O rifle AK-47 alimentou guerras civis e tornou mais mortais os conflitos nas tribos africanas, como no sangrento sul da Etiópia
André Julião Publicado em 18/10/2011, às 16h45 - Atualizado em 01/11/2011, às 12h42
Sob vários aspectos, Biua Berimu é um idoso como qualquer outro, em qualquer parte do mundo. Ele sabe tudo sobre as tradições de seu povo, vive cercado de netos, filhos e é respeitado por todos. Diferentemente de velhinhos em outros cantos do planeta, porém, Biua só tem 50 anos. E, para chegar a essa fase da vida, precisou fazer o que nem todo senhor grisalho pode sair contando orgulhoso por aí. Como um membro dos karo, uma das tribos do vale do rio Omo, no sul da Etiópia, ele precisou defender seu gado e território com balas e sangue, resistir a enchentes e secas – um novo período sem chuvas, aliás, volta a assolar seu país neste momento. Biua viveu nestas cinco décadas o que muitos não viveriam em 100 anos. E ele se orgulha de tudo, principalmente de um fato em particular.
Aconteceu antes de ele se casar – muitos povos do sul da Etiópia não usam um calendário e sequer sabem a própria idade; a de Biua, inclusive, é apenas uma estimativa. Um dia, dois homens da tribo rival bume (também chamada de nyangatom) atravessaram o rio Omo, que os separa do território dos karo, e roubaram algumas vacas do rebanho de Biua. Furioso, ele procurou os ladrões por três dias. Não encontrou nenhum rastro na mata nem na margem do rio. Ele tinha um problema. No vale do Omo, a vendeta é parte do sistema de justiça. É obrigação de qualquer um que tenha tido um parente assassinado, ou uma vaca sequer roubada, se vingar, afinal, nessas terras, o gado é o maior patrimônio de uma família. Biua tinha de dar uma satisfação a seu povo.
Cansado da busca, sem encontrar os rapazes que roubaram suas vacas, ele um dia avistou dois bume – provavelmente tão jovens e trabalhadores quanto ele – e atirou para matar. Conseguiu. Ele sabia que não eram os ladrões do seu gado. Mas agora tinha se vingado do povo inimigo. “Me senti orgulhoso”, conta, sorrindo como um garoto que captura dois passarinhos coloridos numa arapuca. Um feito de tamanha importância fica, literalmente, marcado em um homem karo. Cada inimigo que ele mata se transforma em um conjunto de cicatrizes, feitas minuciosamente com um espinho e uma lâmina afiada. Biua carrega até hoje no peito as marcas da vingança. Como foram dois abatidos, ambos os lados do abdome e do tórax são cobertos por círculos imperfeitos, porém alinhados – como uma enorme tatuagem.
Lavar a honra numa situação parecida teria sido muito mais difícil para um antepassado recente de Biua que só tivesse uma lança. Na época do ocorrido, ele já possuía um item de luxo: um rifle. Mas os tempos mudaram. Biua hoje prefere sua aquisição mais recente. Embora enferrujada e com o acabamento em madeira danificado, ela poderia ter feito sua vingança ainda mais sangrenta. Como quase todo homem adulto naquela região, Biua tem um “Kalash”, que é como o fuzil automático AK-47 é chamado naquelas bandas. Tal posse não o torna exatamente superior, apenas em igualdade com seus vizinhos das tribos do sul da Etiópia. Ele não é nada mais do que o senhor mais velho da vila.
Tudo que sei de Biua, porém, é fruto de algumas poucas horas de conversa, intermediadas pelo meu guia Asayehegn Nida, o Asu, um jovem morador da capital Adis Abeba, fluente em inglês e amárico, a língua mais popular no país. Mas no momento em que avistei Biua, tive certeza de que já o tinha visto. Cerca de dois anos antes, havia conhecido o trabalho do fotógrafo sul-africano Brent Stirton. Sua foto mais emblemática é a de um guerreiro karo, adornado como tal, carregando um AK-47 nos ombros. Naquele momento, a semelhança com Biua me parecia absoluta. Peço para Asu perguntar para o velho homem se ele se lembra do nome de Stirton, mas, infelizmente, o ancião não é bom em decorar alcunhas.
