Roger Daltrey fala do The Who como a "melhor banda de rock de todos os tempos" - nas palavras dele mesmo
Gastão Moreira Publicado em 09/01/2008, às 11h08 - Atualizado em 22/01/2008, às 19h41
Após lançar seu primeiro disco em 24 anos (Endless Wire) e passar os últimos meses em turnê mundial, o The Who voltou aos holofotes. O motivo da vez é o recém-lançado DVD duplo Amazing Journey - The Story of The Who, um documentário-antologia que relembra quatro décadas da história do quarteto britânico com entrevistas, depoimentos de fãs famosos e trechos raros de shows. De sua casa, em Londres, o vocalista Roger Daltrey falou sobre o lançamento (o qual não assistiu), relembrou a sensação de nadar em uma banheira cheia de feijões, discutiu suas influências e especulou sobre a tão aguardada passagem pelo Brasil em 2008.
Eu assisti a Amazing Journey e fiquei emocionado. Quais são suas impressões sobre o documentário?
Para falar a verdade, eu nem assisti ao DVD.
Resistiu à curiosidade?
Não preciso assistir, eu vivi aquilo tudo [risos]. Confiei nos diretores quando eles se propuseram a fazer um documentário sobre o The Who, e sei que eles fizeram um bom trabalho. Se eu assisti-lo, vou me concentrar na minha parte e vou perder a coisa como um todo. Prefiro manter na memória a minha versão da história.
Deve ser estranho assistir à sua carreira inteira resumida em duas horas...
O DVD foca grande parte da minha carreira, e foi uma tentativa dos diretores de resumir em duas horas o que levou 43 anos para ser feito. É um ótimo documentário para os novos fãs saberem como chegamos até aqui. É assim que julgo o filme como obra de arte.
Acho que esta é a primeira vez em que a história da banda é contada na tela. As tentativas anteriores como The Kids Are Alright foram mais compilatórias, certo?
The Kids Are Alright funcionou como um fanzine. Alguns fãs queriam registrar em filme o que o The Who significava para eles. Não tinha uma linha narrativa, era mais uma colagem anárquica de imagens. É um filme maravilhoso, mas não visava contar a história do The Who.
Em Amazing Journey é fácil notar que você é uma pessoa humilde, mas também é um cara durão, bom de briga. Estou certo?
Ninguém é durão quando envelhece [risos]. Investi no meu lado casca grossa quando era mais novo e batia bem da cabeça [risos]. O mais importante é que procurei manter os pés no chão. Tentei fazer parte do mundo da música sem me envolver muito, e sempre respeitei as pessoas que trabalharam comigo. Procurei manter meus pés exatamente onde estavam quando trabalhava dez horas por dia numa fábrica.
Seu primeiro emprego foi nesta fábrica?
Foi. Trabalhei com chapas de metal por cinco anos.
Você gostava desse trabalho?
Guardo esta época com um carinho especial. Lá eu fiz minhas primeiras guitarras e também grandes amigos. Era como pertencer a um grupo, só que a gente marretava chapas de metal ao invés de quebrar os instrumentos [risos].
Você rachava os custos dos instrumentos destruídos a cada show? Um microfone é bem mais barato que uma bateria...
A banda toda arcava com os custos, e por isso estávamos sempre no vermelho. Às vezes faltava dinheiro até para comer decentemente, mas eu faria tudo de novo.
Você começou na guitarra, fazia os solos no The Detours [banda pré-The Who]. Por que nunca tocou no Who? A grande maioria das bandas da época tinham dois guitarristas.
Minhas mãos estavam constantemente com cortes e bolhas por causa do meu trabalho. Bater em chapas de metal era incompatível com tocar guitarra. Foi uma coisa que aconteceu devido às circunstâncias da minha vida na época. Mas tenho tocado bastante guitarra ultimamente.
Além de guitarra, você ainda toca gaita?
Eu gosto muito de gaita, foi um instrumento natural para mim. A gaita sempre me remeteu ao blues americano, que é parte essencial das minhas raízes musicais. O blues foi o primeiro estilo no qual eu encontrei minha própria expressão, ao invés de apenas me limitar a copiar discos alheios.
O que aconteceu com a música inglesa no final dos anos 50? Parece que toda sua geração estava mais sintonizada na música americana...
Todo mundo estava mergulhado na música negra americana. A Inglaterra vivia seus dias pós-guerra. Se você saca a Inglaterra, sabe que nós temos um sistema de classes sociais bem rígido, algo como o sistema de castas na índia. Você não consegue comprar um lugar numa classe mais alta que a sua. É muito ruim estar do outro lado da cerca. Nós éramos da classe operária, ingleses pobres, entendíamos perfeitamente o que os negros americanos sentiam e como eles eram tratados pelos brancos na época. Foi na música que eles conseguiram desabafar as frustrações. Nós ouvimos por aqui e falamos: "Uau, esses caras sabem como a gente se sente!" Nos tocou na hora.
Você também gostava de Elvis Presley...
Elvis era o cara que eu queria ser. Sonhava em poder viver como ele, ganhar a vida com música e cinema.
