Um ano na estrada com o Nirvana
Michael Azerrad Publicado em 29/04/2009, às 20h17 - Atualizado em 20/02/2012, às 14h24
No primeiro semestre de 1993, Kurt Cobain se sentou à mesa de sua cozinha às três da manhã, fumando um cigarro atrás do outro e brincando com um dos manequins médicos que ele colecionava. "É difícil acreditar que uma pessoa consegue botar coisas tão venenosas como álcool ou drogas no próprio sistema e os mecanismos agüentam - por um tempo", ele me disse, absorto, tirando e colocando os pulmões, o fígado e o coração do boneco.
Com 1,70 m e 57 kg, Kurt era pequeno, dolorosamente magro; ele vestia várias camadas de roupa por baixo do cardigã habitual e do jeans rasgado pra parecer só um pouco mais cheinho. Ele sabia bem a quanto abuso, auto-infligido ou não, aquela frágil estrutura conseguia sobreviver.
Alguns dias após a morte de Kurt, um chofer de limusine de Seattle que muitas vezes o conduziu pela cidade observou: "Bom rapaz. Bem quieto. Mas acho que ele tinha muita dor." Entre dor de estômago, bronquite crônica e escoliose, a dor dominava a vida de Kurt. Até seu próprio corpo era um ambiente hostil. Muitos acreditavam que a dor de estômago de Kurt era apenas uma mentira pra camuflar o uso da heroína, mas ela existia; a mãe dele tinha sintomas idênticos aos vinte e poucos. Ironicamente, Kurt dizia que seu grito emanava precisamente do mesmo ponto onde sentia a dor em suas entranhas; até tocar guitarra era às vezes doloroso por causa da escoliose. Mas o que realmente atormentava Kurt não era meramente físico. Todo aquele talento e carisma embalados dentro daquele pacote pequeno e frágil faz lembrar Robert Fripp descrevendo Jimi Hendrix como um cabo estreito com muita corrente passando dentro.
Kurt percebeu que a fama o estava afastando de seus amigos, acompanhados pela pobreza em toda a vida criativa e social. Quando comprou um Lexus no começo do ano, um peso na consciência o fez devolvê-lo e continuar com seu velho e confiável Volvo cinza.
De fato, a amizade foi um grande motivo pra Kurt ter continuado na banda. Krist Novoselic e David Grohl eram dois dos melhores e mais leais amigos que tinham sobrado. E ele sabia de antemão o poder da música que eles faziam juntos - o fluxo de endorfina do palco aplacava até mesmo sua dor de estômago mais torturante. É por isso que ele às vezes se jogava na bateria durante o bis - pra provar que não estava sentindo dor. Ainda assim, Kurt estava se distanciando da coisa que ele mais amava. "Eu já não sinto a mesma coisa, emocionalmente, pela nossa música", ele me contou, descansando em casa logo após terminar In Utero. "Essa gravação me deixou atônito. Meu entusiasmo simplesmente não veio. Não sei se por causa da produção, de tocar, ou simplesmente da minha falta de interesse a essa altura." Apesar disso os críticos e os fãs discordaram, e mesmo Kurt repensou sua opinião sobre o disco.
Em 9 de abril de 1993, o Nirvana tocou no Cow Palace de San Francisco em benefício das vítimas de estupro bosnianas. Kurt chegou e se deparou com uma comitiva dentro do camarim, e se estirou numa cadeira dobrável contra a parede. Havia outra cadeira perto dele, mas ninguém podia simplesmente se sentar e conversar com ele. Então eu fui. Ele sorriu e disse: "Oi", e jogou a Frances no meu colo. Nós conversamos sobre Speed Racer, um dos programas de TV favoritos dele. Ele cantou pra mim a música-tema enquanto vários intrometidos nos olhavam.
Os boatos a respeito das drogas, ainda não confirmados, cresciam: Kurt era um junkie debilitado que não conseguia mais tocar nem compor? A banda que já tinha revolucionado a indústria musical era apenas fogo de palha? O show silenciou os céticos. As músicas de Nevermind eram mais estimulantes do que nunca; o material novo exalava um poder inegável.
Pareceu prosaico na época, mas a posteridade mostrou o contrário: Kurt mudou sua posição no palco, trocando seu habitual lado esquerdo pelo direito. "Isso meio que fez as coisas ficarem interessantes de novo", ele explicou.
