Em Ruanda, os ecos do genocídio ainda podem ser ouvidos. A população do país, um dos mais pobres do mundo e, ao mesmo tempo, um dos mais promissores do continente africano, luta para se reconstruir à beira de uma nova ditadura
Por Gustavo Silva Publicado em 15/12/2010, às 16h49
Na parede, a foto de um casal. "Eles são como pais para mim", diz Yvone Magnifique, dona do pequeno espaço com sala, quarto, banheiro e cozinha, sobre os escoceses que bancaram parte da casa onde vive. O lugar é simples, com paredes à espera de um banho de cor (algo que não deve ocorrer em um futuro próximo), mas não rústico - adjetivo que descreve melhor as casas vizinhas, cujas estruturas são feitas à base de barro. Os europeus, depois de escutarem a história de Yvone, resolveram ajudá-la. Sua biografia trouxe também apoio financeiro e psicológico de uma ONG britânica. De antemão, o que eu sabia sobre aquela mulher era que ela é uma sobrevivente do genocídio em Ruanda. Antes de acomodar-se em uma poltrona para contar sobre seu passado e presente, Yvone pede licença. Põe os pés para fora de casa, grita algumas palavras e, em segundos, uma garotinha aparece. Vestida de maneira impecável, usando o que parece ser o uniforme da escola, ela, timidamente, senta no colo de Yvone. "É a filha dela", diz Yannick Tona, estudante ruandês de 20 anos - ele também um sobrevivente do genocídio - que faz o papel de tradutor na conversa. Yvone complementa em inglês, sem auxílio: "É ela que me dá forças para seguir em frente".
Antes do genocídio, Yvone vivia em um pequeno distrito rural com os pais e os oito irmãos. As memórias desse período da vida são difusas e distantes, e ganham contornos fortes a partir de 1992, quando a família, assustada com o fato de vizinhos serem assassinados por milícias, foi procurar abrigo na paróquia local de Nyamata, vilarejo ao sul da capital Kigali. Em um país onde mais de 70% da população segue o catolicismo, as igrejas pareciam ser um porto seguro para a sobrevivência. Contudo, o pedaço do céu mostrou-se, em 1994, o pior lugar do mundo para se esconder.
A data-chave para compreender Ruanda é 1994, mais especificamente o dia 6 de abril, quando o avião do ditador ruandês Juvénal Habyarimana foi derrubado. O atentado, de autoria desconhecida até hoje, deu início a uma série de assassinatos em massa perpetrados pela etnia hutu contra a minoria tutsi e hutus moderados. Em pouco mais de 100 dias, corpos de mais de 800 mil pessoas jaziam espalhados sem vida por todo o país. Em nenhum momento da história moderna matou-se tanto em tão pouco tempo.
Em 10 de abril de 1994, milicianos invadiram Nyamata. Em meio à confusão, granadas, tiros e muitos, muitos golpes de armas brancas - facões, machados, clavas e qualquer outro instrumento rústico que pudesse ser usado com a finalidade de matar -, Yvone e seis dos irmãos conseguiram fugir. Os sobreviventes da família Magnifique foram parar em Ntarama, outra vila que entrou para a história de Ruanda pela quantidade de sangue derramado na igreja local. A história se repetiu, mas com um saldo diferente: cinco dos irmãos foram assassinados a facadas; ela e o irmão mais velho, dados como mortos, passaram três dias desacordados sob corpos de homens, mulheres, idosos e crianças.
Apesar de repassar suas desgraças pessoais, a voz de Yvone variava até então num misto entre a melancolia e a saudade. O terceiro capítulo da história durante o genocídio começava em ritmo de ódio e indignação. Ela e o irmão conseguiram fugir de Ntarama e, dias depois, foram encontrados novamente por milícias hutus. Ele, com 21 anos, foi torturado a facadas diante de seus olhos, para depois ser arremessado em um caldeirão de água fervente. Com o irmão agonizando, Yvone foi espancada e, após ser atingida violentamente na cabeça, desmaiou. Deixada estirada na mata, ela acordou dias depois nos braços de um soldado da Frente Patriótica Ruandesa, as forças rebeldes que invadiram o país e deram fim ao genocídio. "Quando me levaram ao hospital, havia uma infinidade de vermes na minha cabeça", relembra. "Por conta das pancadas, tive uma série de sequelas - sangue saindo pelos olhos, orelhas, nariz, e dores, por vários anos."