Tinha alguém inspirador na música inglesa nessa época?
No meio dos anos 50, tinha um cara chamado Lonnie Donegan. Ele aprendeu o folk tradicional americano, o incrementou à sua maneira e criou o "British Skiffle", que era basicamente violão, contrabaixo de cabo de vassoura e tábua de lavar roupa. As músicas eram bem simples, não mais que três acordes, e davam conta do recado. Esta versão inglesa do skiffle influenciou várias bandas da minha geração. Com Lonnie Donegan, eu também vislumbrei aonde poderia chegar, aprendi a ter liberdade nos vocais e perder o medo de cantar. Lonnie não se preocupava com a afinação perfeita, ele simplesmente lançava seus vocais destemidamente. Esse foi o inglês que me inspirou.
Ele nunca ficou muito famoso, certo?
Ele foi grande na Inglaterra e chegou a ter destaque na América. Por um curto período, ele foi bem famoso.
Por que o mercado americano era tão importante para as bandas inglesas?
Nós crescemos numa Europa pós-guerra e a visão não era muito boa. Pelos noticiários, nós achávamos que os americanos eram felizes e tinham tudo. Então era natural querer se dar bem na América, porque lá se podia ter tudo. Além de ter sido de lá que vieram nossas maiores influências musicais.
Qual foi o papel das rádios piratas para a cena inglesa dos anos 60? Elas fizeram mais ou menos o papel de uma internet?
As rádios-piratas foram fundamentais para nós. Elas criaram uma atmosfera de liberdade que a internet é incapaz de reproduzir. Mas o mais importante é que os DJs eram 100% fãs de música e foi por causa desse amor pela música que as rádios piratas só trouxeram benefícios para as bandas.
Como funcionavam essas rádios?
Eram rádios ilegais que transmitiam de barcos no alto-mar, milhas fora do alcance territorial inglês, e transmitiam música que não era tocada nas rádios. E é claro que para os jovens, o ilegal é muito mais atraente [risos].
Vocês foram considerados mods no começo dos anos 60, mas os mods tinham cabelo liso e franjinha. Era difícil ser um mod de cabelo encaracolado?
Era complicado! Era como ter uma doença infecciosa ou algo parecido [risos].
Mods e roqueiros não se entendiam muito...
Eu era um roqueiro de origem, tinha moto, topete e jaqueta de couro. Mas a cena mod estava muito mais interessante para as bandas, apresentava mais oportunidades. Era algo que estava evoluindo e poderia nos render bons frutos.
Depois você deu uma boa mudada no visual, os cabelos cresceram, as roupas mudaram. O que impulsionou esta mudança?
Eu conheci minha esposa, que me incentivou a ser eu mesmo [risos]. Somos casados há 36 anos, mas vivemos junto há 40.
Isto é raro no meio musical. Deve ser dureza ser esposa de um rock star.
Ela sabe bem como funciona minha profissão.
Na capa de The Who Sell Out [1967], você está submerso numa banheira de feijão em lata. É verdade que você pegou pneumonia durante essas fotos? Você processou a gravadora?
Era mais fácil a gravadora me processar [risos]. Fiquei doente logo depois da sessão e foi difícil me curar. Nada bom para um cara que vive da voz.
Muitos cantores não gostam da própria voz. Como você se sente em relação à sua?
Eu não gosto da minha voz, nem gosto de me ver em filme [risos].
Você é considerado um dos maiores vocalistas do rock, como pode falar isso?
Elogios não me fazem gostar da minha voz. Eu acho que é o instinto natural humano, escutar-se numa fita e falar "minha voz é assim?" [risos] Quando ouço meus discos, fico pensando naquilo que fiz errado, é desconfortável. Tem algumas músicas em que sinto que fiz um bom vocal, mas isso não quer dizer que tenha gostado da minha voz. Uma das minhas cantoras favoritas, Edith Piaf, disse que para conseguir cantar, ela tinha que incorporar a canção. Tento fazer o mesmo, me concentro muito na intenção ao cantar, destaco as coisas que me tocam na letra.
Tommy foi lançado em 1969 e foi bem recebido. Qual a importância de Tommy para sua carreira?
Tommy foi definitivo. Em 1965, fui mandado embora da banda por causa de uma briga feia com [o baterista] Keith Moon. Depois de dois meses perdido na vida, fui chamado de volta ao Who, sob a condição de nunca mais brigar [risos]. Psicologicamente, fiquei meio inseguro. Pete [Townshend] compôs canções mais elaboradas como "I'm a Boy" e "Pictures of Lilly", e eu tive muita dificuldade em encontrar minha voz para elas. Eu era um vocalista no limbo, minha voz parecia milhas distante. Na época funcionou, mas tive que passar por um inferno pessoal. Só melhorei durante as gravações do Tommy. Me senti novamente em casa depois de quase três anos ignorado pelo resto da banda e aprendi a lidar com as coisas de uma maneira diferente. Quando levamos Tommy para o palco, a coisa fluiu muito bem. Ali descobri quem eu era e para onde estava indo. Foram três anos complicados. Poderiam ter sido os melhores anos da minha vida, mas eu me sentia miserável. Hoje, vejo que foi um período fantástico.