Pouco antes, porém, Biua diz ter guardado em sua casa um retrato feito por um estrangeiro. E que poderíamos vê-lo mais tarde. Era isso. Só podia ser a foto feita por Stirton, pensei naquela hora. Ver a fotografia nas mãos do fotografado seria, para mim, o término de um ciclo. Aquele homem de costumes tradicionais, que vivia sob leis primitivas, usava pinturas e vestimentas tribais e ao mesmo tempo manuseava uma invenção tão avançada, tinha povoado minha mente por quase dois anos. Biua e seu AK-47 eram a razão para eu estar na Etiópia. Àquela altura, no entanto, eu não tinha noção de que presenciava apenas mais um triste capítulo de uma história que começou a ser escrita no leito de um hospital soviético, em 1941.
Gravemente ferido quando o tanque que comandava foi atingido em uma batalha com os alemães, o soldado russo Mikhail Timofeevich Kalashnikov passava seus dias de recuperação rabiscando, em um caderno, o que ele queria que fosse a arma capaz de expulsar os nazistas de seu país. Mas a Segunda Guerra já tinha acabado há dois anos quando ele conseguiu a aprovação do fuzil automático AK-47 (Avtomat Kalashnikova 1947). O russo tinha copiado ou aperfeiçoado as melhores características de diferentes armas. Mas duas inovações tornavam a sua ideia impecável.
Fabricantes profissionais produzem fuzis com peças que se encaixam firmemente, o que faz com que o contato com qualquer sujeira as faça travar. Kalashnikov seguiu o caminho oposto. Fez partes com tamanhos flexíveis, que continuam se movendo mesmo com resíduos entre elas. Além disso, o mesmo sistema que expulsa os cartuchos vazios durante os disparos joga para fora qualquer impureza. A facilidade de manuseio e o baixo preço a tornavam ainda mais atraente.
Curiosamente, a arma com a qual os norte-vietnamitas expulsaram os norte-americanos do Vietnã em 1975 se espalharia pelo mundo com a ajuda dos Estados Unidos. Em 1979, a União Soviética invadiu o Afeganistão, mas sofreu forte resistência dos grupos de oposição conhecidos como mujahedin, ou “guerreiros sagrados”. Por meio da CIA, a agência de inteligência norte-americana, foram fornecidos mais de US$2 bilhões em recursos para os rebeldes e centenas de milhares de AKs, por intermédio do Paquistão.
O fuzil foi escolhido em parte por causa da confiabilidade, baixo custo e disponibilidade – a China, que havia se desentendido com a URSS nos anos 60, foi uma das maiores fornecedoras dos americanos. Por outro lado, sendo os fuzis soviéticos, a CIA podia negar mais tarde qualquer envolvimento no conflito. A estratégia deu certo, com a saída dos comunistas do Afeganistão em 1989. O dispendioso combate contribuiu ainda para o fim da União Soviética, dois anos depois. Os mujahedin, porém, continuaram a lutar, dessa vez entre si, pelo controle do país. Um deles, o saudita Osama bin Laden, fundou a Al Qaeda – e o resto da história é conhecido. Em todas as suas aparições, Bin Laden sempre portava um AK.
A China continuou a vender as armas para gangues, traficantes e grupos extremistas. O Paquistão tinha uma enorme quantidade de AKs desviados do fornecimento vindo dos Estados Unidos. Falidas e sem a mão de ferro dos soviéticos, Hungria, Bulgária e Romênia vendiam suas próprias versões do fuzil. Alemanha Oriental, Ucrânia e Albânia comercializavam seus estoques a preços baixos. A grande oferta possibilitou revoltas sangrentas na África, no Oriente Médio e na América Latina. O AK-47 se espalhava pelo mundo – e o efeito dessa enxurrada de armas baratas no mercado negro foi particularmente devastador no continente africano. Com o fim do apoio das superpotências no final dos anos 80, governos militares tradicionais entraram em colapso e os países se dividiram em tribos que alimentavam antigos ressentimentos. Em 1989, Charles
Taylor invadiu a Libéria com um grupo de 100 homens, inclusive crianças, armados principalmente com AKs baratos, e controlou o país nos seis anos seguintes. “Taylor não sabia disso naquele momento, mas ele estava na vanguarda de uma tendência que, em 2000, resultaria na morte de sete a oito milhões de africanos e também no deslocamento de milhões de pessoas procurando refúgio dos conflitos prolongados e de baixa intensidade que se tornaram possíveis graças à facilidade de obtenção dos indestrutíveis AKs”, escreveu o jornalista norte-americano Larry Kahaner no livro AK-47 – A Arma Que Transformou a Guerra, lançado no Brasil pela editora Record.
