Ele sobreviveu aos reinados de Elvis e dos Beatles, e às eras dominadas pelos hippies e pelo punk. Agora, o líder do Heartbreakers só toca para contentar a si mesmo
David Fricke | Tradução: J.M. Trevisan Publicado em 09/09/2014, às 16h22 - Atualizado às 17h18
Não sou tão bravo quanto as pessoas pensam”, diz um bem- -humorado Tom Petty no lounge do estúdio caseiro dele, em Malibu, Califórnia. “Quando era jovem, até mesmo a burrice me deixava agressivo. Vai ver foi daí que veio a reputação.” Na sequência, o líder dos Heartbreakers confirma uma história do fim dos anos 1970: a vez em que puxou um canivete da bota durante uma reunião na gravadora e começou a limpar as unhas. “É verdade”, diz ele, rindo, com o sotaque arrastado do norte da Flórida, intacto mesmo depois de quatro décadas morando no sul da Califórnia.
“Lembro que todos ficaram olhando para mim quando abri a lâmina. Aquilo deixou bem claro o meu recado: ‘Vocês não vão mudar minha cabeça sobre nada’.”
Mas Petty insiste: “Não sou raivoso. Eu estava tentando fazer o melhor trabalho possível. É difícil entender uma imagem já criada sobre você. Mas certamente não sou um cara nervoso”. Ele sorri por baixo da barba cor de areia. “Estou provavelmente na fase mais agradável da minha vida.” Há uma grande razão para isso – Petty e a banda dele, os Heartbreakers, acabaram de gravar um dos melhores álbuns da carreira, Hypnotic Eye, um retorno ao rock de garagem e às histórias bem amarradas sobre os azarões da vida mostradas em Tom Petty & the Heartbreakers (1976) e no duplamente platinado Damn the Torpedoes (1979). O disco chegou ao topo da parada e eles estão prestes a mostrá-lo em uma turnê de dois meses pela América do Norte. “Esta foi a primeira semana de ensaio”, Petty conta em uma tarde recente. “Aprendemos cinco ou seis músicas, e elas ficaram boas logo de cara – o que é um bom sinal”, ele acrescenta, parecendo radiante. “Não há nada que eu almeje em termos de carreira no momento”, diz o músico, que também está preparando um relançamento luxuoso da obra-prima solo dele, Wildflowers (1994), que deve chegar às lojas no fim do ano. “Só estou tentando ser melhor. Eu estaria fazendo a mesma coisa ainda que tudo tivesse dado terrivelmente errado.”
Mas não deu. Nascido em Gainesville, Flórida, filho de um vendedor de seguros, Petty tinha como objetivo uma vida totalmente rock and roll desde o início: conheceu Elvis Presley em 1961 em um set de filmagem; emulou os Beatles e os Animals com um grupo de Gainesville, o Epics; virou hippie com a banda seguinte, Mudcrutch, que contava com o futuro guitarrista dos Heartbreakers, Mike Campbell, e o tecladista Benmont Tench. No lounge, por mais de quatro horas e movido a várias xícaras de café, Petty fala lenta e profundamente sobre o alto custo de sua paixão – a relação de temor com o pai e a briga para realizar seus sonhos no rock e encontrar uma voz como compositor.
Petty é sincero em sua gratidão também: pelo sucesso, pela vida em família (ele é casado há 13 anos com a segunda esposa, Dana, e tem duas filhas, Adria e Kimberly, do primeiro casamento) e pelas estimadas amizades com ídolos como Bob Dylan e Johnny Cash. “Uma criança que sofreu abusos se refugiou no rock and roll”, diz Petty mansamente. “De alguma forma meu carma funcionou assim.” Ele alega ser capaz de perceber vestígios do som que faz e do tipo de música que compõe no trabalho de artistas mais novos. Cita uma canção que ouviu outro dia chamada “What Would Tom Petty Do?”, da cantora e compositora Emma-Lee. “É sobre se perguntar ‘o que Tom Petty faria?’ quando se está em dúvida.” Ele ri, levemente fascinado. “Não sei o que Tom Petty faria. Mas obrigado por perguntar.”
Você ainda se empolga com o lançamento de um álbum?
Sim. Fico muito curioso para saber o que vai acontecer, se as pessoas vão gostar. Dei o sangue neste disco, e espero que isso transpareça. Álbuns sobem e descem nas paradas, e em uma semana ou duas está tudo acabado. Perdi alguns grandes lançamentos porque nem ouvi falar. Bruce Springsteen lançou um disco um tempo atrás [High Hopes] – ninguém me contou. Só fui descobrir dois meses depois. Fiquei, tipo: “Não, é mentira que ele lançou”.
Qual era o clima quando saiu o primeiro álbum com os Heartbreakers, em 1976?
