criada pelos smartphones levantados aos céus.
De perto, o papa Francisco, o 266º pontífice de Jesus Cristo na Terra, um homem cuja humildade óbvia, empatia e, acima de tudo, devoção aos economicamente desfavorecidos se encaixaram perfeitamente com nosso tempo, parece mais cheinho do que na televisão. Tendo famosamente dispensado os acessórios pontífices mais extravagantes, também é surpreendentemente estiloso, usando hoje um sobretudo branco com botões duplos, cachecol branco e uma batina creme, todos impecavelmente costurados.
O tópico da catequese, ou ensinamento, de Francisco é o Dia do Julgamento, embora, como de costume, ele não tente invocar imagens de fogo e enxofre. Seu antecessor, Bento XVI, falando sobre o tópico, uma vez disse: “Atualmente, estamos acostumados a pensar: ‘O que é pecado? Deus é bom, Ele nos entende, então o pecado não conta; no final, Deus será bom com todos’. É uma bela esperança, mas há justiça, e há culpa real”.
Por sua vez, Francisco, 77 anos, implora para que a multidão pense na perspectiva de encontrar o Criador como algo a se esperar, como um casamento, onde Jesus e todos os santos no céu estarão esperando de braços abertos. A voz dele é desconcertantemente gentil, mesmo quando amplificada sobre uma praça pública enorme. Sempre que possível, ele cumprimenta o público. Bento, um acadêmico austero, mantinha essa parte do público geral a certa distância. Entretanto, Francisco adora o contato pessoal e passa quase uma hora saudando os fiéis.
A celebridade papal é algo engraçado. Como arcebispo de Buenos Aires, Bergoglio nunca tinha sido um orador especialmente talentoso, mas, agora que é o papa Francisco, sua humanidade reconhecível é vista como positivamente revolucionária. Contra o cenário absurdo, impossivelmente barroco do Vaticano, um mundo ainda comandado como uma corte medieval, a eleição de Francisco representa o que a jornalista argentina Elisabetta Piqué, que o conhece há uma década, chama de “escândalo de normalidade”. Desde que foi eleito, em março passado, Francisco vem superando expectativas com os gestos mais simples: surpreendendo recepcionistas no hotel onde se hospedou durante o conclave papal ao aparecer para pagar a própria conta, apavorando o guarda-costas ao beber em uma cuia de mate que um estranho lhe deu durante sua visita ao Brasil, fazendo cardeais morrerem de rir com piadas sobre si mesmo, horas depois de ser eleito (a quem participou de seu primeiro jantar como papa, ele falou: “Que Deus os perdoe pelo que fizeram”).
Depois do papado desastroso de Bento XVI, um tradicionalista rígido que parecia ser capaz de usar uma camiseta listrada, luvas com lâminas no lugar dos dedos e ameaçar adolescentes em pesadelos, o domínio básico de Francisco em habilidades como sorrir em público pareceu um pequeno milagre para o católico médio. No entanto, ele tinha mudanças mais radicais em mente. Ao trocar o palácio papal por um apartamento modesto de dois dormitórios, ao repreender publicamente líderes da igreja por serem “obcecados” por questões sociais controversas como casamento gay, controle de natalidade e aborto (“Quem sou eu para julgar?”, respondeu famosamente quando lhe perguntaram sua opinião sobre padres homossexuais) e – talvez o mais impressionante de tudo – ao dedicar sua primeira grande catequese escrita a uma crítica contundente ao capitalismo desvairado do mercado livre, o papa revelou que suas próprias obsessões estavam mais em linha com as do filho do cara lá de cima.
Até onde se sabe, o conclave papal que elegeu Bergoglio presumiu que estava escolhendo um candidato relativamente tranquilo e transigente. Cardeais gostaram da ideia de um papa da América Latina, um dos mercados de maior crescimento da Igreja. Também reagiram bem a um discurso animador de três minutos que Bergoglio deu durante o conclave, no qual disse que a Igreja, para sobreviver, deve “parar de viver dentro de si mesma, para si mesma, por si mesma”.
No entanto, ele não dava nenhuma outra indicação de ser um agente da mudança. Nos dias depois da eleição, a maioria dos jornais o descreveu como uma escolha segura e conservadora. O próprio Bergoglio já havia escolhido um lugar para se aposentar na Argentina, para onde esperava voltar depois de participar do conclave como eleitor. “Quando ele ficou sabendo que foi eleito”, conta Elisabetta, “não sabia se era sonho ou pesadelo. Tenho certeza de que está se sentindo em uma gaiola”.
Haveria muitas maneiras razoáveis de reagir a essa nova realidade – resignação cristã estoica ou um grito de “Por que eu, Deus?”. Também seria possível se sentir revigorado com o desafio, e talvez até decidir causar problemas por aí.