De acordo com o fundo para crianças das Nações Unidas (Unicef), de 15 a 20 mil crianças participaram da guerra civil na Libéria, entre 1989 e 1997. Muitas outras nações africanas usaram desse expediente, mas Serra Leoa se destacava. Entre 1991 e 2001, 80% de todos os combatentes no seu conflito interno tinham de 7 a 14 anos de idade. Os dois países se tornaram a conexão do contrabando de armas na África de meados dos anos 80 até hoje. Em Moçambique, as duas forças que lutaram pelo poder após a independência de Portugal, em 1974, chegaram a ter entre cinco e dez milhões de armas, a maioria tendo sido distribuída para grupos civis. Até hoje, a bandeira moçambicana tem estampada um AK-47. O próprio Kalashnikov ficou impressionado ao visitar o país e saber que muitos soldados, após o fim do conflito, em 1990, deram aos filhos o nome de Kalash.
Na Etiópia, único país africano nunca colonizado por europeus, a história é diferente. Em 1974, uma junta comunista pôs fim a uma monarquia de mais de dois mil anos, com a derrubada do lendário imperador Haile Selassie. No fim dos anos 80, ganhava força no sul a Frente Democrática Revolucionária Popular da Etiópia (EPRDF, na sigla em inglês), que em 1991 tomaria o poder e é até hoje a coalizão política mais influente do país, que tem eleições e outros partidos. “Os comunistas distribuíram armas para os camponeses, inclusive para as tribos do vale do Omo, para que combatessem a EPRDF”, explica Asu, meu guia.
Quando cheguei ao sul da Etiópia, no fim de março, tinha alguma ideia da popularidade do AK-47 no local. Não imaginava, porém, que fosse tão disseminado. Na primeira tribo que visitei, os mursi, a proporção era de praticamente um fuzil para cada homem. Mas mesmo armadas essas tribos não são hostis, pelo menos a turistas. Todos os dias, centenas de carros desembarcam em seus vilarejos, onde são aguardados com ansiedade por crianças, adultos e idosos. Eles cobram quantias irrisórias (de R$ 0,50 a R$ 2) para cada foto que posam.
Lukeali, um homem musculoso e sorridente da tribo mursi, é o mais afoito quando chego à sua vila. Apesar de mantermos um diálogo mínimo, todas as suas frases terminam com “foto”. Peço que Asu pergunte, então, se eu poderia posar ao lado do chefe mursi com um AK-47 nas minhas mãos. Imediatamente, Lukeali pede a arma de um colega, que cede sem hesitar. Eu estava curioso para saber a sensação de manusear aquele objeto. Nenhuma palavra pode definir melhor a sensação do que “poder”. Embora estivesse enferrujada, sua leveza, tamanho compacto e desenho elegante me fazem sentir que poderia começar uma pequena ditadura naquele momento. Mas logo sou tomado pelo medo desse mesmo poder.
O receio de atirar acidentalmente é tanto que não ponho o dedo nem perto do gatilho. Entrego a arma poucos minutos depois, sem saber que ela estava com a trava de segurança acionada e, portanto, impossibilitada de disparar. Nos dias que se seguiriam, pegaria em outros AKs com mais confiança, mas jamais fiquei com um em mãos por mais de cinco minutos.
A maioria das vezes isso aconteceu em Kibish, terra do povo surma (ou sure). Quase isolados no sudoeste do país, próximos à fronteira com o Sudão do Sul, eles vivem num local cercado de montanhas. É impossível visitá-los e retornar no mesmo dia, tamanha é a distância da cidade mais próxima e as más condições das estradas. Embora empresas chinesas e sul-coreanas estejam cortando o país com novas rotas e asfaltando antigos caminhos poeirentos, esse tipo de progresso ainda não chegou por lá. Mas tudo leva a crer que Kibish é muito mais avançada que qualquer outra tribo do vale do Omo.
A começar que as mulheres não são submetidas ao que se chama, no país e em vizinhos como o Quênia, de “circuncisão” feminina. A prática, na verdade, consiste na extirpação do clitóris das meninas quando elas têm por volta de 13 anos. Na maior parte da Etiópia – inclusive no norte mais “desenvolvido” –, a mutilação genital feminina foi só recentemente proibida, mas ainda é feita ilegalmente, na crença de que tal parte da vagina seja algo “masculino” e que deve ser cortado antes de a mulher se casar. “Em Adis Abeba, só as meninas que nasceram de 2000 pra cá têm o clitóris”, diz Asu, filho de uma família escolarizada de classe média. “Minha mãe e minhas irmãs são todas circuncidadas.”
