O jogador mais midiático do futebol brasileiro atual foi perdoado pelo povo. Mas segue se esquivando das maiores críticas e sendo mal assessorado. Ainda assim, aos olhos de muitos, mesmo quando tropeça, em campo ou fora dele, continua sendo Ronaldo
Por Ricardo Franca Cruz e Marcelo Ferla Publicado em 14/02/2011, às 15h24 - Atualizado em 28/10/2016, às 12h54
O Corinthians está em campo. E, curiosamente, não há adversários dividindo o gramado. Nesta manhã de sábado, começo de maio, o estádio do Pacaembu, em São Paulo, não está abarrotado de torcedores alvinegros. Eles ocupam, junto com convidados, cerca de metade das dependências do local, curiosos para ver o mais de perto possível os novos uniformes do time. Praticamente todos os jogadores se apresentam e no momento em que o rapper Rappin' Hood, mestre-de-cerimônias do evento, termina a contagem regressiva, eles tiram o agasalho preto e revelam o novo traje criado pela Nike. A ovação é geral, os atletas se dispersam e batem bola antes de iniciar um rachão de camisas brancas contra camisas pretas. Mas é somente quando Ronaldo é anunciado que a metade do estádio se levanta e grita para valer. O craque, vestindo camisa branca, trota até o mestre-de-cerimônias, diz algumas palavras ininteligíveis ao microfone e é aplaudido de pé. A brincadeira em campo começa, os reservas correm mais que os titulares. E, tão rápido como apareceu, Ronaldo desaparece sob o sol fraco, se dissipando escada abaixo a caminho do vestiário.
A primeira bola, o primeiro drible, o primeiro gol. Um dia, no primeiro dia, ainda antes de ingressar no Social Ramos Clube do Rio de Janeiro, o garotinho da favela clichê, com seus pés descalços e dentões sobressaltados de personagem de quadrinhos e um futuro tão sujeito a terrenos esburacados como o campinho irregular daquela várzea, teve três ou quatro adversários pela frente, passou por todos e marcou um gol, provavelmente tirando do lugar uma das sandálias que não soltam as tiras nem têm cheiro que servia como trave.
A partir daquele momento, ele soube que podia fazer isso, e desde aquela primeira vez vem fazendo isso. Como se fosse sempre a primeira vez. Porque ele gostou daquilo. O garotinho foi batizado Ronaldo, bem como é hoje chamado novamente, depois de ter deixado para trás, como tem feito há duas décadas com zagueiros mundo afora, os apelidos de Ronaldinho e de Fenômeno - o pejorativo "Ronalducho", adquirido depois do descaso de 2006, está sendo driblado com o passar do tempo e a mão amiga do marketing, que trabalha com eficiência para não vermos o que avulta aos olhos: sua circunferência se destaca nos gramados tanto quanto sua eficiência goleadora.
A teoria empírica para explicar a extraordinária capacidade técnica do maior goleador da história das Copas do Mundo é do ex-atacante alemão e depois treinador da seleção germânica Jürgen Klinsmann, e foi publicada no livro Anjos Brancos, de John Carlin. "Ronaldo é único porque executa, porque ele tem uma ideia na cabeça quando pega a bola e a executa () e tudo isso começou quando ele era garotinho, a primeira vez que ele fez isso."
Ronaldo deixou adversários para trás, fez o primeiro gol e nunca mais parou de fazer porque gostou, e isso foi suficiente para torná-lo um dos maiores do futebol como o conhecíamos (aquele jogo com uma bola e 22 jogadores em busca do gol), e o maior de todos do futebol globalizado, uma gigantesca engrenagem em que a bola e o jogador são um importante detalhe, mais perceptíveis pela quantidade de logotipos que levam consigo para as quatro linhas, sempre enquadradas pelas câmeras do pay-per-view - e ele é o primeiro ícone desta nova ordem.
