O francês Thomas Piketty, autor de O Capital no Século XXI, explica por que acredita que o Estado precisa criar novos impostos para grandes fortunas
Jorge Fontevecchia | Tradução: Lígia Fonseca Publicado em 12/06/2015, às 15h47 - Atualizado às 16h15
O livro o Capital no Século XXIcausou tanto furor ao ser lançado, em 2013 (ganhou versão em português em 2014, pela editora Intrínseca), que já é tido como a mais importante obra de economia das últimas décadas. O economista e intelectual francês Thomas Piketty publicou ali um intricado e expositivo estudo sobre os males do acúmulo de riqueza por uma fatia cada vez menor da população. O Capital no Século XXI se debruça principalmente sobre os Estados Unidos e a Europa, mas as teorias do autor são facilmente transportadas para qualquer parte do mundo.
Para Piketty, é imprescindível que haja uma intervenção do Estado sobre grandes fortunas, por meio de impostos diferenciados sobre os mais ricos. É o que o especialista reafirma na conversa a seguir, dizendo que ele próprio – que, com seu livro tendo figurado no topo da lista dos mais vendidos dos Estados Unidos, tem arrecadado um volume considerável de dinheiro – roga ao governo francês que lhe cobre mais impostos.
O capital é sinônimo de poder?
Sim, mas esse poder não é apenas o poder de algumas pessoas às custas de outras. O capital também permite aumentar o tamanho do progresso. Não sou contra o crescimento, acredito nele – no progresso técnico. Gosto do capital, gosto tanto que quero que mais pessoas o tenham. As relações patrimoniais envolvem poder, e quero encontrar caminhos e instituições que permitam uma distribuição mais democrática do poder e uma regulamentação mais pacífica da desigualdade e do acúmulo de bens.
E o capital também é sinônimo de honra: quando se é pobre ou rico, você quer encontrar razões para isso, e há razões baseadas no mérito, na virtude, na justiça. É necessário encontrar razões, boas ou más. É o que acontece com os países: eles precisam de explicações de por que são ricos ou pobres, e elas são muito importantes porque explicam grande parte dos movimentos políticos que acontecem ao longo do tempo. Uma coisa que tento com meu livro é ir além dessa ideia e lutar contra o nacionalismo intelectual, tentar convencer os diferentes povos em diferentes países de que sempre há mais para aprender com a experiência de outras nações. É legítimo ter identidades nacionais. O problema é que, muitas vezes, isso leva a respostas simples para problemas complexos e às vezes se chega à solução errada.
Seu livro esclarece que se refere ao capital de bens, e não ao capital humano, mas há uma porosidade entre os dois conceitos, porque, a determinado custo, o trabalho pode substituir o capital. É possível sustentar que os países com muito capital humano – os do bloco emergente BRICS [formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul], por exemplo – acabarão tendo a maior quantidade de capital em bens?
Ambas as formas de capital, humano e não humano, são muito importantes, portanto, quando falo de capital humano no meu livro, prefiro falar de educação, habilidades, mão de obra qualificada. Isso é capital humano. Tanto os anos de educação e as habilidades quanto o capital não humano são fundamentais para o processo de desenvolvimento. Precisamos aumentar ambos para atingir o desenvolvimento e ter um crescimento equilibrado no longo prazo.
Quando você escreveu seu livro, o petróleo não parava de subir. Depois de apenas 18 meses, vale menos da metade, em parte devido à nova oferta de petróleo e
gás. Você acredita que saltos tecnológicos, como a energia solar e a robótica em grande escala, permitirão aumentar o crescimento per capita no futuro?
Sim. O progresso técnico e as novas invenções podem nos ajudar a continuar crescendo a velocidades mais altas do que alguns economistas acreditam. Precisamos ser conscientes de que não temos as tecnologias para continuar crescendo depois de 2050, mas isso não significa que não vamos inventá-las.
Nos Estados Unidos, é possível dizer que a desigualdade também é resultado de as boas universidades serem pagas e caras, além de não haver igualdade de
possibilidades de acesso geral ao conhecimento, como ocorre na Europa?
Também é resultado, mas, ao mesmo tempo, parte do que está funcionando bem nos Estados Unidos se relaciona com a inovação e o fato de que há universidades e departamentos de pesquisa muito bons. Lá, o sistema educacional é parte do que está funcionando bem e, ao mesmo tempo, mal, o que faz com que as melhores universidades sejam muito boas, mas o resto do sistema educacional, não. Deveria existir um investimento público muito maior na educação, já que a metade menos favorecida da população no país, ou até dois terços, não apenas não vai a Harvard, vai a escolas secundárias e universidades comunitárias, que às vezes são de baixíssima qualidade e contaram com pouquíssimo investimento nas últimas décadas em comparação aos imensos recursos investidos nas melhores instituições. Em meu livro, dou uma estatística simples: os pais dos estudantes da Universidade de Harvard são, em média, os 2% da população com rendas mais altas. É algo alarmante, porque sempre se ouviu o discurso meritocrático nos Estados Unidos.
