- Ilustração Rodrigo Rosa

Sim, Ela Pode

Dilma Rousseff está eleita. Agora, o que deve ser feito pelo Brasil em 2011 e o que se pode esperar da nova presidenta a partir de janeiro?

Por Rodrigo Barros e Ulisses Neto Publicado em 16/12/2010, às 15h31

Sua decisão na urna foi por um Brasil melhor, independentemente das teclas que tenha pressionado no segundo turno. Com certeza, existe um caminho tortuoso a ser percorrido. Os desafios são imensos. E, neste capítulo da história que se aproxima, Dilma Rousseff é a opção escolhida para conduzir os rumos da nação. Prestes a completar 63 anos, a mineira é a primeira mulher a ocupar a Presidência da República. Teve nas eleições de 2010 o apoio de 55 milhões de pessoas - ou 56% dos votos -, mas vai governar para 190 milhões. Na democracia é assim - a maioria dos que votam decide. Cabe à população fiscalizar, acompanhar de perto, cobrar e confiar que tudo dará certo a partir do novo ciclo que se inicia, em pouco menos de dois meses. Não há espaço para tergiversação.

A petista assumirá um país que pode se tornar a quinta maior economia do mundo nos próximos anos. E, nesta disputa, houve de tudo na busca pelo Olimpo. O período de campanha deixou muita gente envergonhada e criou uma polarização que não faz parte da cultura brasileira. Boatos, escândalos, ataques pessoais e mentiras descabidas, tanto do lado da candidata governista quanto de José Serra (PSDB), foram utilizados como instrumentos na tentativa de conquista do eleitorado.

O tucano saiu mais uma vez derrotado de uma disputa presidencial, certamente a última de sua carreira política. Em seu primeiro discurso após a votação, o ex-governador de São Paulo deixou o recado: "Para os que nos imaginam derrotados, eu quero dizer que nós estamos apenas começando uma luta de verdade. Estamos no começo do começo. Por isso, a minha mensagem de despedida neste momento não é um adeus, mas um até logo".

Serra ainda cumprimentou a presidenta eleita, que, por sua vez, disse "estender a mão para todos", mesmo aqueles que não estiveram ao seu lado. Logo depois de ter a vitória confirmada matematicamente pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a petista fez um pronunciamento técnico e pouco emotivo, bem próximo de suas características pessoais.

Ainda assim, a fala indicou o norte do governo que vai substituir o comando de Luiz Inácio Lula da Silva: "Assumo o compromisso de erradicar a miséria e criar oportunidades para todos. Ressalto, entretanto, que esta ambiciosa meta não será realizada apenas pela vontade do governo. Ela é um chamado à nação. Aos empresários, aos trabalhadores, às igrejas, às entidades civis, à imprensa, às universidades, aos governadores, aos prefeitos e a todas as pessoas de bem".

Para encarar os reais desafios, a líder petista conclama a pátria. A questão é que, antes de imaginar qualquer plano de ação, será imprescindível colocar a casa em ordem. Para começo de conversa, é preciso repensar a relação existente entre os poderes executivo e legislativo nos últimos anos. A regra do "é dando que se recebe" parece dominar a maior parte das negociações entre o Palácio do Planalto e a assembleia bicameral.

O fisiologismo impera desde que Dom João VI partiu para o além-mar. O debate em torno da próxima equipe ministerial torna o momento mais que oportuno para discutir o assunto. Chega a hora de estabelecer um ponto de ruptura na sociedade brasileira, em que o Executivo possa manter relações pragmáticas com o Congresso Nacional.

Os espaços dos chamados "atravessadores da política" têm que ser encurtados, até que sejam definitivamente extintos. Dilma Rousseff deve encarar a máxima da "base de sustentação do governo", como ela de fato tem se apresentado: não passa de um grupo "que se sustenta no governo". A vitória do PT nas eleições foi expressiva e, em grande parte, financiada por uma enorme coligação partidária firmada, principalmente, pelo gigante das siglas: o PMDB. A fatura será cobrada.

O historiador Marco Antônio Villa, professor de ciências sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), afirma que "a questão é muito complicada. O vice-presidente, Michel Temer, já disse que quer repartir o pão". E o especialista conta que "repartir o pão, em se tratando de PMDB, sempre significa prejuízo do interesse público".

Uma coisa é formar alianças com base em propostas de governo. Outra, angariar parlamentares loteando cargos públicos. E, enquanto a correção não acontece, a economia é afetada pelo infinito problema do campo político. "Uma relação saudável com o Congresso faz bem para a democracia, sustenta a economia e progride a política nacional", reforça Villa, apontando para o fim do fisiologismo, "porque, sendo assim, as discussões se dão em torno de programas".