É deste mundo novo que ele foi eleito três vezes o melhor jogador pelos critérios da Fifa, em 1996, 1997 e 2002. É de lá que ele carrega no peito medalhas de ouro por ter conquistado dois campeonatos mundiais em lugares inimagináveis antes da transformação pela qual o jogo passou: Estados Unidos, Japão e Coréia. Foi lá, no futebol pós-modernizado, em que vender camisas rende mais dinheiro do que ter público na arquibancada, que ele jogou por quatro clubes europeus que têm rivalidade acirrada e grandezas notórias: Barcelona e Real Madrid, Internazionale e Milan. No ótimo livro Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil, José Miguel Wisnik descreve com exatidão o que se espera dos atores da "Nova Ordem da Bola": "Jogadores como estrelas de um esporte enquadrado numa poderosa estrutura mundial de entretenimento, vindos da periferia ou da favela, que se tornem astros publicitários e celebridades globais e dividam os treinamentos com aparições mundanas, gestos de filantropia simbólica, amores espetaculosos postos em cena como uma novela pública, grandes decisões financeiras, tudo gerido por empresários, assessores de imprensa e de imagem, fisioterapeutas e advogados". Não resta dúvida de que a Nike escolheu o modelo perfeito quando focou seus holofotes no garoto Ronaldinho, na metade dos anos 90.
"O Ronaldo achou que eu não trabalhava muito e decidiu que toda a assessoria dele seria feita por nós, do Corinthians", brinca Guilherme Prado, assessor de imprensa do time, explicando por que o atleta não tem mais assessores pessoais. Franzino, de óculos, aparentando ser mais jovem do que deve ser, passagens por times como São Caetano e Palmeiras no currículo, Prado prossegue, à beira do gramado do Pacaembu, com a lista de regras de conduta uma hora depois da aparição relâmpago da maior estrela do atual futebol brasileiro: "A partir do momento em que a sessão de fotos começar, ele irá cronometrar dez minutos, nem um minuto a mais, nem um minuto a menos. É o tempo que vocês terão para fazer a foto", diz. "A entrevista tem de ser rápida também. O Ronaldo não tem muito saco pra ficar respondendo perguntas. Imagine um cara que dá entrevistas desde os 16, 17 anos. Ele está cansado de responder sempre às mesmas coisas." Fazendo uma pausa, ele dispara a ordem mais óbvia de todas: "Se você falar a palavra 'travesti', ele encerra a entrevista na hora. É o único assunto que ele não quer comentar". A conversa, em tom rígido e imperativo, acaba finalizada com um amigável afago editorial: "Pode ficar tranquilo. Este mês decidimos fazer Casseta & Planeta, Jô Soares, Folha de S.Paulo e essa capa para a Rolling Stones [sic]. O Ronaldo é muito profissional, ele vai fazer". Passada a primeira barreira que circunda o atleta, nos encontramos diante de uma questão aparentemente mais simples de ser transposta (não o é): a agenda do jogador.
Houve um dia em que Ronaldo não superou seu adversário, pela primeira vez. E beijou a lona. E sentiu o gosto de sangue. E se levantou. E parece ter gostado tanto que nunca mais parou de beijar a lona, ser dado como derrotado e ressurgir no centro do furacão, sempre deixando para trás o peso do descrédito. Foi assim em 1996, ainda no PSV da Holanda, depois de ser submetido a uma raspagem para eliminar corpos estranhos da cartilagem que estavam se juntando ao tendão patelar. E em 1999, já pela Internazionale de Milão, depois de pisar em um buraco, torcer o joelho e romper o tendão patelar. E novamente pela Inter italiana, depois de pretensamente recuperado, em 2000, quando teve outra lesão no tendão patelar do joelho direito, com direito a imagens tão angustiantes que mereceu o mais indesejado dos sentimentos: pena. Em fevereiro do ano passado, jogando pelo Milan, Ronaldo machucou novamente o joelho direito, entre outras lesões. Ao relatar a performance do atacante, o jornal italiano Il Giornale decretou que "ele brilha em intervalos, como um vaga-lume".