Escutar Yvone é entender, por meio de uma tragédia pessoal, a história de um país. Todos os elementos estão conectados: a paz relativa pré-1994, o inferno total durante o banho de sangue, e os tempos de dor, incerteza e reconstrução que vieram com a noção de futuro. Na definição que me fora dada dias antes pelo Ministro de Esporte e Cultura, Joseph Habineza, "temos três períodos em nossa história: antes, durante e após o genocídio".
Por trás da poeira levantada a partir da terra vermelha que cobre a maior parte dos caminhos de Kigali, não há pistas sobre o passado, mas muitas informações sobre o presente e o futuro. Ruanda tornou-se um país-modelo no continente africano. A economia cresce ano após ano - a estimativa é de 6% para 2010 -, e os níveis de corrupção estão entre os mais baixos da África, atraindo (muito) dinheiro de governos doadores e de empresas internacionais, como as gigantes Starbucks e Dubai World.
Obras de infraestrutura, como a pavimentação de ruas, o alargamento de grandes avenidas, a construção de casas e prédios e a instalação, em parceria com o governo sul-coreano, de cabos de fibra ótica por todo o país, contrastam com outras informações visíveis a olho nu: mais de 60% da população vive abaixo da linha da pobreza, com renda de 250 francos ruandeses (aproximadamente US$ 0,43) por dia, o que coloca Ruanda entre os países mais pobres do mundo, com o PIB per capita de cerca de US$ 400/ano.
Os dados, que sugerem um cenário de violência e criminalidade, aliados à paisagem geral do país de morros - Ruanda não tem a alcunha de Terra dos Mil Montes por acaso -, que se assemelham em muito a favelas brasileiras, não sujam a reputação do país como o mais seguro do leste africano e um dos mais limpos do continente. Não há sujeira nas ruas do centro de Kigali, e sacolas plásticas são banidas em toda a nação.
Algumas das paredes do Parlamento Nacional exibem a única pista explícita do passado do país. São marcas de bala e de explosões de outros projéteis causadas durante a guerra que corria paralela junto ao genocídio. Há de se registrar, todavia, que as mais de 800 mil mortes não têm relação direta com o conflito armado. "O genocídio foi planejado por anos, décadas", explica Freddy Mutanguha, diretor do Centro Memorial Kigali, o maior do país dedicado ao episódio de 1994. "O que aconteceu não foi uma explosão generalizada de violência civil, mas sim algo estrategicamente planejado."
Inicialmente uma colônia alemã, Ruanda passou ao controle da Bélgica ao final da Primeira Guerra. Os belgas encontraram uma terra com uma forte e tradicional estrutura política, e, ao longo dos anos, apoiaram e incentivaram o divisionismo por linhas étnicas, criando documentos de identificação para hutus, tutsis e twas - minoria que corresponde a 1% da população. O que antes era percebido como diferença de classes (com os hutus historicamente ligados à atividade agrícola e os tutsis à criação de gado) foi transformado - e aceito - em diferença de raças, baseada principalmente em traços físicos - os tutsis, esguios e de narizes finos, próximos dos traços europeus, seriam superiores aos hutus e, portanto, os mais aptos a exercerem o papel de liderança.
As tensões entre os povos tiveram início em 1959, em uma revolução que deu fim ao governo monárquico-tutsi no país. Em 1962, Ruanda tornou-se independente e as lideranças hutus passaram a perseguir e apoiar massacres contra a minoria tutsi, resultando em centenas de milhares de mortos e refugiados - entre eles, Paul Kagame, o atual presidente, que, aos 2 anos, escapou com a família para Uganda.
