Ilustração - INDIO SAN

A Ponte da Discórdia

Cercada por polêmicas, a colossal obra que interliga duas cidades no Amazonas evidencia um problema da região: nos megaprojetos de infraestrutura da Amazônia, a regra é superestimar os benefícios e omitir os prejuízos

Leandro Prazeres Publicado em 10/11/2011, às 10h43 - Atualizado em 15/12/2011, às 18h12

O comandante Falcão ajeita o boné, arruma os cabelos grisalhos, enruga a testa e tudo começa. É assim há 15 anos, e foi assim na manhã daquele sábado. No ar, o som da buzina de seu rebocador ecoa longe. Os motores roncam e as águas turvas do Rio Negro se revolvem na popa da embarcação. O sol está a pino e o céu escandalosamente azul. Aos poucos, o rebocador começa a se mover, em marcha a ré, puxando uma balsa carregada de carros, caminhões e pessoas. Essa foi uma das últimas viagens do comandante durante a travessia entre os municípios de Manaus e Iranduba. A Ponte Rio Negro, um colosso de aço e concreto e bilhões de reais, se ergue imponente, cruzando o gigante de águas escuras. É o fim das viagens de balsa do comandante Falcão e o início de uma era sobre a qual se tem poucas certezas.

Para entender a importância da Ponte Rio Negro, é preciso conhecer um pouco a geografia do Amazonas. O estado é o maior do Brasil, com 1,5 milhão de quilômetros quadrados e 3,4 milhões de habitantes. A capital, Manaus, está na margem esquerda do Rio Negro e não tem ligação terrestre com o Centro-Sul do Brasil. Com seus 3,5 quilômetros, a ponte inaugura uma ligação inédita entre as duas margens do rio, em uma obra ao mesmo tempo grandiosa e polêmica. O projeto começou a tomar forma em 2007. Foi incluído na primeira fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com o então governador e atual senador Eduardo Braga (PMDB). O argumento era o de que a ponte iria integrar e desenvolver os municípios do entorno de Manaus, distribuindo melhor a riqueza gerada pela Zona Franca, brutalmente concentrada na capital amazonense. Segundo o IBGE, mais de 80% de toda a riqueza produzida pelo Amazonas fica em Manaus. À época, poucos ousaram se colocar contra o projeto.

“Quem dizia que era contra era tachado de louco, pessimista. O governo queria fazer a ponte de qualquer jeito”, lembra o padre italiano João Poli, pároco de Iranduba, o principal município afetado pelos impactos da obra. Com 29 anos de idade e cerca de 40 mil habitantes, a cidade vive da agricultura de subsistência, do comércio e das olarias que abastecem o mercado de Manaus com tijolos. Em pouco tempo, porém, as poucas vozes contrárias foram silenciadas (ou ignoradas) e a obra começou, em ritmo acelerado.

A pressa do governo em iniciar a obra foi tão grande que criou algumas distorções. O maior exemplo foi a rapidez com que o estudo de impacto ambiental (EIA) da obra foi feito: três meses. Em países como os Estados Unidos, por exemplo, onde a biodiversidade é bem menor que a do Brasil, esses estudos duram, em média, entre dez e 12 meses. O ritmo foi tão intenso que os técnicos levaram apenas uma semana para fazer o inventário das espécies de peixes de uma região com mais de 9,5 milhões de quilômetros quadrados, cortada por dezenas de rios, lagos e áreas de várzea. Mesmo durante o curto período em que os técnicos foram a campo, eles se depararam com quatro espécies que ainda não haviam sido catalogadas. O temor é de que todos esses patrimônios naturais, associados ao patrimônio histórico dos sítios arqueológicos da região, corram o risco de sucumbir à ocupação desordenada da margem direita do Rio Negro.

“O estudo não tem a abrangência necessária para uma obra desse porte. Três meses é muito pouco para que possamos classificar esse estudo como sério”, diz Thales Cardoso, procurador federal de Justiça, que trabalha a três anos na Amazônia. Já Nádia Ferreira, secretária de Estado de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, argumenta: “O estudo de impacto ambiental foi elaborado pela Universidade Federal do Amazonas [Ufam] com uma equipe composta por técnicos qualificados, que inclusive já haviam realizado estudos na mesma região”. Além do tempo curto dedicado ao estudo, outro fator coloca em xeque o licenciamento da obra: o responsável pela liberação do empreendimento foi o Instituto de Proteção ao Meio Ambiente do Estado do Amazonas (Ipaam), órgão do governo estadual, principal interessado na construção. Para Cardoso há conflito de interesses na relação: “Questionamos isso em uma ação civil pública, mas não conseguimos paralisar a obra”.