Houve também o dia em que Ronaldo errou pela primeira vez. Mas foi perdoado. E parece ter gostado tanto que nunca mais deixou de fazê-lo. Foi assim quando saiu de boa parte dos clubes pelos quais passou, em transferências conturbadas como a do Barcelona para a Internazionale e depois da Inter para o Real Madrid - já a saída do Madrid foi um alívio porque determinava que a controversa época dos galáticos estava acabando, e a insatisfeita torcida merengue finalmente poderia ver atletas mais nos campos de treinamento do que nas revistas de fofocas. Foi assim quando desapontou a nação brasileira na final da Copa do Mundo de 1998, na França, depois da misteriosa convulsão que o tirou da partida final e parece ter levado todo o time junto - embora ele tenha entrado em campo, e eles também, pelo menos para verem Zidane passear como se fizesse compras. E foi assim quando se apresentou sem condições físicas ideais para disputar o título na Alemanha, em 2006 - diga-se gordo, ao menos para o futebol -, e quando voltou ao Brasil, anos depois, e foi treinar na Gávea e jurou amor pelo Flamengo, antes de assinar pelo Corinthians - um casamento perfeito, diga-se. A contratação de Ronaldo pelo Corinthians, em 9 de dezembro de 2008, concedeu contornos delirantes à autoestima reconquistada com a volta do clube paulistano à Primeira Divisão. Ronaldo representa o cara que cai muitas vezes e se levanta mais forte. Comparativamente, a sofredora fiel torcida corintiana, projeção exata do ser brasileiro, também conhece bem o que é cair e ter de se levantar sempre.
O faro doce do gol, o gosto de sangue da derrota, o amargo dos erros. Ronaldo Luís Nazário de Lima, menino do Rio nascido em 22 de setembro de 1976, é um atleta venerado mundialmente como um super-homem do futebol moderno. Nem negro nem branco, caviar no banquete antropofágico do propalado multiculturalismo, nunca precisou colocar uma maquiagem terceiro-mundista para ser o modelo ideal. Em alguns momentos, porém, ele saiu do roteiro e se revelou tão falível que passou a receber dos brasileiros um sentimento incomum: todos amam Ronaldo, e todos que o perdoaram pela primeira vez parecem ter gostado tanto que querem perdoá-lo seguidamente. Cenas dos prováveis próximos capítulos: a Copa do Mundo na África do Sul, em junho do ano que vem.
O semideus que "quando ataca, ataca uma manada", como define Jorge Valdano, ex-atacante argentino e hoje escritor e dirigente do Real Madrid, também é um homem comum que vai parar na delegacia por se envolver com travestis - não que isso seja comum. E que fez torcedores do Internacional de Porto Alegre vibrarem ao saber que iriam enfrentá-lo na final da Copa do Brasil, só para vê-lo jogar em seu estádio. Não que gostassem, mas até os rivais históricos do Palmeiras descontaram o fato de ter sido contra o time deles o gol que Ronaldo marcou em 8 de março de 2009, pelo Campeonato Paulista, aos 47 minutos do segundo tempo - aliás, a partida também marcou a primeira utilização do outdoor ambulante de tecido vestido pelos jogadores do Corinthians, sintomática peça do marketing contemporâneo que obriga atletas a levarem para os gramados um supermercado de ofertas variadas junto com as instruções do "professor" e a obrigação de "suar a camisa". São garotos-propaganda que jogam futebol, além de jogadores que ajudam a vender sabonete.