A diferença pode ser sentida no humor da tribo. Enquanto as mulheres hamer – que, além de terem o clitóris extirpado, participam de uma cerimônia em que são açoitadas – são normalmente mal-humoradas e bem mais jovens do que aparentam suas rugas, as meninas surma não se diferenciam muito de adolescentes brasileiras. Elas podem namorar à vontade antes de se casar e têm até permissão para dormir fora de casa – com a diferença de que, se o irmão a encontrar com o namorado, tem o direito de surrar os dois. Eles, inclusive, usam um método contraceptivo, a tabelinha. Não fazem sexo no período fértil da mulher, por volta do 16º dia após a menstruação.
Um dos que fazem uso desse expediente é Bargulo Olecoro, de cerca de 18 anos. Atualmente ele tem três namoradas – fora as com que está constantemente flertando. Normalmente é ele quem recebe os poucos turistas que chegam à tribo. Sua simpatia pelos estrangeiros é tanta que ele se apelidou de Peter. Apesar de ser um torcedor do Manchester United, da Inglaterra – a vila tem um ponto com energia elétrica, onde se pode assistir aos jogos –, Peter é um típico surma. Anda descalço, veste apenas o mamagule, a manta tradicional que cobre todo o tronco, e tem várias cicatrizes na cabeça. As marcas são consequência de uma tradição dos surma, a donga. A celebração consiste basicamente em uma luta de bastões, em que dois grupos se enfrentam em ocasiões especiais, como casamentos.
Estamos no nosso acampamento combinando como será a apresentação que a tribo fará da luta, quando pergunto a Peter, quase por formalidade, se sua tribo tem inimigos. Com aquela tranquilidade no ar, acho improvável. Mas a resposta me surpreende. “Sim”, diz. “Os minit”, se referindo a uma tribo vizinha. “Além dos dizi e nyangatom”, completa. Então, ainda duvidando que aquele povo aparentemente tão amável pudesse trocar tiros com alguém, pergunto quando foi o último conflito – imaginando algo anos antes. “Na semana passada. Os homens daqui mataram 20 minit”, diz Peter, com naturalidade.
A calmaria daquela terra era meramente ilusória. Naquele momento, eles estavam em processo de negociação de paz, intermediada pelo governo. Peter trabalhava como tradutor nessas ocasiões. O conflito, porém, ainda estava vivo; e os minit podiam muito bem querer vingança. Asu tenta me tranquilizar, dizendo que os combates só ocorrem em áreas onde ficam as plantações e o gado, distantes das moradias. Ainda imaginando aqueles homens disparando rajadas de balas enferrujadas em outros, caminho em direção ao local onde será feita a donga. O calor parecia estar prestes a me fazer desmaiar, quando todo meu corpo se pôs em alerta. Um tiro fora disparado.
É um estampido abafado, bem diferente do que imaginava ser um disparo de AK. Todos olham para a mesma direção, curiosos. O guia, que sempre tem uma resposta para tudo, está calado, com um olhar sério. A cena na minha mente estaria se materializando naquele momento? Concluo, no mesmo instante, que os minit estão invadindo a tribo para se vingar de seus 20 homens mortos. Mas, em vez de um exército, aparece apenas um homem. Ele sai correndo do meio do mato, completamente nu, segurando a manta que até então lhe cobria em uma das mãos. Depois de algumas frases incompreensíveis entre Peter e Asu, eles começam a rir e continuam andando. Pergunto, confuso, que diabos acontecera ali. “Esse rapaz correndo estava no mato, desarmado, quando deu de cara com outro surma, com quem ele discutiu no bar, dias atrás”, diz Asu. “Então o homem atirou nele, que veio correndo pegar a própria arma.” Parece que o tiro foi só para assustar, pois nos dias seguintes não soubemos de ninguém recém-baleado. Mas só depois daquele episódio me dei conta de algo óbvio. Se eles tinham matado 20 inimigos na semana anterior, um ou mais surma teriam sido atingidos. Peter diz que apenas um morreu e outros dois ficaram feridos.
