Enquanto a Bahia sofre com "a pior seca dos últimos 50 anos", os habitantes do sertão se desdobram para superar os percalços. A esperança persiste, mas é minguada como a água da chuva
Maíra Kubík Mano Publicado em 08/02/2013, às 16h27 - Atualizado às 20h13
"Para o carro! para o carro! olha ali, em cima das pedras! Tá vendo?” Não, eu não via nada. A paisagem parecia exatamente a mesma da última meia hora. Toda cor de terra, com uma ou outra catingueira no horizonte e os mandacarus, sempre em maior número, acompanhando o traçado da estrada de chão. “Lembra da cena em que o Fabiano vai tentar pegar um preá? Olha ali!”, o interlocutor insiste, apontando. Vidro abaixado, olhos a postos. Dois bichos pequenos, amarronzados e amendoados, de focinho pontudo, se mexem e se fazem notar. Pronto, lá estão os preás. Júlio César Santos fica satisfeito. Afinal, ele fora parar no sertão justamente depois de ler Vidas Secas.
“Eu sou da Zona da Mata, mas quando li Graciliano Ramos quis vir para cá”, conta Santos, um engenheiro agrônomo que se encantou pela caatinga quando ainda era estudante da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB). Hoje, é chefe do escritório da EBDA (Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola) em Ipirá, um dos 258 municípios da Bahia em situação de emergência por causa da seca. Junto com outros 17 órgãos e secretarias do governo de Jaques Wagner (PT), a EDBA faz parte do Comitê Estadual de Ações de Convivência com a Seca.
Estamos a caminho da cidade vizinha, Pintadas, onde a estiagem é ainda mais crítica. No percurso, cruzamos quatro rios. Três deles, secos. O céu nublado ao longe parece o prenúncio da mudança. Um chuvisco havia caído naquela madrugada, algo que não acontecia há muito tempo. As marcas ainda estavam na terra, em alguns sulcos rasos que provavelmente abrigaram fios de água corrente. Santos parece aliviado. “Agora precisa chover mais”, diz.
Em uma curva à esquerda surge a casa de Messias e Ginalva Jesus Pereira. A plantação de palmas logo se destaca da monocromia – é verde-escura, com nenhum tom de marrom. Na seca, o vegetal tem sido fonte de alimento imprescindível para garantir a sobrevivência dos animais, que já não têm mais pasto. “O povo vem, visita, admira. Outros ficam com usura”, fala Ginalva, sobrancelhas levantadas, há cerca de 20 anos vivendo naquele roçado.
Como era de se esperar, a conversa envereda para o clima e as gotas que caíram à noite. “Choveu em Ipirá, foi? Ah, aqui foi só uma neblina”, rebate o pequeno Matheus, filho do meio de Ginalva. “Aqui não chove mesmo há três anos. Perdemos dois bezerros e dois umbuzeiros para a seca. Painho está pedindo a Deus para esse resto de palma pegar”, diz, referindo-se a uma área mais distante da casa, plantada há pouco, onde o verde já está quase desbotando.
O cálculo de Matheus não é exagerado. Geralmente, chove na caatinga entre janeiro e maio, justamente a época do plantio. Em 2012, porém, a água não caiu e um período de estiagem emendou no outro, fazendo desta a maior seca dos últimos 50 anos, segundo a Coordenação de Defesa Civil da Bahia (Cordec). A previsão é que ela se estenda por mais um ou dois anos. “Agora, com a chuva, vai ser outra coisa. Vai mudar tudo”, avalia uma experiente Ginalva. Assim como o protagonista Fabiano da obra de Graciliano Ramos, ela sabe que a caatinga ressuscita.
Na casa dela, canos estrategicamente posicionados aguardam a próxima precipitação para recolher a água em cisternas. Enquanto isso não ocorre, Ginalva mantém, por meio de irrigação artificial, a produção – que inclui também feijão de corda, cebolinha, coentro, mamão, batata-doce e quiabo, além da criação de ovinos, caprinos e bovinos. O poço, recém-construído, foi financiado via Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) Emergencial.
Assim como Ginalva, outros 6 mil agricultores da região apresentaram projetos para acessar o Programa. Segundo o Banco do Nordeste do Brasil (BNB), foram liberados R$ 10 milhões do Pronaf Emergencial até janeiro de 2013 para os 17 municípios do entorno de Feira de Santana, entre eles Pintadas e Ipirá. “São pequenos agricultores que você vê aqui, solicitando financiamento para plantar palmas ou fazer aguada para recuperar o pasto”, diz José Wilson Junqueira Queiroz, gerente de negócios do BNB. Em todo o Brasil, entre maio e dezembro de 2012, o governo federal autorizou R$ 656,2 milhões em linhas de crédito emergenciais para atender os atingidos pela seca.
“São essas políticas públicas que estão segurando as famílias no campo”, avalia Jeane de Almeida Santiago. Agrônoma que trabalha em uma ONG chamada Fundação Apaeba, ela presta assistência técnica para os produtores de Pintadas, Ipirá, Riachão do Jacuípe, Pé de Serra, Baixa Grande e Nova Fátima, todas na Bahia. “Antes, tinha muito mais gente que ia para São Paulo e outros estados para fazer migração.”