Se no Brasil o sucesso é uma ofensa, como Tom Jobim decretou, a Ronaldo tudo se perdoa, como se o povão emulasse os atos dos hermanos argentinos com sua cantilena " a Maradona todo se perdona", repetida a cada deslize de Diego Armando, dos escândalos com cocaína a cada derrota da seleção atual, que o tem como treinador. Mais do que falhar, Ronaldo não parece muito preocupado em esconder sua condição humana. E a vida humana é cheia de insucessos. Assim, ao mixar a figura globalizada do superjogador e a imagem ordinária do homem que sofre antes de vencer, ele leva consigo o paradoxal romantismo para uma era corporativa, capaz até de comover um povo que não preza pela memória. O garoto, o ídolo e a peça de marketing Ronaldo começaram a surgir logo depois da morte de Ayrton Senna, que ocupou a vaga de ícone do esporte brasileiro na época de vacas magras do futebol. Sintomaticamente, o primeiro gol dele pelo Brasil foi no amistoso contra a Islândia, em Florianópolis, último jogo antes da Copa de 1994, marcado pela emocionada homenagem dos jogadores ao recém-morto herói das pistas. Se foi Romário o símbolo da reconquista da hegemonia mundial do futebol brasileiro, sua trajetória não teve a dramaticidade e a aprovação pública como a de Ronaldo. Após longas temporadas jogando na Europa, Romário voltou ao Brasil para jogar futebol - e futevôlei - e nem quando chorou em público para tentar jogar a Copa de 2002 conseguiu comover o mais paternal dos treinadores, Luiz Felipe Scolari. O técnico, por sua vez, não pestanejou em ir conversar com Ronaldo, então convalescente da mais grave de suas lesões, para lhe prometer a vaga caso ele se empenhasse para tê-la (ele se empenhou tanto que, durante aquela Copa, ficava em campo depois do treino enquanto os jogadores o esperavam, sem reclamar, no ônibus que os levaria para o hotel).
Entre tapas, beijos e escândalos, Ronaldo expõe fraquezas e se revela igual a todo mundo. Um dia, ele beijou a lona para depois levantar. Um dia ele errou para logo ser perdoado. Um dia ele conheceu o fracasso. E passou por ele, e marcou um gol. E assim seguiu, fracassando e marcando.
Parado em frente ao Shopping Pátio Higienópolis, o assessor Guilherme Prado aguarda algum sinal da chegada de Ronaldo para sua primeira entrevista aberta ao público desde a volta aos gramados pelo Corinthians, a tradicional Sabatina do jornal Folha de S. Paulo. "Nós vamos fazer essa matéria de capa da Rolling Stones [sic], o Ronaldo é muito profissional", o assessor faz questão de reforçar neste segundo encontro, e sugere uma conversa rápida com o jogador, com o intuito de quebrar o gelo: "Ele está chegando. Você não quer nos esperar lá em cima? Faz o seguinte: encontra a Renata [Daros, também assessora do time] nos camarins. O Ronaldo vai te esperar lá e você fala rapidamente com ele".
Na entrada dos camarins do pequeno pero cumplidor Teatro da Folha, uma funcionária do local afirma não conhecer nenhuma Renata e duvida que Ronaldo ou sua equipe possa estar realmente à espera de alguém. A Renata em questão enfim surge por trás das cortinas, com pressa. "Agora não dá", diz, "a entrevista já vai começar." E depois? "Depois não sei..."
Durante a entrevista, Ronaldo solta tiradas cômicas frequentes, como se gozasse de felicidade plena e nada pudesse incomodá-lo. Nem mesmo quando declara, negando suas raízes, que prefere que o filho Ronald tenha uma educação europeia ou quando surge o assunto tabu - o caso dos travestis, no qual Ronaldo foi parar na delegacia vestindo uma camisa do Flamengo, seu time do coração. É a jornalista Mônica Bergamo, acostumada às farpas e estilhaços que sua coluna atira ou recebe diariamente, que toca no tema: "[...]Você pode ter o que quiser; o que você pedir pode ter na sua casa; quem você convidar - de nós, pessoas normais que estamos aqui, ao presidente da República - vai à sua casa. Naquele episódio célebre em que você acabou na delegacia com os travestis [...], por que você se expôs a esse ponto? Por que você não fez o que bem entendia no conforto da sua casa? O que te atraiu naquela situação? Por que você, sozinho na rua, abordando um travesti [...]?" Vaias da plateia. "O povo não gostou da pergunta", ameniza o próprio Ronaldo, e emenda: "A minha vida pessoal não interessa a ninguém". A massa vendida aplaude. "Eu acho que todo mundo erra, foi um erro tremendo da minha vida, de que eu me arrependo até hoje. E pra Deus todo pecado é igual, não tem pecado maior que o outro." Mais aplausos. "[...] O importante é que eu sou arrependido do que fiz. Mas aquilo se tornou um problema nacional quando era um problema só meu."