Meritocracia radical?
Há muita hipocrisia. Às vezes, as elites desejam falar de meritocracia, de nobreza, mas depois, quando nos fixamos nos números, tudo pode ser muito diferente. Precisamos
de mais transparência, não apenas nas rendas e na riqueza mas também no sistema educacional e em como nossos recursos públicos beneficiam diferentes grupos. Os procedimentos de admissão nas universidades deveriam ser muito mais transparentes. Em alguns casos, nos Estados Unidos, é possível comprar a admissão ao dar dinheiro às universidades, e não creio que isso seja aceitável. [Poucos dias depois desta entrevista, realizada em janeiro de 2015, o presidente Barack Obama anunciou um imposto sobre os mais ricos para reinvestir em educação e outras medidas econômicas tão paralelas às propostas de Piketty que há quem acredite que foram inspiradas no livro dele].
É sustentável que a Europa tenha 7% da população mundial e 75% do investimento mundial em assistência social?
É uma pergunta complicada. Em alguns casos, as instituições de assistência social na Europa são mais complexas do que grandes. O sistema de pensões na França é muito cheio de nuances, temos regras bastante diferentes para o setor público e o setor privado, por exemplo. O que proponho seria mudar para um sistema unificado, como o da Suécia, onde existe um sistema único de pensões para todos os trabalhadores, um sistema muito mais simples. Isso não significa que seja menor – Suécia e Dinamarca são duas economias bastante competitivas, com arrecadação de impostos de cerca de 50% do PIB.
Ao usar “O Capital” no título de seu livro, você obviamente faz referência a Karl Marx.
Meu livro é muito, muito diferente da obra de Marx [o conjunto de textos O Capital, de 1867] em vários aspectos. Acho que esse é o título correto. No título está escrito “O Capital”, mas também está escrito “No Século XXI”, e isso é uma grande diferença, porque o que estou tentando fazer é levar o estudo do capital para o século 21, e ao fazer isso também levo o estudo à era da compilação de dados. Há pouquíssimos dados no livro de Marx. Em termos de teoria, também é muito diferente. Não digo que 100% da riqueza mundial será dos multimilionários, mas sim que, dada a velocidade com que a riqueza média dos multimilionários está aumentando no momento, em comparação à taxa de crescimento da economia, isso não continuará até o infinito, mas pode ir muito longe, o que é suficiente para ser preocupante.
Hoje, entre os mais ricos, há cada vez mais gente com mérito próprio e cada vez menos herdeiros. Parece que, cada vez mais, é mais fácil gerar fortunas de bilhões de dólares, especialmente no Vale do Silício, algo que é exemplificado por Mark Zuckerberg, criador do Facebook, e até pelos fundadores do Snapchat. O que você diz sobre a concentração de riqueza no século 21?
Sempre foi assim. No século 20 também houve muita inovação na área automobilística, na indústria, na eletricidade. John D. Rockefeller, Henry Ford, Andrew Carnegie e Cornelius Vanderbilt fizeram suas fortunas a partir da produção e da distribuição. Eram empreendedores de verdade. Bill Gates também é. Sempre há essa renovação de riqueza. Isso quer dizer que a disparidade ou a concentração de riqueza que serão geradas a partir desse processo são boas? É suficiente depender apenas dessas forças naturais ou de mobilidade para conseguir uma distribuição de riqueza que seja ideal do ponto de vista social e do econômico?
Não. São duas questões diferentes.
Mais uma vez, vem à tona a crença em uma meritocracia radical.
Exatamente. São incorretas as visões de que o fato de existir esta mobilidade é sinônimo de que as forças naturais geram uma distribuição perfeitamente meritocrática da riqueza.
Uma deformação da teoria de John Rawls da justiça como equidade, a meritocracia é mais filosofia do que economia.
A meritocracia é utilizada muito frequentemente como um discurso para justificar desigualdades extremas que não têm justificativa.
Seu livro chegará a mais de 1 milhão de exemplares vendidos, e a US$ 4 de direitos autorais por livro você receberá US$ 4 milhões no total. É paradoxal ficar rico escrevendo sobre a riqueza?
É bom esclarecer que pagarei um monte de impostos, e gostaria de pagar mais. Estou me esforçando para convencer o governo de que ele tem de me fazer pagar mais impostos.
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