Em 1990, Kagame, ex-homem forte do então guerrilheiro e hoje presidente de Uganda, Yoweri Museveni, liderou a invasão da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) a Ruanda, dando início a um conflito que durou três anos. À frente de um Estado economicamente quebrado, o então ditador hutu Juvénal Habyarimana, no poder desde 1973, viu-se obrigado, pressionado pela comunidade internacional, a aceitar assinar os Acordos de Arusha. O processo de paz, mediado pela ONU, apontava para a abertura democrática.
O genocídio é, acima de tudo, um crime político, e o caso de Ruanda é exemplar. Um Estado, guiado pela manutenção perpétua do poder, explora os medos de um povo castigado pela crise da economia. O conflito civil contra a FPR, de maioria tutsi, serviu, em conjunto com a manipulação da história, para pintar um cenário onde todos os tutsis eram inimigos. Hutus moderados eram retratados como cúmplices e, portanto, também inimigos. A população, predominantemente agrária e distante de centros de informação (controlados pelo governo), é obediente às ordens. A mídia torna-se a fonte da propagação de ódio. "Hutus devem parar de ter piedade dos tutsis", dizia o oitavo da série dos "Dez Mandamentos para Hutus", divulgado nas páginas do maior jornal do país.
"Saiba que a pessoa cujo pescoço não é cortado agora será aquela que cortará o seu", disse em 1992 León Mugesera, professor universitário e membro do partido do governo. "Temos que agir contra os tutsis - destruam todos eles." As palavras ganharam força nas armas e nos facões das Interahamwe, milícias treinadas e financiadas pelo Estado que, horas após a queda do avião presidencial, mantinham bloqueios pelas ruas da capital e estradas de todo o país. Todo aquele que portava uma carteira de identidade tutsi - ou não exibia nenhum documento que provasse o contrário - era executado na hora. Um comandante dissidente, responsável pela mobilização de recrutas, avisou a um coronel da ONU em Ruanda que as milícias, divididas em grupos de 40 homens na capital Kigali, poderiam conduzir o extermínio de mil tutsis em pouco mais de 20 minutos.
A matemática do terror é simples: 100 dias igual a 800 mil mortes - cálculo arredondado para baixo, já que, ao contrário do caso de Yvone, famílias inteiras foram dizimadas de tal maneira que, sem sobreviventes para contar história, elas não são contabilizadas.
As lembranças do genocídio não estão à mostra em qualquer esquina, mas são explícitas nos lugares reservados para tal. Centenas de memoriais estão espalhados pelo país, dos quais oito, pontos onde as chacinas mais marcantes aconteceram, são tombados pelo governo. As paróquias onde Yvone viveu parte dos piores momentos da vida estão entre eles. Nesses lugares, tudo foi deixado de maneira quase intocada para representar o que de fato aconteceu em 1994 - as roupas das vítimas continuam espalhadas no chão e milhares de crânios e fêmures são exibidos em prateleiras. "Vê aquelas manchas na parede?", pergunta o guia em Ntarama, em uma casa anexa à antiga igreja. "Os hutus pegavam as crianças mais novas e os recémnascidos e os arremessavam na parede."
É tentador crer que, com todas as chacinas em igrejas - das quais pastores e chefes religiosos muitas vezes participaram ativamente -, Ruanda foi abandonada por Deus em 1994. Todavia, a história deixa claro que credos religiosos não importam, e que quem virou as costas para o país foi o mundo e seus líderes políticos, seja de maneira unilateral, seja de forma conjunta a partir da ONU.
O general canadense Roméo Dallaire, responsável pela UNAMIR, a missão de paz das Nações Unidas estacionadas em Kigali desde a assinatura dos Acordos de Arusha, fora avisado no início de 1994 de um grande estoque de armas escondido em Ruanda, que, de acordo com o informante, seria usado para o extermínio de tutsis. Sua intenção de apreender o armamento foi recusada por Kofi Annan, o então chefe das operações de paz da ONU que, anos depois, veio a se tornar Secretário-Geral na organização.