Foi algo marcante. Tínhamos voltado para Gainesville para os ensaios da primeira turnê. Enquanto estávamos lá, o disco saiu. Fomos a uma loja, e lá estava na prateleira. Foi o sentimento mais louco, como se tivéssemos escalado o Monte Everest. Antes de deixarmos a cidade, ficamos sabendo que iam tocar o álbum na rádio, porque éramos locais. Dois dos membros do Eagles eram de Gainesville também [Bernie Leadon e Don Felder], então o locutor disse: “Temos dois discos de bandas de Gainesville. Um é do Eagles e o outro é de Ted Petty and the Heartbreakers” [risos]. Levou anos até que eu conseguisse deixar isso para trás. Fui chamado de Ted por um bom tempo.
Você brigou com gravadoras durante toda a carreira por causa de contratos e por controle. Fica ressentido de ter virado um produto?
Eu entendi como o jogo é jogado. Ficava ressentido com o quanto a mente das pessoas podia ser fechada. Na época de Into the Great Wide Open (1991), estávamos seguindo rumo à terceira música de trabalho nas rádios e lembro que me disseram: “Queremos algo rápido, com um solo de guitarra”. Para mim foi um insulto.
Você faz discos assim o tempo todo.
Mas quando alguém exige que você faça isso... Não seguia a regra – e mesmo assim consegui continuar. O disco seguinte foi Wildflowers. Uma das faixas era “You Don’t Know How it Feels”, que não era rápida. E não havia nenhum solo estridente de guitarra
O quanto dessa natureza briguenta vem de ter sido criado no sul?
Eu não concordo necessariamente com muito do pensamento sulista. Sou grato ao sul. É um lugar lindo. Há pessoas maravilhosamente fascinantes lá. Mas há também uma ignorância terrível e o mal puro e simples. É parte da cultura, está tudo misturado.
A Gainesville dos anos 1960 deve ter sido um lugar bem difícil para um roqueiro.
Apanhei algumas vezes, por nenhuma outra razão além da minha aparência. O Epics tinha um circuito de shows que garantia a sobrevivência da banda, em cidades pequenas. Mas esses são justamente os lugares em que você toma surra. Algumas vezes fiquei encurralado. Graças a Deus os outros membros da banda apareceram. Eles eram mais velhos e mais intimidadores. Eu estava lendo a autobiografia de Don Felder outro dia, ele conta que uma vez foi tocar com o Epics em uma cidadezinha, Live Oak. E aí acabou entrando numa briga terrível e teve o braço gravemente ferido, a ponto de sentir incômodo até hoje quando toca guitarra. Lembro-me daquela noite.
Certa vez você descreveu seu pai para mim como “Jerry Lee Lewis se ele não tocasse piano”. Você herdou dele essa sua personalidade obstinada?
Na verdade, não. Eu tinha tanto medo dele que me tornava invisível quando estava por perto. A única coisa de que me lembro é o medo. Ele era apaixonado por pescaria e conhecia bem os pântanos. Mas se tornava muito assustador se você passasse um tempo em um barco com ele. Fiz isso algumas vezes. Minha mãe era da Geórgia. Queria ser inteligente. Teria adorado fazer faculdade se tivesse grana. O lado da família do meu pai era mais de gente linha-dura do interior. Minha mãe não os queria por perto, ponto. Eles nunca nos visitavam. Ela disse: “Não somos do campo”. Mas o que ela queria dizer era: “Não somos caipiras malucos”. Ela não falava com aquele sotaque, e também não queria que falássemos.
Muitas de suas músicas novas são sobre gente passando por dificuldades econômicas e sociais. Isso resume sua família?
Estávamos logo abaixo da classe média. Não tínhamos dinheiro sobrando, mas não morríamos de fome. Nosso bairro era de famílias que haviam conseguido juntar dinheiro suficiente depois da guerra para pagar uma casinha, e todas as crianças iam para a escola pública.
Você tinha um plano A para o sonho americano [referência à faixa “American Dream Plan B”, de Hypnotic Eye]?
Eu queria tocar e não precisar ter um emprego. Nos poucos que tive, fui demitido por não levar a sério. Em uma época, quando o Mudcrutch não conseguia shows o suficiente, eu e [o guitarrista] Tom Leadon arrumamos emprego no departamento de manutenção da Universidade da Flórida. Os chefes da equipe eram todos caipiras. Um deles não sabia ler. Ele pedia que a gente lesse os rótulos das tintas para ele. Lembro que me deu um sermão, dizendo que se eu me esforçasse poderia virar um empregado permanente e me aposentar em 20 anos. Não queria rir dele, mas deixei claro: “Isso aqui é só um quebra-galho para mim. Não estou pensando na aposentadoria”
Você sempre se viu como um líder de banda?
E os outros membros do Heartbreakers, aceitavam numa na boa? Mike e Benmont são bons, espertos. Acharam tranquilo desde o início. Não acho que [o baterista original] Stan Lynch gostasse muito, o que nos causou anos de conflito. O que eu disse para eles foi o seguinte: “Se vocês querem gravar, eu tenho um contrato. E eu adoraria ter uma banda. Só que ela vai ter meu nome”.
