Ilustração - Breno Tamura

Um Corpo para Velar

A incansável luta de uma mãe em busca do filho assassinado e enterrado como indigente joga luz sobre os abusos da polícia e o descaso do poder público

Igor Ojeda e Tatiana Merlino Publicado em 11/06/2013, às 15h13 - Atualizado às 15h13

Dona Eliana estava nervosa. Levantava do sofá, saía, fumava, voltava, sentava, fumava, voltava, sentava. Já fazia mais de uma hora que o funcionário do Instituto Médico Legal havia deixado ela e o irmão sem respostas, em uma espera insuportável.

“Queria saber se tem algum desconhecido aqui”, o irmão dela questionou, ao chegarem ao local.

“Tem. Vários”, respondeu o homem.

“É que meu sobrinho desapareceu e a gente está procurando por ele.”

“Qual foi a última vez que ele foi visto?”

“Dia 2.”

“Sumiu no dia 2 e só agora vocês vêm procurar? Peraí, vou mostrar as fotos e vocês veem se em alguma delas é ele.”

Yan tinha 19 anos e não voltava para casa havia 26 dias. Mas o funcionário desapareceu. Voltou uma hora e meia depois, com uma lata de Coca-Cola na mão. Tinha ido almoçar.

“Ah, vocês estão aí. Querem ver as fotos, né?” Ligando o computador com dificuldade, ele repetiu a pergunta inicial: “Quando ele foi visto pela última vez mesmo?” Abrindo a pasta “Junho”, começou a mostrar as fotos.

Na quinta imagem, o irmão de Eliana exclamou:

“Meu deus do céu!”

Ela olhou para a foto e viu que parecia Yan, morto,

de olhos abertos. “Não é ele. Não é ele!”, gritou.

Com a foto ampliada, reconheceram a marca de infância no pescoço: era ele mesmo. A mãe entrou em desespero. Olhou a outra foto e identificou o brinco com o desenho do personagem Bob Esponja, que ele usava quando desapareceu.

“Foi troca de tiros com a PM. Resistência seguida de morte”, informou o funcionário do IML. No documento que correspondia ao cadáver, havia a descrição de três tiros: um na virilha, outro nas costas e o terceiro no peito.

“Bom, como fazemos para liberar o corpo?”, perguntou então o irmão de Eliana.

“Não dá, ele já foi enterrado.”

“Como assim, foi enterrado?”

“Sim, no dia 18, como indigente.”

Começava então a segunda parte do martírio de Eliana Monteiro de Freitas. A primeira havia se iniciado em uma segunda-feira, 2 de junho de 2008, quando Yan Soares dos Santos saiu do apartamento onde morava com a mãe e os irmãos em Embu (SP) e não voltou. Como o jovem era usuário de drogas e às vezes dormia fora, Eliana achou que ele apareceria na manhã seguinte. Não apareceu. Nem na quarta nem na quinta. O filho nunca havia demorado tanto para retornar.

Na sexta, Eliana começou a telefonar para parentes e amigos que pudessem ter visto ou recebido a visita de Yan. Foi a hospitais, IMLs, delegacias. “Depois de uma semana procurando-o, eu disse para minha filha: ‘Acho que esse menino está morto’”, ela relembra, sentada na sala de casa. Em uma das idas ao IML do Hospital das Clínicas, três semanas depois, uma funcionária lhe indicou o IML Sul, no bairro do Brooklin. Foi onde descobriu que o filho estava morto e que tinha sido sepultado como indigente. “Mataram o meu filho e ainda tiraram meu direito de enterrá-lo”, ela lamenta.

Mas Eliana não sofreu calada. Em novembro de 2012, por meio da Defensoria Pública estadual, ela entrou com um processo judicial por danos morais contra o estado de São Paulo. A ação pede uma série de reparações financeiras, referentes às violações que o poder público paulista teria cometido contra a mãe de Yan. Entre elas, além da negligência pela não identificação do cadáver e a negação do direito da mãe de velar e enterrar o próprio filho, está a subtração do direito à verdade. Pois quem de fato levou adiante uma investigação sobre a morte de Yan foi a própria Eliana. E ela tem certeza: o filho foi executado pela PM.