Dallaire é uma das poucas figuras internacionais vistas com simpatia em Ruanda. A missão por ele comandada foi um fracasso - não dispunha de equipamento, de homens nem ao mesmo de um mandato para interferir no curso do genocídio - mas permaneceu em Ruanda até o fim, mesmo depois de sua tropa de pouco menos de três mil soldados ter sido reduzida em 90% depois do assassinato de dez soldados belgas por forças hutus. O envolvimento do ex-militar com os eventos de 1994 foi tamanho que, abalado, o hoje senador pelo estado canadense de Quebec tentou o suicídio por mais de uma vez.
Os Estados Unidos, recém-saídos de um dos maiores vexames da história de sua política internacional - a queda dos helicópteros na Somália, e as imagens que rodaram o mundo de soldados arrastados pelas ruas da capital Mogadishu por forças rebeldes - limitaram-se apenas a retirar seus cidadãos e funcionários de Ruanda, ato repetido por todas as embaixadas em Kigali. Os tutsis que trabalhavam nesses lugares são hoje apenas nomes gravados em placas em homenagem aos mortos.
A antiga escola técnica na província de Murambi é mais um registro do fracasso da comunidade internacional em lidar com o genocídio. O inferno se materializa nas antigas salas de aula anexas ao prédio central do hoje memorial. Parte delas abriga, como em Ntarama e Nyamata, ossadas dos 45 mil tutsis executados no espaço em menos de uma semana - estima-se que menos de 100 pessoas escaparam com vida ao massacre, soterradas em meio aos cadáveres. O grande horror - os crânios e fêmures reunidos não são o ápice - está reservado à meia dúzia de pequenas casas onde cerca de 800 corpos são exibidos da forma como foram exumados de valas coletivas. Graças ao efeito mumificador do carbonato de cálcio, os mortos, alguns com pedaços de cabelo ainda intactos, se comunicam pelas expressões corporais. Em meio ao silêncio, é possível ouvir o grito de homens, mulheres e idosos, e o choro das crianças. O ruído das moscas é perturbador, tal como a mistura do odor de cal e naftalina - o cheiro da morte.
A poucos metros dali, sinais indicam lugares onde covas coletivas foram escavadas pelas milícias hutus. Uma placa chama mais a atenção que as demais. "Aqui marca o lugar onde os soldados franceses da Operação Turquesa jogavam vôlei", anuncia o guia em Murambi. "A França teve participação ativa durante o genocídio em nosso país."
À medida que as forças rebeldes tutsis avançavam a partir de Uganda rumo ao oeste de Ruanda, marés de refugiados hutus inundavam os países vizinhos - mais de 250 mil pessoas fugiram em direção à Tanzânia em um único dia de abril de 1994, na maior onda de refugiados da história moderna. Sob a bandeira das Nações Unidas, o governo do francês François Mitterrand deu início à Operação Turquesa, atuando inicialmente no noroeste de Ruanda - onde Murambi está localizada - para depois controlar toda a região oeste do país. O propósito da missão não era combater o extermínio tutsi - por mais que milhares tenham se salvado graças à intervenção - mas sim conter o avanço das tropas da FPR, tomadas como inimigas, que chegariam àquela região. "O feito marcante da Opération Turquoise foi
permitir que a matança de tutsis continuasse por um mês extra, e garantir ao comando genocida uma travessia segura, com grande parte de suas armas, para o Zaire [atual Congo]", escreve o jornalista Philip Gourevitch, autor do livro Gostaríamos de Informá-los Que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias.