O relato é de alguém que conhece de perto a situação. Jeane nasceu em Pintadas. Estudou na escola agrícola e saiu para fazer curso técnico em Juazeiro e faculdade no Recôncavo Baiano. Voltou quando se formou, querendo transmitir os conhecimentos aprendidos. Olhos vivos e atentos, ela muda o tom e reavalia sua afirmação: “É, mas este ano muitos jovens estão indo. Com a seca, a rentabilidade das propriedades está zero. E as pessoas não vão ficar aqui sem ter dinheiro. Infelizmente, são obrigadas a sair, de coração partido, para São Paulo em busca de trabalho, ver se conseguem mandar dinheiro para a família que ficou aqui manter o rebanho vivo”.
De fato, o ponto de ônibus de Pintadas estava cheio naquela manhã. A cidade ainda não tem rodoviária e o asfalto que a conecta com o resto do mundo foi inaugurado há apenas um ano, como avisam as placas do governo do estado logo na entrada. Todos aguardavam na calçada o próximo transporte para a capital paulista, malas e parentes em pé, sol a pino. Há cerca de três semanas, Ginalva se despedia ali mesmo do filho mais velho, de 18 anos, que decidiu tentar a vida fora dali. “Me ligou ontem dizendo que já arrumou um emprego numa fábrica. É temporário, mas é um emprego”, ela conta. É a famosa ponte aérea Pintadas-São Paulo.
“O pior é que não temos previsão boa para este ano”, lamenta Jeane. Ela conta que até a palma e o mandacaru, também usados para alimentar o rebanho, começaram a desaparecer, e que a maioria das terras da região está na mão de pequenos agricultores de subsistência ou pecuaristas. “Já faz mais de um ano que o município está dando ração aos animais porque não tem mais pasto. Mas agora a ração esgotou. Você procura e não acha. Quando acha, é um valor que não dá para colocar no orçamento.”
Jeane preocupa-se: “Tem produtores que estão pagando três ou quatro projetos. Vai chegar uma hora que ninguém vai conseguir pegar mais [crédito], de tanto que devem. E aí, não sei como vai ser. Porque a propriedade não está tendo rentabilidade para pagar os empréstimos que já deve. Sem crédito, eu acredito que na zona rural fica impossível.”
“A causa desta seca é a destruição do meio ambiente”, ela sentencia, citando uma pesquisa recente que constata que 90% da mata nativa da região havia desaparecido. “A natureza está respondendo. O território está descoberto. E a partir daí vêm as queimadas. Muitos solos já se perderam ou estão enfraquecidos. O pessoal não tem a cultura de adubar e vão explorando e explorando. Os rios que tínhamos morreram. As nascentes estão desmatadas.”
Em Ipirá, logo ao lado, a realidade é semelhante. No lugar da caatinga, estão os bois. A cena mais comum é ver o gado ou os cavalos amontoados embaixo das poucas árvores que restam para escapar do sol escaldante – cabeça na sombra, lombo de fora. “Ipirá era um município cheio de minifúndios”, explica Orlando Cintra, gerente de Agricultura e Cooperativismo da Prefeitura. “Os grandes criadores começaram a chegar nos anos 1960. Este pessoal comprou a terra barata e empurrou o homem que produzia a batata, a mandioca e a mamona para a periferia daqui ou para São Paulo, Mato Grosso e Paraná.” Outros tantos foram trabalhar no corte da cana-de-açúcar. “Aqui não tinha boi e os pequenos produtores não desmatavam”, continua. “O que criávamos mais era o bode. Foi com a chegada dos grandes fazendeiros que o clima em Ipirá começou a mudar mais rapidamente. Desmataram para plantar capim.”
“A caatinga não é uma área para agropecuária. É para criação de caprinos, ovinos, animais de médio porte. Trouxeram a cultura do Sul, de pecuarista, e todo mundo quis ter fazenda de boi aqui”, completa Meire Oliveira, assessora da Secretaria de Agricultura e Meio Ambiente de Ipirá.
Meire passou a infância na zona rural do município e ainda se lembra do cheiro dessa mata. Conta que, quando criança, fazia burros a partir de umbus: enfiava quatro pedaços de galhinhos na fruta, representando as quatro patas. “Pena que, muitas vezes, quando eu digo para não desmatar, nem meu pai me ouve”, lamenta. Ela parece conhecer todas as plantas da caatinga. Quando encontra um cacto coroa-de-frade, mostra que é possível comer seu fruto, pequenino e vermelho. Caminhando pelas propriedades da região, cruza as cercas de arame farpado com desenvoltura. Pega um punhado de maxixe ainda verde e explica como cozinhá-lo. “Igualzinho a quiabo, sabe?” No sertão, tudo pode ser aproveitado. “A caatinga tem um poder de regeneração incrível”, explica. “A solução seria deixá-la descansar. Algumas áreas no entorno do Rio do Peixe já estão em processo de desertificação.”
