Um mergulho nas FARC e nas guerras internas que assolam o país
Ricardo Soares Publicado em 16/08/2007, às 11h55 - Atualizado em 28/08/2007, às 16h11
Muito além do impressionante conjunto arquitetônico da Plaza Bolívar, dos caricatos traficantes colombianos fabricados por Hollywood, das margens do rio Magdalena, dos livros de García Márquez e dos rebolados de Shakira, a Colômbia é um país desconhecido para os brasileiros. Espremido entre a guerrilha e o governo, não cabe nas definições simplistas e nos comentários jocosos. É um enorme enigma que tentamos em vão desvendar nessa viagem que passa pelas FARC, pelos paramilitares, o povo e o seu presidente.
Muitos anos depois que uma multidão enfurecida incendiou e destruiu Bogotá, muitos anos depois que esse incêndio gigantesco e esse ódio caudaloso se espalhou em uma corrente de magma - quente, mortal e perigosa - por todos os cantos da Colômbia, muitos anos depois que os linchamentos e saques, depredações e pancadarias mancharam de sangue ruas e avenidas pondo fim ao IX Congresso Panamericano que acontecia na capital colombiana, os descendentes daqueles que participaram desse derrame incontrolável de testosterona olharam para os céus, para as planícies e planaltos, para o Mar do Caribe, para o enorme rio Magdalena e para os rostos dos netos dos insurgentes e resolveram parar.
O dia dos conflitos sangrentos. O dia do vulcão explodir, o dia do caos absoluto foi 9 de abril de 1948, data marcada nos livros de história colombiana como Bogotazo. Trinta e cinco anos depois, ao meio-dia de 7 de dezembro de 1983, durante dois sagrados e infinitos minutos, milhares de colombianos fizeram uma pausa interna em favor da paz no país que tem muito mais que os 100 anos da solidão que a guerra provoca. A guerra na Colômbia remonta a tempos imemoriais, tempos dos quais nem a avó desalmada de Cândida Erendira há de lembrar dentro da ficção delirante de García Márquez.
A guerra aparta os concidadãos, divide- os em blocos indissolúveis de rancor e a pausa coletiva pela paz em dezembro de 1983 também foi registrada pelo talento ímpar de Gabriel García Márquez em uma crônica ("O Imbróglio da Paz") que talvez diga mais sobre aquele país do que os terríveis sons que provocam os conflitos e os disparos a esmo. É o exemplo clássico do silêncio que aqui vale mais que mil tiros e em parte foi assim descrito pelo autor colombiano: "Uns fizeram um silêncio de protesto, outros elevaram preces aos seus deuses, outros tocaram sinos, fizeram soar as sirenes das fábricas, as buzinas dos automóveis. A imensa maioria, nos lugares mais remotos do país, içaram a bandeira nacional e apareceram nas janelas agitando lenços brancos. Foi um estremecimento febril e inequívoco".
Agora, já entrando em 2007, os colombianos continuam querendo a paz, embora vivam em guerra. Viver em guerra parece estar enraizado na índole do país, já que só no século 19 a Colômbia foi sacudida por oito guerras civis gerais, 14 locais e a lendária Guerra dos Mil Dias, em que morreram 80 mil colombianos.
Agora mesmo, no momento em que você lê estas linhas, tem gente morrendo na Colômbia por conta de uma guerra interna da qual nós brasileiros pouco sabemos. Todos os dias morre gente na Colômbia em virtude dos conflitos e essas tristes e assustadoras estatísticas são dispensáveis de ser estampadas aqui, já que crescem a cada dia. Os gráficos da morte na Colômbia se desatualizam todos os dias.
Depois daquela pausa coletiva de 1983, depois do Bogotazo de 1948, depois de tantos mortos, feridos, desterrados, indigentes, desmazelados, uma multidão não sucumbe, mas também não tem respostas diante das perguntas inevitáveis. Por que os colombianos ainda vivem em guerra? Por que a guerra tal qual a conhecemos hoje na Colômbia tem um marco inicial em 9 de abril de 1948? Por que na Colômbia rumba e pólvora se misturam? Por que aguardente e sangue formam um meio-tom que lembra um trecho do poema "Morte do Leiteiro", de Carlos Drummond de Andrade?