Nos dias seguintes à a lardeada entrevista, Ronaldo retornou a seu exílio espontaneamente avesso à imprensa. Das outras aparições na mídia previstas por sua assessoria, apenas a participação no Casseta & Planeta se concretizou (no programa, Ronaldo contracenou com sua contraparte, o Fofômeno, interpretado pelo humorista Hubert). Ele havia participado antes do programa Altas Horas, também na Globo e apresentado por Sergio Groisman, um dos roteiristas do documentário corintiano Fiel. Seguidamente postergada devido à agenda lotada do atleta, a entrevista para a Rolling Stone enfim parece cair no limbo, notadamente após o jogador se contundir nas últimas semanas de maio.
Dono de uma das maiores torcidas do mundo - 34 milhões de torcedores, segundo o departamento de marketing do time, um fenômeno que o atual presidente corintiano, Andrés Navarro Sanchez, chama de "corintianismo" - o Sport Club Corinthians Paulista é hoje uma entidade que exige de seus seguidores todo e qualquer sacrifício: compre o uniforme novo e o par de tênis, os DVDs, leia o mangá (nas bancas ainda neste mês). Apesar da força de alguns depoimentos, os filmes Fiel, sobre a queda e ascensão na série B, e 23 Anos em 7 Segundos - O Fim do Jejum Corintiano, sobre o período sem títulos (entre 1954 e 1977), têm qualidade documental questionável e são provas de que o cinema, raríssimas vezes, consegue traduzir em sua linguagem a emoção do futebol.
Até o final de 2009, serão lançados mais três longas: sobre os 100 anos do time; sobre a conquista de quatro campeonatos brasileiros e sobre o título mundial interclubes, reconhecido pela Fifa, mas questionado por todos os times que não o próprio campeão. E se o Corinthians é considerado um deus com sangue nos olhos, Ronaldo é seu principal sacerdote, como destaca Luis Paulo Rosenberg, o diretor de marketing do time: "Não gosto de glorificar os jogadores de hoje. Fora o Ronaldo, claro, que não é humano". Mas, aos olhos do povo, o ídolo, ainda que distante, é sempre mais humano que um cartola.
"Neste país estamos carentes de ídolos", decreta o patrão Andrés Sanchez, sobre seu funcionário mais valioso. "Além de ser um ídolo nacional, ele é um ídolo mundial. O Corinthians fora do Brasil era um time pouco conhecido. Agora, com a vinda do Ronaldo, somos um time global."