Em outubro, o Nirvana começou sua primeira turnê pelos EUA em dois anos. O novo guitarrista da banda, Pat Smear, enriquecia Kurt com bases propulsivas e solos apaixonados, mas também exercia outro papel crucial: ele nunca fracassou em levantar o ânimo de Kurt. Mas ninguém conseguia levantar seu ânimo tanto quanto sua filha. Frances acompanhou Kurt por quase toda a turnê, enquanto Courtney gravava seu álbum novo. Frances era a luz na vida de Kurt - sempre que ela estava por perto, seu rosto brilhava, ele se abria num raro sorriso, e o cômodo (ou o ônibus) inteiro se enchia com sua alegria.
O Nirvana tinha decidido tornar a estrada prazerosa - escolheram suas bandas favoritas para abrir, inclusive The Breeders, Butthole Surfers, Chokebore, Half Japanese, Mudhoney e Shonen Knife. Eles se presentearam com dois ônibus para a banda, bons hotéis e um massagista. Agendaram vários dias de folga e levaram junto mulheres, noivas e amigos. Talvez tenha sido por isso que eles fizeram shows transcendentais - os mais consistentemente incríveis de suas carreiras - nos quais você quase sentia seus pés perderem o contato com o chão.
Pela metade da turnê, muitos de nós fomos ver um show da lenda inglesa do punk-pop, os Buzzcocks. No camarim, os caras da banda disseram ao Kurt que era uma honra conhecê-lo, e mais de uma vez ele respondeu gentilmente, "Não, é uma honra conhecer vocês". Depois ele ficou lá na frente conversando com uns garotos punk que o trataram como um igual - nem pediram autógrafos. Seus olhos penetrantes, seu temperamento instável, seu estado químico, sua fama e seu carisma quase palpável eram extremamente intimidantes. Mas na verdade ele era um homem gentil e meigo, e um ouvinte atencioso.
Eu descobri isso viajando com o Nirvana naquela turnê. Quando chegamos em Nova Orleans em dezembro, eu passava por uma crise pessoal. De um orelhão da Bourbon Street, à meia-noite, eu liguei pro Kurt, que me convidou pra conversar em seu quarto no hotel. Ele estava exausto, mas disposto a ajudar - chegou mesmo a se abrir falando de seu próprio histórico de relacionamentos moribundos e hiatos criativos. Às quatro da manhã, eu estava no meio de uma frase quando ele simplesmente fechou os olhos e apagou de sono. Ele não estava alterado; simplesmente não conseguia mais ficar acordado. "Por que você foi embora?", ele reclamou na manhã seguinte.
No fim da turnê, em dezembro, o Nirvana apareceu no MTV Unplugged. Kurt selecionou um número sem precedente de covers e, como se pode constatar, eles falavam de fama, morte, ou ambos. "Plateau", do Meat Puppets, diz que depois de atingir o topo só há mais trabalho, enquanto em "The Man Who Sold the World", de David Bowie, Kurt entoou: "Pensei que você tinha morrido sozinho muito, muito tempo atrás". "Não espere que eu chore por todos os motivos que você tinha pra morrer", Kurt cantou suavemente em "Jesus Wants Me for a Sunbeam". Aquela foi a última vez que eu vi Kurt Cobain. Ele se despediu de mim com um abraço.
Como a maioria dos suicidas, Kurt deu muitas dicas; retrospectivamente falando, elas eram mais do que pedidos de ajuda, eram avisos. Ele era assim. "Ele era infeliz antes de ser famoso, e foi infeliz depois de ser famoso", diz o então empresário do Nirvana, Danny Goldberg. "Ele era simplesmente infeliz."
Em agosto de 1992, um show triunfante do Nirvana fechou o Reading Festival, na Inglaterra. Ainda vestido com o avental de médico que tinha usado durante o show, Kurt saiu do palco de mãos dadas com um garotinho com câncer terminal que tinha sorrateiramente entrado no camarim. Kurt desceu devagar um lance de escadas enquanto um holofote reluzia sobre ele. Todo de branco, seus cabelos loiros resplandecendo, ele parecia um anjo, e o garoto um querubim. Um grupo de pessoas cercou Kurt, mas por alguma razão a luz não os tocou. Fazia muito silêncio, principalmente depois do barulho trovejante do show. O grupo o seguiu por uma trilha feita pelas tendas de camarins. Então Kurt dobrou uma esquina, ainda de mãos dadas com o garoto, e se foi.
Tradução: Leandro Pereira
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