"Duas cores se procuram, suavemente se tocam, amorosamente se enlaçam, formando um terceiro tom a que chamamos aurora."
Essa aurora que evoca, mesmo que de maneira piegas, um novo começo, um "reamanhecer" é tudo o que esperam milhões de colombianos, mesmo aqueles que não sentem os efeitos diretos dos conflitos no seu dia-a-dia. Esse novo tom, a nova cor que vai emoldurar as relações entre governo e guerrilha, dar novos contornos entre a guerra e a paz é o que se espera desde sempre. Esperanças para isso ainda são remotas, apesar do discurso de conciliação pregado pelo presidente Álvaro Uribe Vélez ao final de sua campanha de reeleição em maio de 2006.
Uribe, com sua voz rouca e bem próxima da exaltação, dá uma no cravo e outra na ferradura. Passou essa campanha toda dizendo que o principal grupo insurgente da Colômbia, as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), deveriam ser tratadas a ferro e fogo. Seu discurso ultra-conservador ia e vai ao encontro das expectativas mais à direita para acabar com os ícones da esquerda que pregam a luta armada como solução final para os problemas do país.
Uribe não é bobo e uma guerra não se vence em um dia. Sabe que apesar do apoio irrestrito dos Estados Unidos e do seu fiel aliado George Bush será muito difícil vencer as FARC, o maior exército não oficial do planeta que tem algo em torno de 20 mil combatentes espalhados por regiões montanhosas e selváticas da Colômbia. Isso sem falar nas suas milícias urbanas, que promovem ações literalmente estrondosas como a fuga em massa de guerrilheiros do presídio de La Picota, em Bogotá, em junho de 2001.
Para Uribe-Bush seria um custo gigantesco em vidas e ônus pesado diante da opinião pública mundial. Riscos que a dupla ainda não se atreveu a correr, apesar da sanha belicista de ambos e de tratarem os guerrilheiros das FARC como terroristas idênticos aos talebãs ou quaisquer outros.
Muito da geografia e do clima colombiano lembra o Vietnã e, como me confidenciou o comandante guerrilheiro Raul Reyes, secretário-geral das FARC, "por terra os americanos e o exército colombiano não nos vencem. Agora se quiserem nos arrasar com napalm terão de prestar contas diante da comunidade internacional".
Bush atolou-se consideravelmente nas areias escaldantes do Iraque e não parece propenso a entrar nos pântanos tropicais colombianos com força total. Isso não quer dizer que não esteja mantendo centenas de agentes, "observadores" e "assessores militares" em todos os cantos da Colômbia para treinar, orientar e colaborar com os organismos de repressão, como admite o próprio ministro da defesa colombiano, Camilo Ospina. Uma rápida espiada na gigantesca e nababesca embaixada norte-americana em Bogotá (a segunda maior embaixada dos Estados Unidos do mundo depois da do Iraque) nos certifica que os norte-americanos não estão ali brincando em serviço, muito embora justifiquem oficialmente que a presença deles ali é "humanitária" e que desenvolvem na Colômbia "inúmeros projetos sociais".
Sem glamourizar o ofício me fazendo passar por sobrevivente do campo de batalha, quero elucidar o curioso leitor sobre minhas andanças colombianas. Tudo começou em final de maio de 2001 quando a TV Cultura de São Paulo foi contatada por emissários das FARC, que desejavam levar a emissora até o sul da Colômbia, região então dominada pela guerrilha, onde se daria a entrega unilateral de mais de duas centenas de prisioneiros de guerra aos emissários da ONU e outros organismos internacionais. Os representantes da guerrilha achavam que a TV Cultura era a única emissora brasileira com isenção suficiente para trazer uma visão não distorcida do que estava acontecendo no sul do país. Naquela época, como hoje, eu dirigia documentários para a Cultura e a direção de jornalismo me incumbiu da tarefa. Começava então uma longa jornada Colômbia adentro que já me valeu várias idas e vindas na realização de um documentário que espero ver concluído em 2007. Eis pois que a Rolling Stone publica em primeiríssima mão um tanto do que será contado por imagens e ação.
