<b>De costas para a ação</b><br> Fábio Sampaio, vocalista do Olho Seco, ao vivo em 1985 - Rui Mendes

Testemunha Ocular

Um dos maiores fotógrafos do Brasil viveu e registrou em imagens o nascimento e o auge do punk paulistano

Texto e fotos: Rui Mendes Publicado em 16/05/2017, às 15h24 - Atualizado às 15h44

A primeira vez que ouvi os Sex Pistols foi em 1979, quando eu era adolescente. Morava e estudava fotografia nos Estados Unidos, em Vancouver, Washington. Meu irmão trouxe para casa o disco Never Mind the Bollocks, Here’s the Sex Pistols (1977) e eu fiquei louco. Ou melhor, não entendi nada, não sabia se aquilo era sério, se era brincadeira. Na época, eu estava começando a conhecer o rock e as informações sobre o punk eram escassas. Ouvia muita música brasileira por causa dos meus pais; para mim, a virada ocorreu em 1978, quando assisti a um show do Led Zeppelin. Minha cabeça começava a mudar. Passei realmente a gostar de rock.

Voltei ao Brasil no começo da década de 1980 e fui morar em Campinas, interior de São Paulo. Já fotografando profissionalmente, fui trabalhar em um jornal local cobrindo eventos sociais. Algum tempo depois, vim para São Paulo para estudar na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Eu mais fazia política do que estudava. Na época, conheci o jornalista José Augusto Lemos, que me explicou de fato quem eram os Sex Pistols, quem era o empresário Malcolm McLaren, o que representava o som, a imagem e a atitude daquelas pessoas. Outros tempos chegavam à juventude da cidade. Foi quando o pessoal passou a deixar as sandálias de couro de lado e a adotar os coturnos.

Para documentar a cena, o Zé Augusto criou a Pipoca Moderna, uma revista de música que infelizmente só durou duas edições. Eu estava começando a trabalhar com fotografia musical. Ele me chamou para fazer os cliques de uma matéria sobre o movimento que se iniciava por aqui. Iria juntar As Mercenárias, o Ratos de Porão e o Ira! (a banda ainda era punk, não rolava aquele lance mod). Bom, fiz as fotos, só que o pessoal da Pipoca não conseguiu mais patrocínio. A revista fechou, a pauta miou, mas fiquei amigo dos músicos.

Na ECA, eu fazia parte de uma chapa estudantil anarquista chamada Os Picaretas. A turma de lá ouvia punk, tinha gente como o [jornalista] Mário César Carvalho, que já usava moicano e jaqueta de couro com tachinhas. Fizemos A Festa do Gato Morto para sacanear com o pessoal da Libelu, o movimento estudantil Liberdade e Luta, com tendência trotskista, que tinha como símbolo um gato. Chamei As Mercenárias, Ratos de Porão e Ira! para tocar no evento. O pagamento foram as fotos que eu tinha feito – eles poderiam ficar com o material e usar para o que quisessem. Mas o pau comeu feio. Vieram os punks de Osasco, que arrumaram briga com os paulistanos. Virou um cenário de guerra. Meu carro virou ambulância – eu pegava as pessoas feridas e levava para o hospital da USP para fazerem os curativos.

Depois disso, comecei a frequentar locais como Napalm, Madame Satã e Carbono 14. Fiquei amigo do pessoal da linha de frente do punk de São Paulo, como João Gordo, o falecido Redson Pozzi (Cólera), Clemente e Kraneo, um rapaz negro que era um punk lendário, que também já morreu. Eles frequentavam principalmente os clubes do centro da cidade. Havia também um grupo mais radical e barra-pesada que se concentrava principalmente no ABC e nos bairros do extremo da zona norte de São Paulo. Eles tinham bandas que tocavam basicamente em clubes e sindicatos e só eram conhecidas na região em que moravam.