Junto a muitos nobres homens de Deus, houve vários papas verdadeiramente terríveis. Bento XVI certamente não merece ser incluído na galeria dos vilões, mas é difícil imaginar uma escolha pior para enfrentar os desafios peculiares da Igreja Católica na última década do que o cardeal alemão Joseph Ratzinger. Antes de ser nomeado papa em 2005, ele havia sido prefeito da Congregação para Doutrina da Fé para seu antecessor, o amado, mas também bastante reacionário, João Paulo II. Em sua luta contra os esforços de liberalização do Segundo Conselho do Vaticano, JPII, como era conhecido no país, reprimiu grupos católicos progressivos como os jesuítas enquanto deu as boas vindas aos hipertradicionalistas polêmicos da Opus Dei, cujos membros fazem votos de celibato e praticam mortificação corporal, chicoteando-se ou usando um cilício, uma corrente de metal com tachas amarrada à coxa como penitência e lembrete do sofrimento de Jesus.
Uma carta publicada em 1986 por Ratzinger, “Sobre o Atendimento Pastoral a Pessoas Homossexuais” (também conhecida como Homosexualitatis Problema), descrevia a homossexualidade como “um mal moral intrínseco”. Os principais proponentes da teologia da libertação, um movimento católico explosivo com conotações marxistas que se espalhou pela América Latina nos anos 70 e 80, foram marginalizados pelo gabinete de Ratzinger e vistos como hereges. Ao mesmo tempo, a equipe dele reagiu às infinitas revelações de pedofilia que abalaram a Igreja nas últimas décadas.
Depois de se tornar o Papa Bento XVI em 2005, Ratzinger parecia não ter uma folga para respirar, e certamente não tinha a habilidade de aplicar seu amplamente reconhecido brilhantismo como acadêmico ao combate a incêndios no mundo real. Em 2009, um escândalo de lavagem de dinheiro foi descoberto no Banco do Vaticano, que controla cerca de US$ 8,2 bilhões em ativos. Então, veio a traição conhecida como VatiLeaks, na qual o próprio mordomo de confiança de Bento roubou calhamaços de documentos secretos que revelam as constrangedoras engrenagens internas da Santa Sé.
Supostamente, o momento decisivo para Bento aconteceu depois que um trio de cardeais responsáveis por investigar o VatiLeaks enviou seu relatório, revelando uma rede de funcionários gays do Vaticano e gente de fora ameaçando expor a situação. “Ele simplesmente não tinha a personalidade ou resistência para lidar com tudo o que estava acontecendo”, uma fonte interna do Vaticano me disse. Logo depois que Bento chocou o mundo em fevereiro do ano passado ao anunciar que seria o primeiro papa a renunciar em mais de 700 anos, uma indignidade final o acompanhou até a porta: a revelação pelo jornal La Repubblica de que a maior sauna gay da Itália era inquilina de um edifício de propriedade do Vaticano.
A discordância aberta, claro, é algo raro em uma organização tão hierárquica quanto a Igreja Católica, mas constatei que, se há um grupo que expressa uma notável falta de entusiasmo com seu novo papa jesuíta, é a Opus Dei. Então, certa tarde, encontrei o padre John Paul Wauck, um pastor norte-americano da Opus Dei que mora em Roma há quase 20 anos, onde ensina literatura na Pontifícia Universidade da Santa Cruz. Wauck, que não parece tão conservador para um membro dessa instituição, minimiza o pedido de trégua do papa nas guerras culturais. “Com certeza não tenho problema algum com qualquer coisa que o papa diga”, ele afirma. “Acho que há uma espécie de leitura seletiva. As pessoas estão enfatizando certas coisas e esquecendo outras que ele também falou.” Por exemplo, Wauck indica que o papa frequentemente fala do diabo, “muito mais do que me lembro de Bento ter falado”. Da mesma forma, observa que os comentários de Francisco sobre a obsessão da Igreja com o casamento gay e o aborto não propuseram nenhuma mudança doutrinal real. “O papa nunca disse que essas questões não eram importantes”, alega Wauck. “Ele disse que, quando falamos sobre essas coisas, temos de falar em um contexto. Quem discordaria disso? Então, quando as pessoas estão tentando entender que tipo de homem ele é, você tem de ouvir todos os sinos, não apenas aqueles que soam como ‘Ah, ele vai mudar tudo’.”
Este é um discurso comum entre católicos conservadores sobre o papa Francisco: vocês da mídia liberal secular não estão escutando. O cardeal de Nova York Timothy Dolan, um conservador que havia sido incluído em várias listas de possíveis papas em março, também não perdeu tempo em traduzir a mensagem de Francisco, dizendo ao programa This Morning, do canal CBS: “O Papa Francisco seria o primeiro a dizer ‘Meu trabalho não é mudar o ensino da Igreja. Meu trabalho é apresentá-la da forma mais clara possível... Embora determinados atos sejam errados... sempre amaremos e respeitaremos a pessoa e a trataremos com dignidade’”.
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