Nádia Ferreira, por sua vez, contesta a ideia de que o Instituto não teria independência para licenciar a ponte: “O Ipaam é uma autarquia autônoma e possui alta capacidade técnica na análise dos processos, e na expedição da Licença Ambiental foram apresentadas várias condicionantes necessárias”.

Um dos principais trunfos utilizados pelo Governo do Estado para convencer a população da região de que a ponte era “um bom negócio” foi o Plano de Ocupação da Margem Direita do Rio Negro. O documento prometia o uso ordenado da região e a minimização dos impactos causados pelo fluxo migratório previsto para Iranduba e para os municípios vizinhos, como Manacapuru e Novo Airão. Em outras palavras: evitar que os erros ocorridos em Manaus se repetissem na outra margem do rio.

Entre 1970 e 2010, a capital amazonense viu sua população saltar de 470 mil habitantes para 1,8 milhão, representando um crescimento de 382%. A cidade cresceu sem planejamento urbano, e hoje boa parte de seus bairros é resultado de invasões. O trânsito é caótico, o transporte coletivo é ineficiente e caro, os igarapés que cortam a cidade estão poluídos e 6,2% da população vive em situação de extrema pobreza, recebendo menos de R$ 70 por mês. Sem falar que apenas 12% da população possui acesso à rede de esgoto e um terço da cidade não tem abastecimento regular de água potável.

O temor de que a pressão urbana de Manaus se transfira para Iranduba é grande. Se antes da ponte o município já era considerado uma “cidade-dormitório”, com a obra, a tendência é que se transforme em um bairro da capital amazonense. Segundo o governo estadual, há estimativas de que a população de Iranduba cresça três vezes em dez anos, saltando para 120 mil habitantes. “Manaus é um exemplo a não ser seguido”, diz Nonato Lopes, prefeito de Iranduba e político de longa carreira no Amazonas. “A ponte é uma bênção dos céus. Foi resultado da visão de estadista do ex-governador [Eduardo Braga], do atual governador, Omar Aziz, e do apoio do ex-presidente Lula... Agora, se você me perguntar se a cidade está pronta para receber todo esse fluxo migratório, é claro que não. Nem Roma foi construída num só dia”, afirma ele, com cabelos e bigode pintados de preto, chapéu de palha, correntes de ouro e óculos de sol Prada.

Basta chegar a Iranduba, porém, para perceber que os planos previstos para o município não se realizaram. A minuta do plano diretor da cidade ainda é discutida na Câmara Municipal e só deverá ser votada em 2012. Os corredores viários prometidos pelo Governo do Estado também não saíram do papel e a especulação imobiliária corre solta. A estrada que leva à sede de Iranduba está repleta de placas anunciando a venda de lotes e de condomínios residenciais, quase todos clandestinos. O bairro Nova Veneza (o nome vem dos alagamentos que ocorrem durante a época de cheia) é a síntese daquilo que o governo diz tentar evitar e uma pequena mostra do que Iranduba poderá se tornar. Trata-se de uma pequena favela às margens de uma área de várzea no Rio Negro, localizada à direita do leito da ponte e formada por um emaranhado confuso de ruelas de terra batida. No fim da tarde, crianças jogam bola em terrenos desocupados onde o esgoto corre a céu aberto. Por ali, não há sinais de que a cidade esteja preparada para os efeitos da obra.

“Elaboramos um plano diretor e o enviamos ao município, mas não sei por que ainda não foi votado”, lamenta René Levy, secretário da Região Metropolitana de Manaus. “Quanto às obras previstas no plano de ocupação da margem direita, temos certeza de que elas serão feitas à medida que o fluxo migratório for aumentando.”

Raimundo Moreira da Silva, 39 anos, tem a pele morena, queimada pelo sol amazônico, e os olhos miúdos e desconfiados. Mora em uma casa verde de madeira construída sob quatro grossos troncos de açacu, uma árvore típica da região – as toras formam uma plataforma flutuante, em cima de onde Raimundo e família vivem. Uma pequena tábua na porta da frente impede que Wallace, o filho de 2 anos, vá para a água. “A gente é caboclo, mas não é peixe”, brinca o pai. Durante a estação seca, Raimundo “estaciona” a casa no que resta de uma pequena área alagada, próxima à vila do Cacau Pirêra, porto onde as balsas que faziam a travessia entre Manaus e Iranduba atracavam durante a estação das chuvas, movimentando a economia da área. Com a desativação das balsas, o futuro da vila é sombrio.