Qual foi a primeira grande música que se lembra de ter composto?
“American Girl” [do disco Tom Petty & the Heartbreakers]. Pensei: “É nesse nível que vou ter que chegar da próxima vez”. Em termos de letra, tinha feito algo. Não sabia exatamente o que, mas percebi que tinha potencial para seguir fazendo isso, no fim das contas. E agradeço [ao produtor] Denny Cordell pelo modo como me educou.
Qual foi a grande desvantagem do seu estrelato nos anos 1980? Você é um dos poucos daquela época que não têm nenhuma história de reabilitação de drogas.
Nunca fui parar em clínica. Temos alguns membros do AA na banda. E ver [o baixista] Howie Epstein partir do jeito que partiu foi muito triste, algo com que tivemos que conviver por um bom tempo [Epstein, que entrou para o Heartbreakers em 1982, morreu em 2003, vítima de complicações decorrentes do vício em heroína]. A bebida nunca me pegou. Não gostava de ficar bêbado. Meu negócio era mais baseado. A maconha é uma droga musical. Você ouve muito bem quando está chapado de marijuana.
Há algum álbum que você se arrepende de ter feito?
Echo, embora tenham me dito que nem é tão ruim. Eu tinha acabado de me divorciar. Minha família estava totalmente revirada. Howie teve problemas sérios. Mas o prazo para um novo disco estava para vencer. E eu tinha gente em volta me dizendo: “Você consegue. Vai lá”.
Para seus ídolos, você era o melhor tipo de amigo – transformava seu amor por aqueles artistas em música para a geração seguinte.
Roger McGuinn me disse uma vez: “Se não fosse você, acho que as pessoas sequer se lembrariam do The Byrds”. Eu disse: “Não acho que seja necessariamente mérito meu, Roger”. Mas eu reforcei a ideia do quão incrível era o que eles haviam feito. Conversei muito com Carl Perkins sobre como ele era bom. Os Beatles já haviam dito a ele nos anos 1960, mas não tinha funcionado. Ele não acreditou. Eu realmente tentei fazer com que ele acreditasse nisso.
Em 1995 você disse: “Estou com 44 anos e não me sinto velho para continuar”. Agora você tem 63. O quão velho é velho demais para você?
Você vê um monte de gente que começou na mesma época que nós como luzes brilhando de formas diferentes. Algumas vão se apagando e dá para entender por quê. Eles estão ligados a uma década específica e precisam sugar tudo o que restou dela para sobreviver. Não desmereço isso. É o destino, as cartas que caíram na mão deles. O que é pouco comum nos Heartbreakers é que ainda estamos fazendo shows grandes. Isso é mais estranho do que o fato de ainda estarmos juntos. Mas não acho que a parte dos shows ao vivo vai continuar para sempre. Tenho uma quantidade finita de tempo restante. Não é como se me restassem 20 anos para gravar discos. Há muita coisa que ainda quero fazer. E os álbuns duram mais que eu. Músicas que fiz nos anos
1970 – ainda as ouço no rádio. É a marca que deixei no mundo enquanto estive aqui. Fiz alguns grandes shows dos quais as pessoas se lembrarão, mas o verdadeiro trabalho, para mim, é um só: meus discos.
Do outro lado
Ao mesmo tempo ídolo e fã, Tom Petty teve a chance de conhecer vários artistas que admirava
Uma raridade surpreendente nos shows de Tom Petty, em 2013, foi a presença de uma versão dos Heartbreakers para “Tweeter and the Monkey Man”, faixa que ele gravou em 1988 com o Traveling Wilburys. Petty era o mais jovem em uma banda na qual tocavam Bob Dylan, George Harrison e Roy Orbison, além de Jeff Lynne. “Estávamos todos admirados uns com os outros. E tínhamos uma reverência especial por Bob. Não queríamos assustá-lo para que ele não saísse do projeto”, conta. O músico, fanático pelos Beatles, teve a chance rara de conviver com o ídolo George Harrison. “Fiquei surpreso por ele gostar tanto de mim”, diz. “Viramos amigos imediatamente. Foi estranho. Eu dizia a ele: ‘Como lidamos com isso? Você é um beatle’. E ele: ‘Tá, e daí? Isso foi há muito tempo’. Era o que eu precisava na vida, o irmão mais velho que nunca tive.”
Harrison não era o único artista que Petty admirava com quem teve a chance de conviver. “Phil Everly [do The Everly Brothers] era um grande amigo”, conta. “Nos conhecemos em um estacionamento de escola, quando fui buscar minha filha. Ele tinha um filho estudando lá também. E eu dizia: ‘E seu irmão?’ Eles não se falavam havia uma década. ‘Aqueles discos significavam
tanto para mim.’ E ele: ‘Sabe quantas vezes ouço isso todos os dias?’ [Risos]”
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