E onde é que começam essas imagens? Voltamos então ao Bogotazo de 9 de abril de 1948, quando foi assassinado Jorge Eliécer Gaitan numa avenida de enorme movimento em pleno centro de Bogotá e aos olhos da multidão. Gaitan, político relativamente jovem, carismático e populista, excelente orador, era o candidato preferido dos descamisados nas eleições que aconteceriam um ano depois. Os tiros o fizeram agonizar e morrer no passeio público e lançaram a Colômbia às chamas. A grande maioria dos historiadores, escritores, cientistas políticos, jornalistas e intelectuais colombianos discorda em dezenas de pontos sobre os motivos dos conflitos em seu país. Mas concordam que o Bogotazo é o começo do conflito em sua configuração atual, que divide a nação em uma "Colômbia virtual" e uma "Colômbia real", metáfora que faz a glória de importantes escritores como Alfredo Molano e irrita profundamente o temperamental presidente Uribe.
Apenas para efeito de curiosidade comparativa vale aqui deixar claro que tipo de político é o presidente Álvaro Uribe. Seria como se, digamos, o doutor Victor Frankenstein criasse uma criatura a partir dos genes de Geraldo Alckmin, Fernando Collor e Ciro Gomes. Uribe é mais ou menos isso. Carola e dogmático como Alckmin, autoritário e arrogante como Collor e megalômano e pretensioso como Ciro Gomes. Uma mistura explosiva de pavio curto que está longe de desagradar ao eleitor colombiano. Seu discurso conservador, que mescla pátria, família e liberdade, lhe valeu a vitória no primeiro turno das eleições de 2006 com larga margem sobre seu principal opositor, o professoral Carlos Gavíria, que liderava uma coalizão de esquerda com o nome de "Pólo Democrático". Gavíria tem uma aparência e um currículo tão respeitáveis quanto os de Papai Noel. Mas assim como o bom velhinho, os colombianos não botaram fé na sua existência como presidente no mundo real.
Uribe foi eleito com o discurso da segurança interna. Ele quer e não quer a paz. Quer e não quer a guerra. Seu discurso muda conforme os ventos políticos sopram. Inteligente e ardiloso, negou a mim mesmo em entrevista coletiva que tenha mudado de estratégia em relação às FARC durante o período eleitoral. Elegeu-se pregando "mano dura" com os guerrilheiros, mas na reta final da campanha dizia querer iniciar processo de paz que até agora no entanto não se iniciou. Uribe, a exemplo de Paulo Maluf, só responde o que quer e é preciso tomar cuidado com o que se pergunta a ele. Na entrevista coletiva aos jornalistas estrangeiros realizada em fins de maio num hotel de luxo em Bogotá, o presidente da Colômbia literalmente "jantou" uma jornalista brasileira, que representava o jornal Folha de S.Paulo. Ao responder contrariado a uma pergunta sobre sua inclinação ideológica o presidente questionou a brasileira: "A senhora sabe me dizer se o seu presidente, Lula, é de esquerda?". A jornalista vacilou, gaguejou, titubeou e não soube responder. Uribe voltou à carga: "Pois é, se a senhora não sabe sequer se seu presidente é de esquerda, como pode me rotular como um homem de direita?".
Em defesa da titubeante jornalista devese dizer que é de fato difícil saber em que posição nosso presidente joga. Por outro lado, a resposta de Uribe deixa claro que ele é a favor acima de tudo do pragmatismo político. O pragmatismo é afinal a moeda de troca entre liberais e conservadores que desde sempre se alternam no poder colombiano. Rivais históricos que se digladiam há muito tempo sempre levando para as frentes de combate os desassistidos que morrem pelos seus senhores na melhor tradição da política latino-americana.
Compreender esses rivais históricos é tentar entender como funciona a Colômbia e suas muitas crônicas de mortes anunciadas, atentados, dores e sustos que são pranteados por mães zelosas e tristonhas que desde sempre choram seus filhos mortos precocemente nas frentes de combate. Jamais me esquecerei de muitas delas que, contritas e resignadas, sepultaram seus filhos em um cemitério militar de Bogotá. Jovens soldados mortos em confrontos com a guerrilha em Putumayo em 2001.
