Alheio ao sucesso, CRIOLO começa a sentir os efeitos de uma carreira promissora que já extrapola o universo do rap
Gustavo Silva Publicado em 08/08/2011, às 13h48 - Atualizado em 17/09/2012, às 14h57
"Aqui tem um bando de louco, louco por ti, Corinthians." O chamado às armas da torcida ecoa algumas vezes por um Pacaembu que, apesar do frio invernal da noite de quarta-feira, reúne uma massa de quase 30 mil alvinegros, divididos entre vascaínos de um lado e os torcedores do clube mandante em 90% do estádio. Andrés Sanchez, presidente do Corinthians, cara de poucos amigos, fuma um cigarro atrás do outro a cinco bancos de distância. Adriano, o Imperador sem trono, sem jaqueta e sem frio, também está na área reservada - e demarcada como tal nos assentos - à comissão técnica. Ao meu lado, está um dos loucos do bando. A jaqueta bordô do Timão o protege da baixa temperatura e cobre a camisa do time que ganhara de presente da Nike pouco antes, personalizada com um nome: Criolo.
Os figurões parecem não chamar a atenção dele. As reações ao jogo são contidas. As palmas são batidas de forma quase aristocrática e, emulando um técnico com os movimentos, indica para onde os jogadores deveriam se deslocar em campo, tocar e receber - mas tudo de forma sutil. Algo parece conter Criolo que, em um passado não muito distante, aquecia-se para os jogos em frente ao estádio com duas maria-moles (uma bebida de boteco, mistura barata de conhaque e Contini), churrasquinho e pernil.
"Hoje, o dia é dele", ele aponta para o pai, sentado ao nosso lado. Seu Cleon, cabelos brancos, barriga da vivência de 61 anos, "um negro lindo, de traços fortes", segundo o próprio filho, é um homem de poucas palavras, seguro de si e dono da situação. Ele também veste a camisa com o nome artístico do filho Kleber Cavalcante Gomes nas costas, assim como uma funcionária da Nike, que modificou o gênero da palavra e tornou-se a "Criola". "As pessoas às vezes vão aos shows e pintam as camisas com meu nome. É uma corrente do bem", o rapper diz, emendando uma de suas expressões recorrentes: "É muito louco isso tudo".
"É digno? Não é fruto de roubo ou de sacanagem? Então eu aceito a ajuda", Criolo reflete sobre a própria situação atual, contando com suporte em diversas frentes. A dentista - que lhe extraiu os dentes do siso e um molar podre - cobrou apenas o valor do material utilizado. O apartamento onde mora (pelos próximos 30 dias) no luxuoso bairro central de Higienópolis é de uma amiga, que o convidou para partilhar a residência sem custos. A assessora de imprensa se encantou de tal forma com o trabalho dele que quis agenciá-lo, mesmo que não recebesse por isso.
No campo, o goleiro Julio César está solidário aos adversários. Toma um gol no primeiro chute, mas o Corinthians vira o jogo e faz dois antes dos primeiros 45 minutos. O arqueiro continua a dar sustos e emoções no segundo tempo, mas a vitória vem, junto com a liderança do campeonato. Com razão, Criolo havia profetizado, como corintiano legítimo e como artista na estrada há 23 anos: "Vai ser sofrido".
Em um primeiro momento, há muitas semelhanças entre o papo de Criolo e o de um jogador de futebol. Apesar de nunca começar uma frase com a expressão "com certeza", a preferida dos boleiros em entrevistas, todas as respostas dele permeiam o discurso da humildade, da contribuição - modesta - ao time (no caso dele, o cenário do rap paulistano), do trabalho duro e da recusa em criticar o outro. Só que enquanto as palavras de homens que ganham mais de R$100 mil por mês soam demagógicas e intragáveis, Criolo exala uma sinceridade difícil de ser contestada, seja pelo modo carismático - não exaltado - como transmite sua mensagem, seja pelo passado (causas vitais para entender a construção de seu caráter e até mesmo de sua personalidade artística). Desde o lançamento de Nó na Orelha, seu elogiado segundo disco - a estreia veio em 2006, com Ainda Há Tempo -, a rotina de Criolo é ser artista em tempo integral, diferentemente dos tempos em que seu nome ecoava apenas na periferia do rap, quando ainda assinava como Criolo Doido e cantava ao mesmo tempo em que exercia outros "corres": ele já foi empacotador, caixa, repositor, vendedor de roupas de porta em porta, homem-placa, além de ter trabalhado durante 13 anos como professor e educador social com crianças e adolescentes. Abandonou a faculdade de artes (e, em uma segunda oportunidade, a de pedagogia) por perrengues financeiros. O dinheiro só não o deixou abandonar a música. "A gente costumava conversar com os amigos: 'Quanto é este tênis aqui? Quanto é sair pra ir na pizzaria? Não, isso dá tantas horas de estúdio'. Essa era a conta que a gente fazia", ele lembra, com um riso inocente.