“O comércio vai quebrar e não há esperança de emprego”, prevê Raimundo. “Os carros vão passar longe daqui. Eu não me incomodo, porque eu tenho meu barco e posso vender meu peixe em Manaus. Mas quem vivia do mercado da ‘beira’ vai sofrer muito.”

As incertezas não se restringem aos beiradões do Rio Negro e chegam ao interior da região. Seguindo pela rodovia Manoel Urbano, que liga os municípios de Iranduba e Manacapuru, uma placa esculpida em madeira chama atenção: “Welcome to Ariaú”. O povoado fica às margens do rio de mesmo nome. Trata-se de um amontoado de casas construídas sem ordenamento e tão pequeno que se o motorista não prestar atenção passa direto. As ruas são estreitas e tortas, a maioria sem asfalto, calçada ou meio-fio. A água da comunidade vem de um poço artesiano que exala forte cheiro de esgoto. A atividade comercial se restringe a hotéis de selva voltados para turistas estrangeiros, uma feira na beira da estrada e algumas mercearias. A maioria dos moradores vive da agricultura e das olarias da região. Os rumores sobre a ponte chegaram à região e já inflacionaram o mercado.

“A coisa mais difícil é encontrar um quartinho para alugar. Trabalhador de olaria que vem para cá está pagando caro. Tem mais dinheiro girando por aqui”, diz Erivam da Silva Correia, o líder da comunidade, que carrega no rosto a herança cabocla: pele queimada, cabelos lisos, rosto redondo e olhos levemente puxados. Erivam se tornou líder da comunidade após vencer uma eleição sem adversários. Visionário, sonha com um futuro diferente para o povoado. Ele crê que a ponte sobre o Rio Negro vai incrementar a combalida economia da região e – quem sabe? – transformar a vila em município. “Um dia, Ariaú vai virar uma cidade. E se o Lula pôde ser presidente, por que eu não posso ser prefeito?”, indaga, não escondendo o sorriso.

A pouco mais de 1 quilômetro dali, índios da etnia sateré-mawé não parecem assim tão satisfeitos. Desde o início das obras da ponte do Rio Negro, dezenas de loteamentos clandestinos foram criados ao redor da aldeia Sahu-Apé, onde vivem 48 índios, que agora temem o avanço dos grileiros sobre seu território. Originalmente, os sateré-mawé habitam a região do Baixo Amazonas, a pelo menos 300 quilômetros dali. A comunidade tem pouco mais de 19 hectares, doados em 1996 para abrigar índios que haviam migrado em busca de educação e emprego na capital. Pressionados pela dureza da cidade, se refugiaram na divisa de Iranduba e Manacapuru. Hoje, os indígenas vivem sob o comando de Dona Baku, a cacique da aldeia. O local é cercado por árvores que oferecem uma sombra providencial. Há algumas malocas de palha, casas de alvenaria e pequenos chalés onde turistas dormem quando vão assistir aos rituais indígenas encenados pelos sateré.

Ismael Freitas (ou Sahu) é filho de Dona Baku e assume o papel de nosso anfitrião pela aldeia. Com pouco mais de 1,70 m de altura, barriga protuberante e cabelos fartos, ele coloca um cocar de penas de arara e um colar de miçangas ao perceber que será fotografado. Parece fazer questão de reafirmar suas origens. À beira de um braço do rio Ariaú, algumas garças batem asas em revoada, mas logo o bando se dispersa. O som de uma motosserra, vindo da outra margem, rompe o silêncio.

“Todo dia é isso. Estão destruindo tudo”, diz Sahu. “Quem vê por fora não imagina, mas depois daquelas árvores” – ele aponta – “está tudo destruído.”

Mesmo tendo sido reconhecida pela Funai como uma comunidade indígena, a Sahu-Apé ainda não tem a situação fundiária definida. O Governo do Estado se comprometeu a conceder a regularização fundiária da aldeia como parte de um acordo para que as obras da ponte fossem liberadas pela Justiça Federal. Promessa feita, a obra prosseguiu, mas a regularização, não.

“O nosso medo é de que esses loteamentos ilegais engulam a nossa aldeia”, diz Sahu. “Sem o título da terra, não temos como impedir que os brancos invadam a nossa comunidade. Somos apenas 48, e eles são muitos. O governo nos enganou.”

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