Kibish é uma espécie de “capital” do povo surma, abrigando uma escola e alguns escritórios governamentais. Há até um tipo de “downtown”, onde pequenas lojas vendem lanternas, pilhas e algumas roupas; e ainda um tipo de bar, em que ocorreu a briga do fugitivo pelado. No local, homens, mulheres e crianças tomam uma cerveja artesanal comum em todas as tribos, feita de água, malte e sorgo fermentados, e que serve também como alimento. O líquido fica num imenso tonel de plástico e as porções são medidas em um galão menor, de cinco litros. O líquido marrom é servido em cabaças. A alguns metros do bar fica o centro médico local, onde procuramos um dos feridos – ninguém consegue informar onde está o segundo.
Logo no portão, encontro um homem com a canela enfaixada. Estava há mais de um mês no hospital, portanto não participara da troca de tiros da semana anterior. Mas era também uma vítima do AK-47. Em uma briga de bar, tomou um tiro no tornozelo. Como não há médicos nem recursos no prédio, sujo e sem equipamentos, a bala ainda estava dentro do seu osso. Mais adiante encontramos Barkutulu Tungusuri, um dos guerreiros feridos. Ele não quer falar nem ser fotografado, mas nos atende depois que seu amigo, o segurança local que nos acompanha, o convence. Está há três dias internado, deitado em uma maca no chão, ao lado de uma bacia cheia da própria urina. A perna direita está enfaixada da coxa ao tornozelo, com um plástico em volta. Duas camas sem colchão e uma prateleira vazia estão jogadas no local empoeirado, em meio à bagunça do que parece mais um quarto abandonado do que um leito de hospital.
Embora tenham as armas e as balas há muito tempo, os povos do vale do Omo não possuem os recursos para lidar com os ferimentos causados por elas. Em Kibish tivemos a visão mais pura de uma tribo da Etiópia e de como a vida dessas pessoas é alterada por tecnologias criadas fora da África – da televisão que passa jogos de times ingleses a um fuzil que mata mais que qualquer lança. No penúltimo dia na tribo, Peter e seu irmão Komotab, de uns 12 anos, me pedem camisetas. Tento convencê-los de que suas roupas são muito mais bonitas – e apropriadas para a temperatura local. Mas não adianta. O que vem de fora parece exercer um fascínio sobre eles. Dou duas camisetas básicas, sem estampa. Os dois saem felizes, vestidos com os adereços estranhos sob a bela roupa tradicional.
Sou tomado por uma profunda melancolia. Por menor que seja minha influência, estou contribuindo para a descaracterização de uma cultura tão bela. No dia seguinte, de manhã, eles aparecem para se despedir. Uma horda vem em busca de camisetas, mas resisto a todos os apelos. Peter vem sem a sua. Komotab, mais jovem e mais vulnerável às novidades, está vestindo a que lhe dei e exibindo-a aos colegas. Vamos embora depois de distribuir os alimentos e a água que sobraram dos três dias de camping. A tristeza é amenizada pela alegria de ter visto tudo aquilo enquanto ainda existe. As novas estradas e o crescimento contínuo da Etiópia desde a abertura da economia, há cinco anos, farão com que o lugar se torne diferente em pouco tempo.
Tudo isso estava ficando muito claro desde o encontro com Biua, semanas antes. Para visitar sua tribo, ficamos hospedados em um lodge inaugurado poucos anos antes por investidores europeus. A vila onde ele morava tinha até estacionamento coberto – de palha, é verdade – para os carros das empresas de turismo. Seus vizinhos estão preocupados com a construção da usina hidrelétrica Gilgel Gibe III, que deve ser inaugurada em 2013. Eles temem que a obra vá alterar os períodos de cheia e vazão do rio Omo, do qual dependem para suas plantações de sorgo nas margens. Com a Gibe III, no entanto, o país se tornará exportador de energia, enquanto hoje apenas 2% da população rural (que equivale a 80% dos 82 milhões de habitantes) possui tal privilégio.
Biua finalmente mostra a foto que eu tanto ansiava por ver. Mas não era a que eu imaginava. Mesmo hoje, revendo as imagens da viagem e a que me levou a fazê-la, não posso afirmar se são o mesmo homem. Se a vila de Biua tem até estacionamento coberto, não é de admirar que muitos fotógrafos já o tenham retratado. Mas esse é apenas um detalhe na minha trajetória pelo vale do Omo. Eu havia, sim, terminado um ciclo. Mas agora não tinha apenas uma foto na memória, mas um amplo retrato de uma cultura em transformação.
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