No primeiro ano pós-genocídio, mais de um milhão de hutus, entre civis inocentes e génocidaires, viviam em campos de refugiados no Congo. Os milicianos intermahwe organizaram-se nas Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda (FDLR), guiados por objetivos que o próprio nome denuncia e o passado desmente. A última grande incursão armada do grupo rebelde em Ruanda aconteceu em 2000, o que sugere relativa paz nas fronteiras, cujas linhas são demarcadas por duas grandes belezas naturais, o lago Kivu, um dos Grandes Lagos Africanos, e a cadeia de vulcões das Montanhas Virunga.
Além da exportação do chá e do café, o turismo tem ganhado espaço como uma das maiores fontes de divisa de Ruanda. O Parque Nacional dos Vulcões, nessa área de fronteiras, é símbolo dessa nova indústria. Trata-se de um dos únicos lugares do mundo onde é possível ver famílias de gorilas das montanhas - ao custo de U$ 500. Apesar do alto valor, a agenda para o passeio já está lotada até o final de 2010.
Bem mais em conta são as caminhadas e os percursos de trekking pelas montanhas que vão além dos três mil metros acima do nível do mar. Meu grupo é instruído a fazer todo o percurso em silêncio para não chamar a atenção de animais selvagens. Soldados do exército nos acompanham armados de fuzis "para afugentar animais que apareçam no caminho", na explicação do guia. De fato, são necessários tiros para espantar um búfalo de mais de uma tonelada que não simpatiza com nossa presença. Mas um soldado carregando um lança-mísseis simboliza que ataques de animais são o menor dos males.
A situação de hoje no congo, um dos países mais devastados do planeta e que ganhou recentemente o título de "a capital mundial do estupro" por um oficial da ONU, em muito se deve ao passado recente de Ruanda. Contudo, parte dos problemas que acontecem no Coração das Trevas da África - que vão da pilhagem de recursos minerais até um alardeado 'contragenocídio' contra os hutus que buscaram abrigo nas regiões do Kivu congolês, de acordo com documento recémpublicado pelas Nações Unidas - ressoa em Kigali na forma de acusações contra o governo de Paul Kagame.
Por dentro de todos os prédios governamentais e em grande parte de lojas e pontos comerciais, a foto oficial de Kagame vigia a população de 10 milhões de Ruanda. O culto à personalidade chega até mesmo às casas. "Ele foi o homem que tirou o país do caos", diz Yannick Tona, vestindo camisa com a imagem do presidente de quem é fã confesso. "Sem ele, provavelmente as coisas seriam muito piores."
No poder desde 2000 como presidente (de 1994 até então acumulava os cargos de Ministro da Defesa e vicepresidente), Kagame é visto como um herói nacional: o homem que liderou as tropas da FPR e impediu o extermínio total dos tutsis. Se hoje o Banco Mundial (que logo após o genocídio decretou Ruanda como o lugar mais pobre do mundo, com uma população de 95% de miseráveis) coloca o país entre os melhores para se investir na África, seu governo tem grande parte dos méritos.
"A despeito do cenário político e econômico, um dos grandes trunfos de Kagame foi conseguir a reconciliação e trazer a paz para o país", diz Janvier Forongo, Secretário-Executivo da Ibuka, associação que reúne grupos de assistência aos sobreviventes do genocídio. O governo trabalha em três frentes na busca de reatar a unidade entre as etnias: punição para ideólogos e negadores do genocídio, justiça às vítimas e desenvolvimento econômico, visando diminuir a pobreza.
Uma das primeiras medidas do governo pós-genocídio foi abolir as carteiras de identidade étnicas. Em teoria, todos os cidadãos são apenas ruandeses. Na prática, contudo, a situação é outra. "Nós sabemos quem somos e de onde viemos", diz a estudante Esperance Nizuke, 16, em meio a um grupo de jovens debatendo sobre o genocídio. "Faz parte da nossa cultura. Meus filhos vão saber que são tutsis e os filhos deles vão saber se são tutsis ou hutus." Todos em volta, meninos e meninas com os cabelos raspados - o corte curto é lei nas escolas públicas - assentem com a cabeça.