O Boletim de Ocorrência do caso, lavrado no 1º Distrito Policial de Taboão da Serra, diz que o “desconhecido” foi baleado no mesmo dia em que desapareceu, 2 de junho de 2008, na rua Adriano Félix, por policiais das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, a Rota. Yan teria praticado um roubo a um posto de gasolina no bairro do Campo Limpo e, após denúncia da vítima, os policiais teriam localizado uma pessoa semelhante à descrita que, “ao avistar a viatura, efetuou disparos na direção dos policiais. Temendo por sua integridade, os policiais militares revidaram e atingiram o roubador. Imediatamente o socorreram ao Hospital do Campo Limpo e, não tendo resistido aos ferimentos, faleceu”.

A descrição oficial do ocorrido chama a atenção para a extrema semelhança com inúmeros casos de “resistência seguida de morte” em São Paulo, denunciados como execuções de jovens negros e pobres pela Polícia Militar. A atuação incansável de familiares de vítimas e militantes de direitos humanos teve resultado: desde dezembro de 2012, essa caracterização se tornou proibida de constar dos boletins de ocorrência – em vez disso, deve ser escrito “homicídio decorrente de intervenção policial” ou “lesão corporal decorrente de intervenção policial”.

O segundo périplo iniciado por Eliana – o primeiro havia sido a procura de notícias sobre o paradeiro de Yan – estava longe de se resumir à busca pela verdade sobre a morte do filho. O desespero dela foi também para encontrar um corpo para velar e enterrar.

O primeiro passo foi ir atrás da certidão de óbito de Yan. No cartório, com um número de protocolo obtido no IML Sul, Eliana conseguiu o documento, que indicava que o filho havia sido enterrado no Cemitério Municipal Dom Bosco, no Distrito de Perus (zona norte de São Paulo) – o mesmo onde costumavam ser sepultados os desaparecidos no período da ditadura civil-militar (1964-1985).

As demais informações contidas na certidão, no entanto, não correspondiam à realidade. A data da morte assinalada era 4 de junho, quando na verdade o rapaz fora assassinado dois dias antes. Mas o pior era a estimativa de idade: 40 anos.

“Este não é meu filho”, ela afirmou ao funcionário do cartório.

“Mas esta é a certidão do número que a senhora me deu”, foi a resposta. Não havia a quem recorrer.

Em seguida, Eliana foi para o Hospital Municipal do Campo Limpo, para onde Yan foi levado após ser socorrido – de acordo com o boletim de ocorrência, ainda com vida. Lá, conseguiu o “aviso de óbito” do filho, que continha a anotação, feita por uma enfermeira, de que o jovem chegou ao local já morto, e de que o corpo havia sido inspecionado pelos policiais, que levaram as roupas e os sapatos dele. “Também questionei por que o levaram ao Hospital Campo Limpo [a 4,6 km de distância do local do tiroteio] e não ao Pronto Socorro da Antena [em Taboão da Serra, a 2,9 km]”, diz a mãe.

Com os cabelos curtos, pele negra e olhos grandes e escuros, Eliana nunca deixou que a dor da perda a paralisasse e a impedisse de buscar a verdade. Mas, se durante o dia ela ia atrás dos órgãos públicos à procura de informações e esclarecimentos, à noite dormia no sofá da sala, com a luz apagada e a televisão com som baixo, na esperança de que o filho voltasse, subindo “de dois em dois” os degraus do prédio do conjunto habitacional onde morava. “Foram três meses assim”, ela diz, mantendo a fala firme. “Vocês não sabem o que é a dor de não ter enterrado meu filho.” Quatro meses após descobrir que Yan estava de fato morto, e diante das incongruências a respeito do caso, Eliana decidiu registrar denúncia na Corregedoria da Polícia Militar.

“O que a senhora está dizendo, que ele foi assassinado?”, questionou um dos policiais responsáveis pelo caso.