Os combates na Colômbia são de fato feitos em muitas frentes. Na mídia, nas escolas rurais, nas organizações sindicais. Na catequização diária que faz as FARC com seus novos combatentes, na doutrinação que fazem os paramilitares que combatem a guerrilha, na repetição minimalista em se dizer que os guerrilheiros são terroristas com quem não se deve negociar. A Colômbia tem as cordas elásticas muito esticadas. No entanto, por mais incrível que possa parecer, sente-se dezenas de vezes mais seguro nas ruas de Bogotá do que em São Paulo. Fora que a capital colombiana é pelo menos dez vezes mais bonita que a terra de Mário de Andrade, com montanhas e parques cercando toda a cidade. Apesar de ser uma visão de turista aprendiz, posso garantir que minha opinião é compartilhada por vários "bogotanos" que conhecem a capital de todos os paulistas. Isso inclui Pilar Perdomo e Carolina Osma, produtoras colombianas do documentário que venho realizando.
Pois foi na ainda provinciana Bogotá de 1948 que surgiu a semente de todas as guerrilhas que pulularam e pululam por muitas décadas na Colômbia. Do extinto M-19 ao Exército de Libertação Nacional (ELN) e fundamentalmente as FARC, fundadas pelo lendário e ainda vivíssimo Manuel Marulanda Vélez, o "Tirofijo", que encontrei vivo e bem disposto em junho de 2001 nas cercanias de Los Pozos, não muito distante da cidade de San Vicente del Caguan, sul da Colômbia. Sempre com a indefectível toalha de rosto sobre os ombros, Marulanda não foi reativo à minha abordagem mas, como sempre, não concedeu entrevistas. Seu paradeiro hoje é o mistério mais bem guardado da Colômbia até porque os governos norteamericano e colombiano oferece milhões de dólares por sua captura sob a acusação de terrorismo e tráfico de drogas.
Naquela ocasião em que ele comemorava a entrega unilateral de presos políticos estava em curso um processo de paz com o governo de Andrés Pastrana, que considerava - de comum acordo com as FARC - a região de San Vicente como zona desmilitarizada. Inúmeros motivos fizeram com que esse processo de paz fracassasse e a Colômbia continua buscando sua obsessão nacional: a paz. Quem duvida, que espreite um simpático e folclórico personagem que desfila pelo centro de Bogotá e leva o epíteto de "general da paz". Um negro alto de bons e belos dentes que faz discursos e coreografias incansáveis em prol da tranqüilidade da nação. Por enquanto em vão.
Ironia do destino é que em muitos dias da semana o "general da paz" pregue justamente ao lado de onde tombou Jorge Eliécer Gaitan na "carrera séptima", às 13h15 do 9 de abril de 1948. Foi a maior explosão popular que já presenciou na vida o venerado e venerável jornalista brasileiro Joel Silveira, um dos mais importantes repórteres que esse país já teve. Sem exageros de retórica, digo que os olhos baços e de visão turva de Joel ainda brilham quando tocam no assunto. Entrevistei-o longamente sobre o episódio para o documentário da TV Cultura, mas aqui lhes deixo um trecho magnífico que ele escreveu a respeito do episódio e que pode ser encontrado no livro Tempo de Contar (editora Record): "Então foi a fúria. E a explosão. Juan Roa Sierra, o assassino, não conseguiu escapar. Ali mesmo, de onde havia disparado os tiros que iriam desencadear o furor popular, era agarrado pela multidão, que foi buscá-lo no interior de uma farmácia, vizinha ao edifício onde Gaitán tinha seu escritório. Seu corpo, mil vezes pisoteado e já sem vida, foi arrastado pela multidão enfurecida. Alguém, na multidão, deu o grito de guerra: 'Ao palácio!' A intenção da populaça era arrastar o cadáver do assassino até o Palácio do Governo, onde se encontrava o presidente (conservador) Ospina Pérez; e, se possível, entrar com o corpo palácio adentro e depositá-lo na sala de despachos do chefe do governo".