Quando eu já estava bem integrado ao movimento, aconteceu o histórico festival O Começo do Fim do Mundo, no Sesc Pompeia, em 27 e 28 de novembro de 1982. Veja bem: ainda estávamos na época do governo militar. Ninguém entendia o punk, muito menos a polícia, é claro. Os punks sempre levavam tapa na cara, chute na bunda, rolava um esculacho geral. Então, o gueto foi ao Sesc. Juntou todo mundo – imagina, tinha centenas de caras, vindos de todas as partes da cidade e de municípios vizinhos. A treta ocorreu no segundo dia. A vizinhança ficou assustada com aquele monte de gente de coturno, com cabelo estranho, e chamou a polícia. Eu cheguei e já tomei uma bomba de gás na cara. Caos total. Mas o que mais lamento é não ter levado a câmera. Foi uma confusão, era como se fosse uma passeata sendo dispersa. Levaram uns 30 caras para a delegacia. O rolo foi parar até no Jornal Nacional.

Por outro lado, apesar de toda a confusão, a cena punk, que até então era muito underground, começava a ter alguma visibilidade. Agora, as bandas tinham acesso aos estúdios e lançavam discos por selos independentes. O Inocentes e As Mercenárias até foram contratados por uma grande gravadora, a Warner. Havia muitos shows. Fui a apresentações importantes e fiz fotos de todo aquele pessoal no palco e fora dele. Alguns desses shows foram memoráveis, como um que aconteceu no Tuca [Teatro da Universidade Católica de São Paulo] em 1985, depois que o teatro havia passado por dois incêndios no ano anterior. E teve um outro festival no Sesc, com o Kid Vinil apresentando (ele teve um passado punk tocando no Verminose). Em muitos shows, os caras não gostavam da presença de “mauricinhos” ou de quem não fizesse parte do movimento. Eu nunca tive problemas, já que, àquela altura, conhecia todo mundo. E muitas vezes estava nos lugares a trabalho, então havia uma relação de respeito.

O principal point punk em São Paulo era o Madame Satã, uma casa noturna localizada na região do Bixiga. Tinha muita encrenca por lá. Quer dizer, não dentro da casa, mas do lado de fora sempre havia alguma briga feia dos punks com o pessoal do metal e, principalmente, com os carecas. Muitos falam que os skinheads eram neonazistas, mas, na verdade, naquele tempo, eles não tinham ideologia. Eram só uns caras folgados e malhados que iam lá para bater nos punks e obrigar os desavisados a pagar bebida para eles. O problema é que começaram a rolar tiroteios – teve até morte. O Satã fechou e os punks sumiram da região.

O punk ainda rolou bem pelos anos 1980. O declínio começou lá pelo começo dos 1990, na época do Plano Collor. Foi o começo do desmonte da cena rock brasileira. Com isso, o punk original foi junto. O pessoal mais conhecido se virou, tocando em festivais fora do Brasil. O Cólera estava sempre na Europa. Houve uma época em que o João Gordo e o Ratos passavam pelo menos três meses fora do país excursionando.

Em 2013, eu mexi novamente no meu arquivo para poder elaborar uma exposição sobre o punk aqui em São Paulo. Felizmente, não perdi nada. Tenho tudo preservado. Fiquei surpreso com as coisas que fui descobrindo, principalmente registros de shows dos quais eu nem lembrava mais. Ainda tenho muitas caixas de negativos para mexer. Produzi demais naquela época. É toda uma história do movimento, que ainda está sendo contada e redescoberta.

Hoje, fico pensando por que o punk brasileiro floresceu principalmente em São Paulo e nem tanto no resto do Brasil. Havia um clima para isso na metrópole. O punk preencheu uma lacuna importante, dando um contexto para quem vivia na periferia. Era uma garotada fodida, pobre ou de classe média baixa. Mas era paradoxal: o punk também interessou a quem estudava em boas escolas. Afinal, para conhecer a cena gringa, era preciso ter condições para pesquisar e frequentar as lojas que importavam os discos – que eram difíceis de conseguir – ou ter contato com alguém que possuía algum material. De alguma forma, a informação circulava. No final das contas, acho que o punk aconteceu aqui porque havia um clima operário e uma molecada com sangue nos olhos querendo ter alguma coisa que a representasse.

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