Um exemplo de preservação ambiental é o assentamento D. Mathias, que completou sete anos de existência. Ali, a caatinga aos poucos renasce entre bodes, cabras e ovelhas. As árvores são podadas apenas o suficiente para não machucarem os animais, que circulam livremente pelas aroeiras, xique-xiques e umbuzeiros. Organizado pelo Movimento Luta Camponesa (MLC), o símbolo do assentamento é uma família de retirantes desenhada em preto e vermelho. A fila é puxada por uma mulher com uma foice nas mãos. Em seguida vem um homem, com uma enxada nos ombros. Dois filhos, um menino e uma menina seguem-nos de mãos dadas. Por último, um cachorro que, quiçá, se chama Baleia.
Júlio César Santos, dirigente da EBDA, presta assistência aos assentados e explica que os camponeses estão muito atentos às políticas públicas e linhas de crédito oferecidas pelos governos estadual e federal. Com isso, já conseguiram construir casas, comprar uma resfriadeira de leite e ampliar a criação de ovelhas. Entre as últimas iniciativas no local está a plantação adensada de palmas, mais rentável do que a tradicional. Em um primeiro momento, os agricultores não confiaram na técnica e continuaram plantando os cactos distantes uns dos outros, como sempre fizeram. Para contornar as dificuldades, Santos utilizou o “método de Paulo Freire”. Plantou dois roçados: de um lado, as palmas, adensadas; de outro, as tradicionais. Agora, as duas estão crescendo e ele espera, em breve, provar sua teoria. “Tomara que a falta de chuva não queime elas”, diz.
O sucesso do assentamento motivou, há 11 meses, um acampamento no latifúndio vizinho. Leidinaura Souza Santana, ou simplesmente Leila, é uma das moradoras do acampamento Elenaldo Teixeira. “O problema maior aqui é a água para beber e cozinhar. Ficamos quase 15 dias sem água. O caminhão-pipa chegou só ontem”, reclama. “A Embasa [Empresa Baiana de Águas e Saneamento] suspendeu o pipa por causa do rio, que já estava muito baixo, e também porque deu um problema na bomba”, explica Meire, que acompanha a visita. “Tivemos que tomar uma água que não é boa para beber”, murmura Leila.
Leila nasceu em Coração de Maria, ao norte de Feira de Santana. O marido trabalhava como vaqueiro em Malhador, povoado no município de Ipirá, quando souberam dos boatos da ocupação. Vieram logo participar. “Estamos esperando chegar a hora para entrar dentro da fazenda e acabar com o sofrimento. A área já foi atestada como improdutiva. O assentamento aqui do lado é uma maravilha. Me animei de ver que esse pessoal era acampado como a gente. Não desisto, não”, afirma. Meire aproveita para dar uma injeção de ânimo: “Eu acompanhei o outro acampamento desde o começo e era igualzinho. Acho que era até mais quente que este. Este é mais fresco. E olha como estão hoje”.
A conversa acontece na escola do acampamento, onde jovens e adultos são alfabetizados. A pequena construção de palha e madeira da escola fica no início daquela que foi batizada de “Avenida Brasil”, uma sequência bem aprumada de cerca de 15 barracos de lona. Leila acabou de passar para a 4a série do ensino fundamental e soletra o nome para mim. “L-E-I-D-I-N-A-U-R-A.” “Não é com ‘l’, não?”, pergunta Meire. “Não, é com ‘u’ mesmo”, Leila responde.
Em Tamanduá, povoado do entorno de Ipirá, motos e jegues passam com gente e baldes na garupa. Tudo lembra a estiagem. Egecivaldo Oliveira Nunes está à beira da estrada, ao volante do caminhão-pipa estacionado em frente à casa azul e branca. “Só trabalho particular, não trabalho com Exército nem Prefeitura. Pegamos água das barragens porque os açudes estavam secos”, ele conta, afirmando que nos piores dias da seca não “acha tempo” para as entregas solicitadas. O pagamento é por distância, e a cada quilômetro rodado muda o valor: 5 quilômetros são equivalentes a 9 mil litros e custam R$ 80. Quem não puder pagar (como os acampados) pode esperar pela Defesa Civil estadual – que afirma ter investido R$ 4 milhões em caminhões-pipa – ou pelo Exército, que mensalmente abastece de água 137 municípios.
“A cada ano, a seca vem mais intensa e a tendência é sempre durar mais”, lamenta Orlando Cintra, gerente de Agricultura e Cooperativismo de Ipirá. “A perspectiva é a de que em cinco ou seis anos ninguém vá produzir mais nada aqui, na área da agricultura. O clima vem se transformando. A cada ano piora.”
“Já tivemos tantas previsões, e nada”, diz Jeane Santiago. “Passa a previsão de chuva no jornal e as pessoas dizem: ‘Não tenho mais fé, só acredito se eu vir’. O pessoal da zona rural tem simpatias, como ‘se a flor do mandacaru desabrochar é sinal de que vai chover’. Mas todas deram errado até agora. A fé está acabando.” Os mandacarus já florearam. O vermelho-forte chama atenção. Agora é esperar.
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