“Sim, é mais ou menos isso.”

“A senhora sabe que essa é uma acusação muito séria e que pode incorrer em consequências?”

“A consequência maior disso tudo é meu filho estar morto”, ela retrucou.

Menos de dois meses depois, a Corregedoria concluiu que não houve irregularidade na atuação da PM e arquivou o procedimento administrativo.

“Eles te tratam como um verdadeiro idiota. Se veem um negro, então, acham que não tem conhecimento de nada”, Eliana desabafa. “Meu filho era dependente químico, tinha muitos problemas, cometeu um assalto. Mas nada justifica o terem matado. Ele tinha de ter sido preso, e ponto. A Rota não é paga para matar. Eles têm de ser preparados para imobilizar uma pessoa sem matá-la.”

Eliana descobriu que Yan era usuário de drogas um ano e meio antes de ele morrer. “Começou com maconha, e no fim acho que estava usando crack”, diz, garantindo que tentou “de tudo” para recuperar o filho, que costumava passar dois ou três dias fora de casa.

O jovem chegou a ser internado em uma clínica para dependentes químicos e, um tempo depois de sair, assaltou uma padaria. Acabou preso por quatro meses, sendo libertado em 15 de maio de 2008. Em 2 de junho, Eliana despediu-se dele antes de ir trabalhar.

Ela nunca mais o viu com vida.

Com o arquivamento do processo na Corregedoria, Eliana procurou a Ordem dos Advogados do Brasil e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, para obter ajuda no pedido de retificação da certidão de óbito e de realização de exame de DNA nos restos enterrados no Cemitério Dom Bosco. Ficou mais de quatro anos sem ter um túmulo sobre o qual chorar até que, em setembro do ano passado, ocorresse a exumação e a coleta de material genético. No início de 2013, veio a confirmação: o corpo sepultado era mesmo de Yan Soares dos Santos. “Agora, minha luta é para que os responsáveis pela morte dele sejam punidos”, ela diz. Sobre a ação por danos morais contra o estado de São Paulo, Eliana é definitiva: “O que menos me interessa é o dinheiro. Nada paga a vida dele. Eu quero é justiça”.

A defensora pública Daniela Skromov, do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos do estado, lista as irregularidades e falhas na investigação: o inquérito policial sobre o caso, arquivado em 2009, não teria levado em consideração os antecedentes dos agentes da Rota envolvidos, o resultado negativo do exame residuográfico de disparo nas mãos de Yan, a suspeita de ele ter chegado morto ao hospital e também o fato de não ter sido levado ao posto médico mais próximo. Daniela destaca também que não se preservou a cena do crime e que nenhum dos policiais foi ferido – tampouco a viatura apresenta marcas de bala. Além disso, é notável o fato de que o laudo necroscópico descreve três tiros, dois deles em região vital, sendo um de cima para baixo, o que poderia ser indício de execução. “Isoladamente, todas essas questões não são provas absolutamente cabais”, ela afirma, “mas são indícios que, somados, deveriam levar pelo menos à convicção para a instauração de um processo criminal”.

Daniela chama ainda a atenção para a flagrante negligência do Estado em relação à identificação do corpo de Yan e a posterior notificação da família. “Seria algo absolutamente simples, porque ele tinha RG de São Paulo. Bastava simplesmente colher as digitais e bater com o IIRGD [órgão de identificação da Polícia Civil], que tem plantão de 24 horas”, a defensora explica, alertando que o caso aponta para a hipótese de haver muitos outros semelhantes. “Pode ser que haja outras pessoas com o RG de São Paulo, identificáveis civilmente de maneira simples, que tenham sido enterradas como indigentes. Não fosse a insistência da dona Eliana, esse seria o caso do filho dela.”

Por sua vez, Eliana diz que muitos ainda tentam demovê-la da missão. “Dizem assim: ‘Ah, deixa isso pra lá’. Eu sei que se não tivesse feito tudo isso, meu filho estaria desaparecido. Mas é por isso que este país está assim – porque as pessoas deixam tudo pra lá.”

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