Na visão da senadora Marina Silva, decisiva para que a eleição fosse ao segundo turno, os últimos 16 anos ensinaram "muito", mas os partidos e as lideranças "não conseguiram" aprender a lição. Para ela, é necessário unificar o Congresso em torno de projetos nacionais. "Se conseguir mobilizar um grupo de parlamentares para além das divergências partidárias em torno de questões estratégicas", comenta Marina, "meio caminho já estará andado, inclusive para expurgar aqueles que gostam de governos eternamente reféns dos seus comandos".

Os avanços nas áreas econômica e social são inquestionáveis, mas ainda há um atraso muito grande, segundo a líder do PV. "Se até as lideranças que tinham um papel relevante em determinados momentos ficaram reféns de situações difíceis no Congresso, fico imaginando como alguém que não tenha esse protagonismo enfrentará determinadas movimentações."

Trocando em miúdos, a reforma política é considerada visceral para o progresso. O jogo corre solto e ao bel prazer daqueles que têm poder de barganha. E isso representa "um problema antigo na história do Brasil", conforme relatou o governador reeleito de Minas Gerais, Antônio Anastasia, a um grupo de empresários em São Paulo. "Lembra o famoso caso de Getúlio Vargas, quando em 1934, chefe do governo provisório, e depois de quatro anos de poder sem Congresso, sem limites, ele é submetido à Constituição para assinar. E pergunta: 'Isso significa que eu terei que escrever agora em papel pautado?' Ou seja, dentro das margens. E lhe respondem: 'Pautado não, senhor presidente. Quadriculado.'"

Anastasia indica que os avanços não vão ocorrer da noite para o dia. "Só vamos alterar alguma coisa com um pacto social para daqui a alguns anos." A política acaba sendo a "mãe" das outras reformas, de acordo com a análise do tucano, no sentido de que "só teremos transformações profundas se houver um Congresso bastante focado e com vontade de aprovar essas mudanças".

A moral da história é que promover reformas nunca foi uma tarefa fácil. Ninguém quer perder terreno. A sucessora de Lula chega ao Palácio do Planalto com a maior bancada governista desde a redemocratização, o que, supostamente, daria a ela o quase impensável poder de mudar até a Constituição. Algo que nem mesmo Hugo Chávez consegue mais. "Ela não poderá dizer que não promoveu as reformas por falta de força parlamentar", analisa Villa. "A questão é se vai querer implementá-las ou não."

Por outro lado, o fato de reunir uma base governista tão representativa pode ser perigoso? "Não há nada pior do que a soberba", alerta o historiador da UFSCar. "Ela precisa ouvir a população, negociar com o Congresso e colocar em prática o seu programa de governo. Ninguém pode achar que sabe tudo porque venceu a eleição e comanda o Congresso."

Diante deste quadro, qual seria o papel da oposição? Marina Silva, que promete manter-se como "a terceira via", aposta que "o modelo de situação por situação e de oposição por oposição está esgotado. O Brasil tem novos desafios que são velhos desafios: educação, saúde, segurança e desemprego".

Tanto que os avanços na economia ainda não se refletem na formação dos cidadãos. Prova disso é que, mesmo tendo o oitavo maior Produto Interno Bruto (PIB) do mundo, o país ocupa apenas a 66ª posição no ranking educacional. É, portanto, indispensável que a nação assuma o compromisso de promover uma verdadeira revolução na área. E só assim buscar uma transformação econômica e social a partir de avanços no conhecimento e na tecnologia.

O modelo atual de sociedade valoriza de forma excessiva a produção e o consumo, mas se esquece que a cultura e a formação são aspectos fundamentais. O filósofo Mário Sérgio Cortella, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), explica que a educação apresentou avanços significativos nos últimos 16 anos. Há um impulso de gestão. Mas por que os resultados não são mais rápidos e seguem tão pouco perceptíveis? "É necessário, sim, acelerar mais este processo", ele aponta, "para que cheguemos em 2022, quando completarmos o bicentenário da nossa independência formal, com um parâmetro de desempenho mais significativo entre as principais nações".

Cortella considera que a receita para atingir o objetivo está diretamente relacionada à ampliação dos investimentos públicos no setor. A Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) recomenda que o Brasil aplique pelo menos 8% do PIB na área. Atualmente, o governo tem investido menos de 5% em educação. "Pode parecer suficiente, porque é o que fazem os grandes países", ele segue, "mas isso como taxa de manutenção. Nós estamos em ritmo de decolagem e, portanto, é preciso usar mais combustível". O caminho, na opinião dele, passa necessariamente pela elevação dos investimentos a pelo menos 6,5% do produto interno bruto.