Convidado a participar da edição mais recente do Rock Gol, torneio de futebol entre artistas promovido pela MTV, Criolo teve como parceiros de time os membros do Planta & Raiz, NX Zero e ForFun. Ouviu da torcida o coro de "perna de pau", ocupou o banco de reservas, mas, no último jogo, foi eleito o capitão do time. A função dele era sintomática: meio de campo. "Eu sempre fui um cara...", ele faz uma pausa por alguns segundos, desviando o olhar, em busca do melhor exemplo para se definir. "Eu era o último escolhido pra jogar bola. Eu era aquele cara nota C, aquele que não sentava nem na frente, nem no fundão. Sempre fui invisível, igual à maioria dos jovens. Eu era um comum." O rosto de traços fortes, mas sem chamativos que o tornem diferenciado, dá suporte imagético à análise. As palavras ainda ganham reforço dos versos de "Sucrilhos": "Eu sou nota 5 e sem provoca alarde / Nota 10 é Dina Di, DJ Primo e Sabotage".
Com Nó na Orelha, porém, Criolo tem, sim, provocado alarde. O álbum ganhou críticas favoráveis, o que dá fôlego para garantir vaga em listas de melhores do ano. Os ingressos para os shows de lançamento do disco se esgotaram em poucas horas - um show extra teve o mesmo destino. A música dele chegou à televisão - ele gravou com Serginho Groisman, na Globo, e também com uma equipe da rede pública France Télévisions, que produz documentário sobre a música brasileira (trazendo também depoimentos de Milton Nascimento, Lenine, entre outros). Ao lado de Emicida - de quem é amigo e com quem contracena no clipe "Então Toma" -, Criolo coloca novamente o rap sob a luz da cultura popular, um fenômeno esporádico que, no cenário nacional, teve sua maior voz na violência lírica explícita dos Racionais MC's.
Mas limitar Criolo ao rap é resumir demais a música e a pessoa. Ele sabe soar romântico e emotivo, mas também agressivo e sarcástico quando os temas pedem. Nas conversas cotidianas, a voz é de tranquilidade serena, longe do estereótipo rapper das falas carregadas de gírias. O olhar pode ser estático, direcionado ao interlocutor, acompanhado de gestos pastorais com mãos que vão e voltam ao centro do peito como se acolhessem um abraço. Mas, na praça de alimentação de um shopping, ele parece esquecer o crepe de tomate seco e rúcula que repousa na mesa durante o almoço e a mim também. Os olhos vagam pelo espaço. Está pensando em uma nova música - algo que faz "25 horas por dia". Não se trata de uma constatação por vias de observação, mas sim um fato comprovado pelo recibo do hotel que tira do casaco acomodado em seu colo. Frente e verso da folha estão cheios de versos formados por letras e traços identificáveis apenas pelo próprio autor. "Às vezes eu tenho uma ideia de uma letra, de uma melodia", explica, "e peço pra alguém o celular para poder gravar." Em uma viagem de van, no meio da madrugada, Criolo acordou Marcelo Cabral, produtor de Nó na Orelha e baixista dos shows, apenas para registrar as ideias que tinha em mente.
"Olha só, meu celular, R$ 80, parcelado", ele saca o modelo do bolso. "Não toca música; não tenho MP3; não tenho gravador; ganhei um aparelho de som há pouco tempo, mas tá estragado." Criolo ouve música o tempo todo, mas porque ela está presente em todos os lugares. Já não a escuta, como fazia antes, no ambiente familiar rodeado pela coleção de LPs dos pais e "fitinhas cassete do Scorpions, Raul Seixas, Nat King Cole", responsáveis pelas bases de sua formação cultural. Outras artes, como cinema e literatura, são secundárias - ou nem isso. "Ih, eu sou uma besta", ele responde com humor autodepreciativo quando questionado sobre seus hábitos de leitura. O tema, por sinal, é um dos preferidos da mãe do rapper. Dona Vilani, a mãe de Criolo, passa de carro em frente ao bar onde o filho escuta uma história sobrenatural de um sambista da velha-guarda contada por um amigo. Estamos no Grajaú, distrito pobre no extremo sul de São Paulo, o mais populoso da cidade, e a segunda dose generosa de maria-mole repousa na mesa de sinuca. Criolo abraça e beija a mãe e, depois de escutarem a história juntos, ganhamos uma carona para a estação de trem. No caminho, ela conta sobre o Café Filosófico (projeto da qual é mentora), cujo tema da última edição foi neurolinguística. Graduada em filosofia (ela ministra aulas da matéria em uma escola estadual) e em pedagogia,
Dona Vilani também é pós-graduada em língua, literatura e semiótica. Os livros de Foucault, Nietzsche e outros intelectuais e filósofos casca-dura espalhados pela casa denunciam a formação. A influência dela sobre Criolo é imensa - os dois estudaram juntos durante todos os anos do ensino-médio -, mas implícita: está na amplitude do raciocínio, na exposição das ideias e, como o presente demonstra, na perseverança. "Eu sou um grãozinho de areia numa praia onde tem tantos talentos, só faltam oportunidades iguais para eles mostrarem o trabalho", ela filosofa. A praia de Criolo é o rap - ou a própria vida, por associação. "Não dá pra falar da minha vida sem falar de rap, e não dá pra falar de rap sem falar de coisas da minha vida. Não é um hobby, não é uma coisa que vou fazer para 'desestressar', não é uma atividade musical que acabou dando certo. É minha vida mesmo."