No aspecto legal, cerca de 400 mil pessoas já foram julgadas por crimes cometidos no período de 1994 pelas Cortes Gacaca, sistema no qual os acusados, réus confessos na grande maioria dos casos, são julgados nas próprias comunidades, e recebem penas reduzidas ou são condenados à prestação de serviços comunitários. "Depois de 1994, não havia sequer tinta para escrever, muito menos juízes", conta Dennis Bitesha, do Serviço Nacional das Cortes Gacaca. "Se todos os casos daqui fossem levados ao sistema judicial tradicional, o último processo seria julgado daqui a 200 anos."
Os mentores políticos do genocídio são levados ao Tribunal Penal Internacional para Ruanda da ONU, baseado em Arusha, Tanzânia. Até o momento, dos 92 mandados, 82 já foram cumpridos e transitam em diferentes fases - 34 pessoas já tiveram suas sentenças declaradas, entre elas Jean-Paul Akayesu, o primeiro homem na história a ser condenado por genocídio.
As maiores críticas ao atual governo são, ironicamente, ligadas aos direitos humanos. Políticos de oposição, jornalistas e dissidentes da FPR reclamam de repressão e perseguição. "Duas coisas que não recomendo aqui em lugares públicos: perguntar às pessoas se elas são tutsis ou hutus e iniciar uma discussão sobre política", aconselha um diretor de uma ONG mantedora do maior memorial do genocídio em Kigali.
A organização Repórteres Sem Fronteiras colocou Kagame no grupo de "Predadores da Mídia". "A cada ano, vários jornalistas de Ruanda decidem viver no exílio, porque encontram uma atmosfera insustentável no próprio país", declarou o grupo em nota. Em 2010, os dois únicos jornais independentes de Ruanda foram suspensos, e o governo passou a adotar medidas vistas como restritivas para o exercício da profissão, como o aumento do registro de jornalista de 300 para sete mil francos ruandeses. Em junho, três jornalistas foram presos acusados de insultarem o presidente. No mesmo mês, um editor foi assassinado em frente à sua casa, em Kigali, e um ex-tentente-general sofreu uma tentativa de assassinato na África do Sul, país onde vive em exílio. A 136 quilômetros ao sul da capital, em Butare, segunda maior cidade do país, o vicepresidente do Partido Verde, André Kagwa Rwisereka, da oposição, foi encontrado morto, quase decapitado. O governo nega envolvimento em todos os episódios.
"É preciso contextualizar Ruanda com sua história", disse-me um alto funcionário da embaixada dos Estados Unidos no país. "O nível do jornalismo aqui é..." Antes que pudesse completar a sentença, um companheiro interrompe, com um sorriso irônico: "Você está sendo muito diplomático..." A conversa seguiu outros rumos, mas a mensagem ficou no ar. Se mesmo The New York Times publicou em outubro de 1997 uma reportagem descrevendo "a velha animosidade entre os grupos étnicos tutsis e hutus", na tentação de simplificar o genocídio a conflitos que vinham desde tempos imemoriais (nada mais falso, já que os primeiros atos de violência étnica se deram apenas em 1959), era de se esperar que a prática do jornalismo em Ruanda fosse deficiente.
Nas eleições presidenciais de 2010, realizadas em agosto, apenas três candidatos - todos aliados do governo - concorreram contra Kagame, que ganhou o direito ao segundo mandato com 93% dos votos válidos. Dois partidos - Partido Verde e FDU-Inkingi - não tiveram seus registros regulamentados a tempo, e outro, o PSImberakuri, teve seu líder preso no início de junho, acusado de incentivar o divisionismo étnico e a ideologia do genocídio. Publicações mundiais apontaram, a partir desses fatos, tendências que deixam Ruanda bem próxima de se tornar uma nova ditadura na África.