Tal como já existe a Lei de Responsabilidade Fiscal, que prevê punição para membros do Executivo que realizem investimentos de forma inadequada, deve-se promover o mesmo no campo da educação. Mas, no curto prazo, são boas as perspectivas para o terceiro mandato seguido do governo petista? O filósofo acredita no aperfeiçoamento do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e na concretização do novo Plano Nacional de Educação (PNE), em 2011.

Outro grande movimento, que no primeiro ano pode ser adotado, é a "estruturação mais articulada do piso nacional salarial docente, porque alguns estados e municípios, alegando falta de recursos, não estão cumprindo a legislação".

O passo seguinte está justamente em um dos temas mais discutidos durante a campanha eleitoral: o Bolsa-Família. Atualmente, o programa - que pode ser considerado o carro-chefe do governo Lula - atende cerca de 12 milhões de famílias. O benefício varia entre R$ 22 e R$ 200, dependendo da renda familiar por pessoa e do número de filhos. Além disso, sua concessão está vinculada às chamadas "condicionalidades", regras mínimas impostas pelo governo. Dentre elas, manter os filhos na escola e cumprir a agenda de vacinação.

Oito anos após a consolidação do projeto, tais regras, agora, são consideradas fracas. E é aí que se encontra a chave para o avanço no programa, ressalta o diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Marcelo Neri. "É preciso fazer um upgrade no Bolsa-Família", salienta o economista, "vincular mais ao desempenho escolar, pensar em 'condicionalidades' mais fortes". Por outro lado, "oferecer serviços básicos de melhor qualidade na educação, saúde e crédito, com mais intensidade e qualidade".

Os estudos de Neri sugerem que os programas sociais em curso são, sim, uma forma importante de combate à pobreza e de movimentação positiva da economia. Entretanto, é fundamental que haja aprimoramentos que conduzam a sociedade a um novo patamar. "Talvez isto seja mais um desejo do que uma previsão", lamenta o professor, que adianta que, em seu primeiro ano de governo, Dilma não irá fugir da fórmula que combina reajustes no salário mínimo com aumento para aposentados, o que não seria uma decisão acertada. "Acho que, basicamente, vai ter uma continuidade, sem grandes diferenças sob a forma de conduzir a economia."

A matemática é simples. A previdência representa 13% da economia. O Bolsa-Família, 0,4%. "E, como o programa chega aos mais pobres, essa despesa adicional, que não é tanta, acaba tendo mais impacto na vida das pessoas do que o reajuste do mínimo. O aumento da aposentadoria não deveria ser feito. Onera muito as contas e não alcança as camadas mais baixas."

Os levantamentos mostram que, no caso do Bolsa-Família, há uma boa relação "custo-fiscal/benefício social". Contudo, um ponto lamentável é que a valorização desses projetos acontece em sintonia com o calendário eleitoral, o que não é produtivo. "Deveria, de alguma forma, ensejar mudanças", opina o professor da FGV. "Embora hoje em dia não ocorra mais como antigamente, quando em véspera de eleição se distribuía cesta básica, se você olhar para as séries de pobreza verá que elas sempre caem em época de eleição e sobem, em geral, depois das votações, o que não é desejável."

Se os programas sociais são uma forma de distribuir renda, combater a pobreza, ampliar o acesso à educação e imprimir o conhecimento, fica evidente a relação com outro grande desafio do próximo governo: o combate à violência. Na área da segurança pública, a expectativa também é de continuidade no que vem sendo feito, dos investimentos, dos projetos estaduais e do fortalecimento do papel federal. Historicamente, debelar a violência e manter a criminalidade longe dos cidadãos era tarefa exclusiva dos governadores. Hoje, a realidade é diferente. Existem atores importantes nas discussões, mas os avanços ainda são considerados tímidos se comparados à sensação de insegurança presente em praticamente todos os cantos, inclusive dentro de casa. Muita coisa precisa mudar.

"Condicionar os investimentos federais à adoção de políticas e práticas por parte dos estados. Esse condicionamento existe na teoria, mas a obrigação é bastante frouxa", didatiza o sociólogo Ignácio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Ele deseja que o primeiro passo da nova mandatária seja marcado pelo papel mais ativo do Planalto.