Assim como o venerável repórter Joel Silveira jamais se esqueceu das cenas ali vistas não existe colombiano mais velho que não se lembre do que fazia nesse fatídico 9 de abril. Algo como perguntar aos brasileiros mais antigos o que faziam no dia em que Getúlio se suicidou em agosto de 1954 ou aos ocidentais o que faziam em 11 de setembro de 2001.
Joel Silveira foi testemunha ocular do episódio que iria mudar a história da Colômbia. Se ele foi testemunha, um participante direto do Bogotazo foi Fidel Castro, o onipresente e permanente dirigente cubano que era então um estudante de direito e estava em Bogotá por conta da badalada IX Conferência Pan- Americana. Segundo apurou Joel Silveira, Fidel Castro "teve até oportunidade de dar seus quatro tirinhos" durante a confusão em que mergulhou a capital colombiana.
Paixões à parte, não se pode mencionar o Bogotazo sem falar do livro definitivo sobre o assunto, escrito pelo jornalista e escritor Arturo Alape, El Bogotazo - Memorias del Olvido, que em mais de 600 páginas narra com maestria os motivos e as conseqüências do episódio na vida colombiana. Alape, que nascera em 1938, em Cali, recordava muito bem onde estava aos 10 anos quando tudo aconteceu. Mas já não poderá contar: uma leucemia o tirou de nós no dia 9 de outubro deste ano. Guardo dele lembranças muito agradáveis e uma verdadeira aula sobre a história da Colômbia quando me recebeu em sua casa alguns meses antes de morrer.
A Arturo Alape tive a chance de perguntar sua opinião sobre o Bogotazo. O mesmo não fiz com o presidente da Colômbia, que consegui entrevistar coletivamente em Bogotá e individualmente em Brasília, com a ajuda inestimável do embaixador Mário Galofre Cano. E então vamos direto ao que interessa. Se o "xis" da questão é a divisão do país entre a guerrilha das FARC e o governo colombiano, o que pensa o presidente sobre a guerrilha?
"É um grupo terrorista. A legislação européia disse que o uso ou a ameaça de uso de armas por razões ideológicas, políticas ou religiosas é terrorismo. Mas este é um grupo de terrorismo agravado porque à medida que passa o tempo perde razões ideológicas e ganha mais razões de narcotráfico. Por isso não são somente terroristas mas narcoterroristas. E, ademais, a diferença das guerrilhas que existiram na América Latina, que eram guerrilhas que de alguma forma se validavam, se legitimava porque combatiam ditaduras; o que fazem as FARC é tentar destruir uma grande democracia que é a democracia colombiana. O governo que os tem combatido com tanta firmeza também está disposto no momento que eles queiram avançar em um processo de paz como temos avançado em um processo de paz com os paramilitares."
É bom lembrar que essa conversa se deu em abril de 2006 e até agora nenhum processo de paz foi iniciado nem por Uribe nem pelas FARC. Quanto aos paramilitares, um imenso exército paralelo financiado por produtores rurais e empresários colombianos de fato iniciou um processo de deposição de armas que é pura retórica segundo os oposicionistas, mas realidade para um dos seus líderes, o temido Salvatore Mancuso, descendente de napolitanos, rotunda e enorme figura mediterrânea que me apertou as mãos com força quando finalmente concordou em me conceder uma entrevista em uma fazenda nas cercanias de Monteria, ao norte da Colômbia, quase fronteira com o Panamá.
Mancuso é acusado com outros chefes paramilitares de dezenas de crimes, assassinatos e chacinas, mas garante querer apenas o bem de seu país. Como garante ter deposto as armas, quer ter direitos especiais para ir a julgamento. Atualmente encontrase preso e não vê motivos para que os guerrilheiros não deponham as armas, também. Mas aí mora o "xis" da questão. A guerrilha garante que se depuser as armas, os paramilitares estão devidamente armados para massacrá-los no dia seguinte. No meio desse tiroteio sem fim todos se acusam de colaboração com os narcotraficantes pois, infelizmente para a Colômbia, a imagem do país está implacavelmente associada a montanhas de cocaína como admite a própria Carolina Barco, ministra das relações exteriores da Colômbia, uma senhora muito chique e elegante, filha do ex-presidente Virgílio Barco, acusado de inúmeras barbaridades contra guerrilheiros e esquerdistas durante seu governo.