A sala da presidência localizada no Parque São Jorge é maior que muitas suítes cinco estrelas no mundo. Ao fundo, do lado direito, Sanchez, um homem rústico de pele castigada e olhar desconfiado, está sentado à mesa, em frente a um monitor de tela plana, fumando cigarros, com expressão pouco amistosa. "Evito receber a imprensa sempre", rosna. "Mas se eu não quisesse te receber eu não te receberia, tenho esse direito." Parece ser apenas mais um dia de trabalho para o homem à frente da diretoria que contratou Ronaldo em uma notável jogada de marketing versus futebol. "Quando eu contrato um jogador, penso em ele dar título para o Corinthians. Senão eu iria contratar o Pelé, porra!", ele responde sobre as expectativas colocadas nas costas do astro. "O futebol é uma mentira, é um risco. Você pode contratar um jogador que todo mundo quer e ele pode não conseguir jogar bem por mil razões." Sanchez não mede palavras para rechaçar a imprensa esportiva ("São mentirosos, todos mentirosos"), defender Ronaldo ("Ele sabe que não vai ser o melhor do mundo em todos os jogos") e se isenta de qualquer responsabilidade sobre sua atuação em campo: "Uma vez contratado, ele é poblema [sic] do vice-presidente de futebol, do diretor de futebol, do treinador e da comissão técnica", decreta. "Não tenho mais ingerência nenhuma sobre ele." O senhor sonhava em ser presidente do Corinthians? "Desde garoto, eu sonhava muito, sempre dizia que seria presidente do Corinthians. E, depois que me tornei presidente, me decepcionei. É desumano. É complicadíssimo, por mil fatores que eu não vou dizer quais pra não ofender pessoas. Fora a torcida, que é maravilhosa, o restante que tem ao redor de um clube de futebol é desumano, e o que está em volta do futebol é muito maior do que a torcida. Vou cumprir o meu mandato e depois ficar bem longe. É a hipocrisia que existe não só no esporte, mas na sociedade como um todo. Aqui se especula muito sobre a vida pessoal, o que menos se fala aqui é sobre futebol, isso me entristece muito."
Ao final do encontro, um pedido de intervenção no caso da entrevista com Ronaldo é rechaçado pelo já impaciente cartola. "É uma decisão do atleta", diz, ríspido. "Não tenho como mandá-lo dar entrevista nem fazer nada."
Passa-se mais uma semana, e a resposta positiva da assessoria corintiana sobre a colaboração de Ronaldo para a Rolling Stone jamais chega. Sabe-se que lidamos com o maior ídolo do Brasil destes tempos, mas é quase inevitável cogitar que o atleta não apenas é mal assessorado como talvez nem soubesse que estava sendo procurado. Finalmente, um recado transmitido por terceiros noticia que Ronaldo, ao contrário das expectativas, prefere não conceder a entrevista tão antecipadamente marcada. Não foi dada explicação oficial para a declinação, assim como nenhum contato posterior dos assessores foi realizado.
Não foi exatamente um fato inesperado. Há anos, Ronaldo se tornou um cidadão inatingível do Planeta Bola, uma figura digna das teorias de Eric Hobsbawn, que vê o futebol como ponta-de-lança do confito essencial da globalização, primeiro filho legítimo de um jogo sem pátria em que os brasileiros têm dois times para torcer: o de sua cidade, aos domingos, e o das telas de TV, nos campeonatos europeus aos sábados pela manhã.
O camisa 9 corintiano subverteu a lógica do jogo que ajudou a projetar. Assim como Zidane ignorou a farsa do jogo perfeito dando uma cabeçada em um zagueiro italiano na final da Copa de 2006, emprestando um ato de humanidade a um torneio que fora gelado e cartesiano como um jogo de videogame ultrapassado, Ronaldo inventou a ressurreição nesta nova ordem, e ela só pode vir depois do fracasso, fato jamais previsto nos escritórios mantidos com temperatura constante e artificial. São os fracassos de Ronaldo que o fazem ser compreendido, que lhe dão combustível, que o aproximam dos seres humanos comuns. Como a frágil senhora de longos cabelos brancos na plateia da sabatina que ao final do evento parece frustrada. "Meu filho", ela grita ao atleta, "acenda uma vela com a sua altura, eu fiz uma promessa para que você se recuperasse". "Mas eu já estou recuperado, senhora", o jogador responde, sem dar muita confiança, e com o desdém de quem não quer pagar uma promessa que não fez. São os fracassos, os tombos e a lama que tornam Ronaldo perdoável para a maioria dos seres humanos, mesmo quando ele, solenemente, os ignora.
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