Você fez cinema e TV, papéis bacanas como Mcvicar, Lizt, Tommy e até participou do seriado CSI. Quando você começou a atuar?
Tudo começou com as filmagens de Tommy. Foi a primeira vez que atuei para valer. Depois de Tommy, emendei alguns filmes e percebi que há muito o que aprender. Com o tempo fiz um pouco de tudo. Fiz Shakespeare para TV, participei do CSI, fiz teatro e tudo tem sido muito prazeroso. Me sinto muito confortável atuando.
Vocês participaram do projeto televisivo Rock'N Roll Circus, ao lado de Rolling Stones, John Lennon, Eric Clapton, que nunca foi para o ar porque Mick Jagger não curtiu. Você gostou do resultado final?
Nosso envolvimento foi mínimo. Rock'N Roll Circus foi um show organizado e produzido pelos Rolling Stones para um especial na [emissora inglesa] BBC. Vejo várias falhas no projeto, mas é muito legal ver todo mundo tão jovem. Ao mesmo tempo, é triste ver camaradas que se foram, como Brian Jones. Brian era um grande amigo e já estava bem mal na época. Foi sua última apresentação com os Stones.
Você é amigo dos outros Stones?
Eu era amigo do Brian. Conhecia os outros, mas não posso dizer que éramos amigos. Brian era bem chegado.
O The Who tocou no festival de Woodstock, mas parece que você não gostou da apresentação. O que aconteceu?
Eu realmente não gostei da nossa apresentação, na época foi apenas mais um show. Nos convidaram para tocar e a gente foi. Esperamos sete horas para subir no palco e estávamos todos cansados na hora da apresentação. Não foi um show memorável para mim. Achei os shows que fizemos no Fillmore West, em San Francisco [Estados Unidos], muito mais legais.
Em 1976, os punks dominaram, ameaçaram o rock, mas respeitavam o The Who. O que você achou da explosão do punk?
Eu achei interessante. Gostei da energia, foi um pé na bunda de todo mundo. Foi bom para as bandas saberem que tinha algo novo no pedaço. Só lamentava o fato deles não quererem aprender a tocar direito. [Risos] Alguns tocavam bem, como os caras do Clash. Em 1982, fizemos vários shows nos Estados Unidos com o Joe Strummer e o Clash, e foi uma boa experiência. Acho o punk muito mais interessante do que os anos 1990. Só agora que a indústria da música está retomando o rumo.
Alguma banda nova lhe chamou a atenção recentemente?
Algumas se destacam: Razorlight, Kaiser Chiefs, Franz Ferdinand e o Muse. Há toneladas de novas bandas boas por aí.
Há uma cena musical no Brasil muito influenciada pelo The Who...
Nós vamos tocar aí um dia, tomara que seja no ano que vem. Quase estivemos no Brasil, mas nosso custo operacional era muito caro e o show ficou inviável. Eu e o Pete só precisamos das nossas almas, das nossas guitarras e dos amplificadores para tocar! Quem se importa com os telões? [risos] Mas não é assim que a coisa funciona.
Quanto custa um show do The Who?
É algo bem caro. Fizemos trinta shows na Europa em 2007 e nosso lucro foi baixo, apesar das casas cheias. Os seguros exigidos depois dos atentados de 11 de Setembro são astronômicos, é um saco. Eu me lembro quando éramos apenas quatro caras, instrumentos, dois amplificadores e uma bateria, e era mais do que suficiente.
Quando vi vocês em 1989, havia umas quinze pessoas no palco. O Who voltou a ser um quarteto?
Isto ocorreu devido à insegurança do Pete Townshend quanto aos rumos da banda. Hoje o Who se resume a seis pessoas no palco, e é isso aí.
O mais recente álbum, Endless Wire, me parece inspirado, recheado com algumas boas canções.
Endless Wire é um álbum incrivelmente maduro. Espero que nossos fãs conectem com ele. É um "slow burn", é um CD para ser consumido devagar. Não tem músicas que chamam a atenção de imediato. Mas se você escutá-lo algumas vezes, vai achar cada vez mais interessante, porque ele fala ao seu subconsciente. As letras são muito intensas.
Qual é o seu álbum preferido do The Who?
Em um primeiro instante, talvez seja o The Who Sell Out. Mas se eu for considerar o clima no estúdio e o jeito que gravamos, escolho o Who's Next. Não foi um grande hit na época do lançamento, mas com o tempo provou ser nosso maior sucesso. Outro que não posso ignorar é Who Are You, lançado em 1978.
The Who é a banda definitiva do rock?
Yeah! Nós fomos a melhor banda de rock, assim como o Stones foi a melhor banda de rock'n roll, o Zeppelin foi a melhor de heavy metal e o Pink Floyd foi a melhor de progressivo. O Beatles, é claro, foi a melhor banda pop. Esta é minha versão do que foi o melhor. E tem uma coisa maravilhosa a respeito dessas bandas que citei, elas eram incrivelmente distintas, eram diferentes de tudo que se fazia na época. Nunca mais vai haver nada igual.
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