Não é preciso muito esforço para se encontrarem plantações de coca pelo país afora como bem sabe a própria ministra, que nos dá a ligeira impressão de estar vivendo no Reino Unido e não na Colômbia pelo país que nos descreveu. Na zona desmilitarizada de San Vicente, em 2001, conheci dezenas de "campesinos" que viviam da extração da folha da coca e do preparo da pasta que depois era enviada para refino em outros cantos do país. As FARC toleravam as plantações, mas as escondiam dos jornalistas estrangeiros. Foi preciso doses generosas de suborno para que os moradores da região concordassem em se deixar filmar em plena produção. Parte da propina era levada por um taxista - posteriormente assassinado pelos paramilitares - que levava os curiosos às verdejantes plantações. Na que visitei trabalhavam pai, mãe e filhos pequenos. Tudo o que tinham vinha da plantação de coca. Não lhes restava outra alternativa, pois se pagava quase nada pelo cultivo do café ou do milho naquela região. Esses campesinos me garantiam que nada pagavam às FARC pela produção.
Diante do temido e respeitado comandante Raul Reyes, uma espécie de portavoz oficial das FARC, perguntei dias depois sobre essa questão. A resposta, bem ao seu estilo marxista, veio curta e seca. "Cobramos imposto não dos camponeses mas, sim, de quem refina a pasta, a transforma em pó e a vende." Ou seja, quem dá grana às FARC são os traficantes. Perguntei mais: "Comandante Reyes, afinal as FARC compram armas dos traficantes? Fazem negócios com eles?". Reyes cofiou suas barbas brancas, ajeitou os óculos e quase irônico me devolveu: "O senhor vende armas pra mim?". "Não, comandante...", respondi. "Pois então, eu faço negócios com quem me vende."
Para bom entendedor palavras curtas bastam. A conversa alongou-se por quase uma hora e Reyes não se negou a responder nenhuma questão. Admitiu claramente inclusive que existe e ele faz cumprir a chamada lei 002. Ou seja, todo colombiano que possua patrimônio acima de US$ 1 milhão tem de pagar imposto para a guerrilha. Perguntei especificamente: "Explique para as pessoas do Brasil o que é a lei 002". Responde Reyes: "A lei 002 pretende antes de tudo evitar que seqüestrem pessoas com menos de US$ 1 milhão. Procuramos conversar com os empresários ou as pessoas que tenham mais de US$ 1 milhão na Colômbia para que façam uma doação para o processo revolucionário e muitos o estão fazendo, vão nos blocos da frente, as colunas, conversam com os comandantes, fazem sua doação. E tem outros, o que é normal, que também não querem doar, como nos estados que têm evasão de impostos. Nessas áreas nos chamam e temos de tomar alguma medida de maior pressão para que paguem".
Como parece pragmático esse homem pequenino, o segundo mais procurado pelas autoridades da Colômbia e caçado pelos norte-americanos. Um pragmático como seu mais ferrenho opositor, o presidente Uribe. Mas Reyes recusa veementemente o rótulo de terrorista que Uribe quer lhe impingir e nega que a Colômbia seja uma democracia. Quer vencer pelas armas porque não vê caminhos possíveis para o diálogo. Assumindo o poder, quer estabelecer na Colômbia uma república socialista aos moldes de Cuba. É generoso com os erros de Fidel e superlativo nos elogios. É bom registrar que em boa parte das instalações, escritórios e acampamentos das FARC a que tive acesso, pôsteres e retratos de Fidel e Che Guevara se multiplicam. Mais escassos, porém também presentes, são os retratos do presidente Chávez, que se diz "bolivariano" até a medula. Assim como se dizem bolivarianos os integrantes do governo da Colômbia, da guerrilha, do clero e até alguns paramilitares. Simon Bolívar, o libertador, é sem dúvida a efígie e o retrato mais colocado nas paredes da Colômbia. Perguntei inclusive ao ex-presidente César Gavíria o motivo disso. Ele apenas sorriu francamente e deu uma resposta prolixa como é do seu feitio. Gavíria, que também fracassou nas conversações de paz com a guerrilha, é o mais mineiro dos colombianos que já conheci. Finge responder mas nada responde sobre o que lhe perguntam.