Sob essa ótica, a presidenta tem de harmonizar as esferas estaduais, introduzir doutrinas, princípios e critérios comuns. Fazer com que haja interação entre os estados para que as polícias sejam mais homogêneas e menos dispersas. O que ocorre é que cada corporação funciona individualmente, sem um comando central para se alinhar a uma estrutura de segurança pública integrada. E essas disparidades resultam na evolução do crime organizado, que invade os tecidos da sociedade como um câncer. E se aproveita das deficiências de Estado para gerar metástases em todas as classes.

"A homogeneização das polícias não acontece a partir do momento em que você aplica as mesmas políticas em todos os lugares", analisa Cano. "Ela ocorre por critérios, doutrinas. Um exemplo seria o treinamento de parte dos policiais, que deveria ser realizado em Brasília de forma comum, assim como algumas certificações para operadores de segurança pública, que deveriam ser feitas também de forma centralizada." A partir disso, os planos de ação podem ser modelados dentro das características de cada Estado.

O professor não acredita que essa transformação será uma das prioridades da ex-ministra da Casa Civil. Mas espera que as ações iniciais sejam adotadas, no mínimo, para resolver problemas crônicos. Como "mudar o modelo constitucional das polícias, desmilitarizar a PM, tornar o inquérito policial mais eficiente, trazer o Ministério Público para trabalhar em conjunto, melhorar as taxas de esclarecimentos de crimes e fortalecer o controle das armas". Há um leque de medidas muito grande e uma tendência histórica positiva. No entanto, o caminho é árduo.

Sempre que há mudança no governo, parte-se do princípio de se estabelecer um plano estratégico. Definir prioridades, investimentos e identificar entraves. Convocar gestores que trabalhem com qualidade e competência. Planejar é a chave do negócio.

Imagine-se em uma casa totalmente bagunçada. Lâmpadas queimadas, paredes pichadas, a geladeira pifada e os problemas sendo contornados com remendos a toda hora. Isso até pode funcionar na vida de um cidadão comum. Mas o cenário seria impensável para uma família que pretende crescer e cuidar bem de seus filhos. Ainda mais com 190 milhões de moradores sob o mesmo teto.

O Brasil conta hoje com um serviço de saúde que, em sua teoria, é aplaudido ao redor do mundo. Na prática, a história é outra. O SUS (Sistema Único de Saúde), criado pela Constituição Federal de 1988, oferece o que Barack Obama tenta a duras penas realizar nos Estados Unidos: dar à população atendimento universal em hospitais e unidades ambulatoriais. E a falta de recursos e a deficiência no estabelecimento de prioridades têm impedido sistematicamente o bom funcionamento da rede pública.

O médico Marcos Boullos, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), compara a evolução da economia ao aumento nítido da expectativa de vida dos brasileiros. "As pessoas comem melhor, se vestem melhor, têm mais acesso aos serviços básicos, e isso é fundamental." Caberia então à chefe da nação destinar corretamente os novos recursos que ingressam nos cofres públicos.

Boullos espera que a petista, em seu primeiro ano, faça o básico para promover a saúde: mapear os problemas na área. Não é factível, por exemplo, que uma das maiores economias do mundo ainda tenha predominantemente cidades sem saneamento básico para todos os seus habitantes. As campanhas de imunização, mesmo tendo progredido nos últimos anos, ainda não são universais. E o atendimento nos hospitais públicos segue precário.

"O problema é que os governos adotam medidas pontuais", diz Boullos. "Explode a malária, vamos combater a malária. Explode a dengue, vamos combater a dengue. Esses são problemas previsíveis. E ainda assim não estamos preparados para eles."

Se Dilma Rousseff irá ou não seguir a cartilha do planejamento e da organização, só o tempo irá dizer. Base parlamentar, cofres cheios e experiência técnica ela tem. Assume uma máquina azeitada, mas que exige os temperos certos e as medidas corretas para produzir mais e com melhor sabor.

O cineasta Fernando Meirelles, que trabalhou na campanha presidencial de Marina Silva, sente que em 2011 os ventos serão mais favoráveis. Não porque a ex-guerrilheira está eleita, mas porque "sem a paixão que Lula provoca, de amor e ódio, que fez com que a temperatura dessa campanha chegasse a um nível que nunca vi, quem governar o país será criticado ou apreciado pelo desempenho. E não por esta coisa irracional que estamos vivendo hoje. Isso é bom. Política e administração pública devem ser um campo para a razão, e não para as paixões".

O certo e indiscutível é que o Brasil vai bem. Está no caminho correto. O grande risco é a complacência. Achar que já chegou a algum lugar. Não reconhecer que há um horizonte pela frente em meio a uma maior transformação. Se fizer a coisa certa, em alguns anos, o país poderá se tornar ainda melhor.

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