O silêncio dentro da casa é quebrado por barulhos de animais - às vezes o latido do cachorro vizinho, ora passarinhos brigando no ninho do telhado. "Pra mim é uma grande surpresa tudo que tá acontecendo", diz Criolo, analisando o momento profissional. O papo se dá na escada de concreto na casa dos pais, no Grajaú, onde moram também uma irmã e o sobrinho (um irmão mora em uma casa no mesmo lote). "O tudo que, pra mim, é muito", ele completa. "Mas, para os grandes mestres da nossa música, é só um capitulozinho do que estamos fazendo."
"Mas tem verdade no que eu faço. Pode não ser a melhor coisa, mas procuro fazer o melhor pra mim, pras pessoas que me cercam, pra sociedade. O hip-hop me ensinou isso. O rap me ensinou a preocupação que se tem com aquilo que se escreve." Por isso, Criolo não teme as engrenagens do hype que articulam o pop. "Nunca fiz música pensando no financeiro", havia falado dias antes, durante o jogo do Corinthians. "É difícil encontrar alguém que acredite em honestidade musical, mas tem quem faça música, nos quatro cantos do Brasil, com o coração."
O rompimento para o estrelato ainda vem aos poucos para Criolo. As pessoas o abordam agora, com a repercussão do trabalho? "Um pouquinho. De vez em quando rola um 'escutei sua música', mas bem brando." Alguém já tirou uma foto, pediu um autógrafo? "Não, não, não rola, não." O tom da resposta é envergonhado, como se a pergunta não fizesse sentido algum em seu universo de rapper, MC e, em resumo, de artista. A humildade e a modéstia de Criolo são amparadas por uma inocência de quem não está acostumado a lidar com a música como negócio. A parte burocrática da carreira, inclusive, fica por conta de Beatriz Berjeaut, empresária dele e esposa de Daniel Ganjaman, produtor de Nó na Orelha. A residência do casal também serviu de hospedagem por alguns tempos nos últimos meses.
De volta à estação Grajaú, o trem aguarda. Criolo carrega uma mochila com algumas roupas que pegou de casa para levar para Higienópolis e um violão, que será objeto de estudo semanalmente na companhia de Marcelo Cabral. O instrumento atrai os olhares de alguns passageiros. "Ih, não tenho ritmo nem pra andar", ele resume, ao falar de suas poucas habilidades com as cordas. Entre alguns papos triviais, Criolo me pergunta: "Você, que é do meio, acha mesmo que tem alguma coisa acontecendo?"
Já no metrô, um rapaz aborda Criolo, sem saber quem ele é, apenas para conversar sobre guitarristas que utilizam as cordas invertidas - assim como Criolo, canhoto. Assim que as portas se abrem, um homem lhe estende a mão e o cumprimenta, dando parabéns pelo novo disco. Subimos as escadas, e, findado o papo entre eles, o fã se distancia.
Criolo se vira, com um sorriso. "Pô, você viu? O cara veio falar comigo sobre o trabalho. Não é muito louc..." Antes que pudesse terminar a frase, um outro rapaz, trajando agasalho do Corinthians, se põe entre nós para dar um alô, repetindo o processo acontecido há pouco. O papo é rápido, e termina com Criolo exclamando para o fã: "Vamo, Curintia!" O sorriso no rosto do rapper atinge uma nova proporção, e vem acompanhado de uma pergunta que agora ele faz a si mesmo: "Será que tem mesmo algo acontecendo?"
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