Sem a menor pretensão devo dizer que o privilégio de conhecer, viver situações e entrevistar personagens tão paradoxais na Colômbia não me deu autoridade alguma para ter opiniões definitivas sobre esse fascinante país. Por outro lado, me dão a visão suficiente para entender o quão risíveis são as opiniões de alguns jornalistas brasileiros sobre a Colômbia, construídas apenas em cima de uma versão parcial dos fatos. O conjunto não nos chega. A Colômbia, apesar de ter mais de 800 quilômetros de fronteira com o Brasil, ainda é uma imensa desconhecida para "nosotros". Nosso Exército e nossa Aeronáutica envolvem essa fronteira numa aura de mistério e opacidade e muitos pedidos e meses depois pouca ou nenhuma resposta oficial sobre ela me chegou às mãos. O motivo disso, segundo alguns oficiais da reserva, seria o fato de ser uma "fronteira quente e desguarnecida" onde são constantes as violações de território por parte de guerrilheiros e forças de defesa.
A Colômbia não é apenas a quente e poeirenta Macondo de García Márquez, muito embora após visitá-la várias vezes eu entenda que o gênio do autor de Cem Anos de Solidão só é possível por ele ter nascido onde nasceu. Na Colômbia o realismo fantástico se vê todos os dias, em todos os lugares, do momento em que você levanta até a hora de dormir. É o país onde de dia ônibus explodem matando crianças e à noite todos dançam nas casas de rumbas. É o país onde cães farejadores lhe espreitam as intimidades em qualquer prédio ou shopping center onde você entre. É o país onde você come "hormigas culonas" ("formigas bundudas") em qualquer bar do centro da capital e toma um saboroso ajiaco, uma maravilhosa sopa típica de Bogotá, em qualquer restaurante.
A Colômbia é ainda um país onde o café é divino, o trânsito, caótico e os desabrigados perambulam pelas ruas de todas as cidades grandes. De onde eles vêm?
De todos os cantos do país, fugindo da guerra interna que ninguém quer ver e engrossando as estatísticas de desemprego e criminalidade. Esse drama foi contado com muita categoria pelo cineasta Luis Alberto Restrepo no filme La Primera Noche, que fala do drama dos "desplazados" pela violência na Colômbia no momento que se vêem sem eira nem beira em Bogotá.
Restrepo e o documentarista e escritor Jorge Henrique Botero são dois artistas contemporâneos que criam e participam do debate ao redor da latente e sempre presente violência que permeia a sociedade colombiana. Em abril deste ano, Botero viu-se envolvido em uma barulhenta polêmica nacional quando revelou em seu mais recente livro, Últimas Noticias de la Guerra, que Clara Rojas, chefe da campanha presidencial da senadora Ingrid Betancourt em 2002, ficara grávida e tinha dado à luz um filho de um guerrilheiro que as seqüestrara. As duas continuam reféns das FARC e o assunto foi capa da Semana, a principal revista do país. Sabe-se que de fato Clara Rojas tornou-se mãe. Se o pai é mesmo um chefe guerrilheiro é outro dos bem guardados mistérios colombianos, muito embora Botero garanta que sim. Foi duramente criticado por ter revelado detalhes da vida privada da complexa relação entre seqüestradores e seqüestrados mas defende-se dizendo que "há um momento em que o interesse coletivo é maior que o particular".
O fato é que tanto Restrepo quanto Botero não se blindaram e participam ativamente dos acontecimentos de seu país, ao contrário da imensa parte da classe média e alta que blindou seus carros e seus sentimentos em relação aos desabrigados e desafortunados, vítimas da guerra sem fim. A Colômbia tem muito mais de Brasil do que imagina nossa vã filosofia.