Em um cenário político no qual 56% do parlamento é composto por mulheres - a maior média no mundo -, o principal nome da oposição é Victoire Ingabire, a líder das Forças Unificadas Democráticas, coligação de partidos contrários ao governo. No exílio desde 1994, voltou da Holanda para Ruanda em janeiro e, desde abril, aguarda julgamento por crimes como minimizar o genocídio e associação com as FDLR. Para a Anistia Internacional, os termos que definem a lei de ideologia do genocídio são "vagos e ambíguos, que sufocam indevidamente a liberdade de expressão". "O governo terá de provar que o que ela disse constitui em apologia ao ódio, e que não estão punindo-a por dissidência política", disse em nota o diretor de programas do grupo na África.
"Quem pode dizer o que é bom ou ruim para nós?", discursou Kagame para um público de milhares no último 6 de abril, data que marcou o 16° aniversário do genocídio, tema que, para o bem e para o mal, é seu principal capital político. "Como se pode dar lições a alguém que já andou pela escuridão e conhece o pior das trevas? Nós já nos encontramos com o que de pior existe, já estivemos nas trevas e conhecemos bem isso."
Entre críticos e admiradores, a política de Ruanda vaga por um limbo que vai do céu da paz social e da recuperação econômica ao inferno dos ditadores africanos que se perpetuam no poder. Ao final de seu segundo mandato, o presidente terá completado 17 anos à frente do governo, tudo de acordo com a lei. Conclusões podem esperar 2017. Paul Kagame é um Cavaleiro das Trevas às avessas - talvez não seja o herói que Ruanda mereça, mas é aquele que precisa no momento.
A história segue - tanto para Ruanda quanto para Yvone Magnifique. O genocídio moldou a biografia de ambos. O país chegou ao fundo do poço em 1994, e, a partir daí, não restava nada senão se reerguer. Mas, para a pessoa, o ano marca o início de uma trilha descendente pelos círculos de um inferno dantesco real.
A filha de Yvone aproveita o pequeno intervalo entre a narração dos capítulos da vida da mãe e consegue se libertar de seus domínios. A pequena, de 4 anos, abre um sorriso de quem conseguiu uma vitória, e vai para fora de casa, agir como criança. A mãe, cansada devido à rotina diária de acordar às 4 da manhã para cozinhar salgados e doces (a venda dos quitutes é a renda da casa), frequentar as classes de sociologia em uma universidade de Kigali e cuidar da criança, não esboça reação e a deixa seguir.
A saga pós-genocídio de Yvone começa de maneira esperada para os padrões de Ruanda. Com 11 anos e sem nenhum familiar vivo, foi viver em um orfanato. Frequentava hospitais, tratando de sequelas causadas por pancadas que levara no passado. Os detalhes de sua vida se perdem em meio a um acontecimento. "Um médico da Cruz Vermelha que cuidava de mim me levou para morar com a família."
Parecia ser uma boa notícia. Eu esperava um sorriso de Yannick, o tradutor, ou qualquer sinal que indicasse que, a partir daquele momento, a história seguiria caminhos menos tortuosos. O médico, um ruandês casado e com três filhos, tinha aids, tal como a esposa. O vírus não impediu que a família vivesse normalmente. Mas, passados alguns anos, a esposa do médico começou a ter problemas de saúde. Foi com os filhos para o Canadá, deixando o marido com Yvone em Kigali.
Depois da tradução, um silêncio incomum. São segundos que parecem horas. Ela respira e segue o relato. O médico parecia afetado, e suas condições mentais pioravam dia após dia. Yvone concluiu estar certa quando o médico disse: "Cuidei de você, você é bonita, agora te quero como esposa". "Pensei que ele estava brincando."
De maneira direta, conclui: "Ele me estuprou e trancou-me no quarto por dias". Yvone conseguiu fugir - o médico mantém-se foragido também - e foi viver com uma amiga. Quatro meses depois, descobriu estar grávida de seu carrasco infectado com aids.
O silêncio catedrático é quebrado com os gritos de uma criança do lado de fora da casa, inocente e perfeitamente saudável. É ela quem dá forças para Yvone seguir em frente. São filhas legítimas de Ruanda, trilhando um futuro de reconstrução.
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