A guerra sempre gera paradoxos e a Colômbia é cheia deles. Um dos exemplos é que muitos dos maiores vilões do país para alguns são ídolos para outros. Tudo depende do ponto de vista. O exemplo mais notado e mais notável é o de Jorge Briceno Suarez, o temido Mono Jojoy, o mais alto dirigente das FARC depois do lendário Marulanda ao lado de Reyes. Jojoy, grosso modo, é uma espécie de marechal Rommel das FARC, o comandante em chefe de todas as tropas. É sem dúvida o inimigo público número 1 da sociedade civil organizada. Um verdadeiro bicho-papão para a mídia. Procuradíssimo e visadíssimo, é odiado na mesma proporção que é venerado e amado por seus comandados. No último dia de nossa permanência no acampamento das FARC no sul da Colômbia, em junho de 2001, vi que nossa caminhonete foi subitamente cercada por uma porção de guerrilheiros quando já íamos partindo. Temendo por nossa segurança, todos ficamos paralisados quando surge do meio da tropa uma manopla que agarra o ombro do cinegrafista Edgar Luchetta. Eu, mais o operador de áudio Alcides Almeida e o videorepórter Aldo Quiroga nada entendemos até que vimos a quem pertencia a manopla. Ao próprio Jojoy em carne, osso e uniforme camuflado. Veio saber pessoalmente se tudo tinha passado bem conosco e queria se despedir. Não resisti e pedi uma entrevista-relâmpago. Ele recusou uma, duas vezes, mas acabou cedendo com uma condição incisiva: "Dos perguntas... Nada más!"
Quando eu arriscava a quarta ele me interrompeu. Mas a tempo de responder ao que eu mais queria: "Comandante, o personagem mais temido da Colômbia, o inimigo público número 1 desse país, parece ser o senhor. Como se vê diante dessa situação?" "Olha, já estou acostumado. Os meios de comunicação deste país precisam ter um vilão. Então tudo o que acontece é minha culpa. Alguém tem de desempenhar esse papel na Colômbia. E no caso escolheram a mim."
Antes que pudesse se safar e antes que eu nunca mais pusesse os olhos nele ainda me deu sua definição concisa sobre o que são as FARC. "As FARC são um exército móvel e regular que luta por mudanças estruturais na sociedade colombiana."
Como se vê, a imagem que um dirigente das FARC tem de sua organização é diametralmente oposta à imagem que tem dela o presidente da República. Juntar esses dois extremos é o mais antigo dos desafios da Colômbia contemporânea. Em vários momentos já foi até sondada a possibilidade de o governo brasileiro intermediar as negociações e o assessor especial do presidente Lula para assuntos internacionais - e atual presidente do PT -, Marco Aurélio Garcia, disse a mim em entrevista no Palácio do Planalto que se solicitado fosse o Brasil, teria o maior prazer em intermediar essas negociações. Quanto a emitir opiniões oficiais a respeito das FARC, Marco Aurélio prefere o silêncio obsequioso. Precaução e caldo de galinha não fazem mal a ninguém, ainda mais, afirma ele, "depois que a revista Veja tentou criar uma história que envolvia doação das FARC para a campanha petista de 2002".
Todos os dias, notícias sobre mortos e feridos de todos os lados envolvidos no conflito são publicadas nos principais jornais colombianos. O poderoso El Tiempo tem até uma editoria específica para tratar do conflito. Mas assim como é distante o tempo da Sierra Maestra cubana que inspira os guerrilheiros colombianos, é larga a distância entre os interesses dos liberais e conservadores e interestelar a distância desses políticos com os interesses da guerrilha. A Colômbia, predominantemente católica, parece ser hoje um enorme estilhaço de um vitral de muitas de suas magníficas igrejas. Cores e nuances se espalham para todos os lados. Cacos cortantes e perigosos sempre prontos a machucar. Poucas são as famílias hoje que não têm cicatrizes desse conflito. Reunir todos esses cacos para formar um lindo vitral da perfeita democracia latino-americana é um desafio que ainda não se sabe que geração vai vencer. A Colômbia está perdida na solidão de sua própria guerra interna. Uma guerra da qual ainda não nos demos conta.
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