Em 1970, Bob Dylan quase afundou a carreira e a reputação com o polêmico Self Portrait. Mas as recém resgatadas sessões do álbum revelaram pérolas inéditas, que, ouvidas hoje, já apontavam para o futuro do artista
Mikal Gilmore | Tradução: Ana Ban
Publicado em 07/11/2013, às 17h27 - Atualizado às 17h46O momento que mudou tudo foi o acidente [de moto, em 1966] em Woodstock”, Bob Dylan declarou certa vez. “Um pouco depois disso, em uma noite de lua cheia, eu olhei para um matagal desolador e disse: ‘Alguma coisa precisa mudar’.”
Tudo o que Dylan tinha feito até então havia sido caracterizado com o poder da influência e do mito. Canções de cunho folk que ele lançou na primeira metade da década de 60 como “Blowin’ in the Wind” e “The Times They Are A-Changin’” tinham dado voz à frustração e à raiva relativa ao atraso nos direitos civis e ao avanço da guerra. Em 1965, a música de Dylan se tornava elétrica como um urro – “Like a Rolling Stone” carregava uma noção de raiva e abria toda uma gama de possibilidades.
A música que Dylan fez depois de 1966 era bem diferente. Uma parte desses trabalhos – os lendários Basement Tapes e John Wesley Harding, ambos gravados em 1967 – é considerada como o melhor que ele já fez. Mas o trabalho que ele lançou em junho de 1970 – o álbum duplo Self Portrait, uma coleção de canções folk, country e covers pop, com algumas faixas ao vivo – foi o mais polêmico até então. Muitos acharam que Dylan tinha desperdiçado potencial e traído os seguidores que confiavam nele. Foi o crítico Greil Marcus que também escreveu, no início da resenha mais famosa da Rolling Stone: “Que merda é esta?”
O próprio Dylan posteriormente diria a mesma coisa: que tinha feito o álbum para dissuadir aqueles que o viam como profeta, que invadiam sua vida e que exigiam que ele retornasse a causas políticas.
O recém-lançado Another Self Portrait (1969-1971): The Bootleg Series Vol. 10 oferece uma maneira diferente de ouvir aquela música. Dylan cantava sobre a busca sempre arriscada por uma nova identidade e uma nova voz. Ele parecia renunciar aos ideais de tumulto e rebelião a favor de outras verdades: idílio caseiro e tradição folk. Era a batalha de Dylan com o mundo em relação à natureza da vocação e das responsabilidades que tinha. Em 1968, ele abriu o jogo: “Eu antes achava que eu e minhas músicas éramos a mesma coisa. Mas não acredito mais nisso. Existe eu e existe a minha música”.
O período de Self Portrait de Bob Dylan segue incompreendido. No entanto, muito do que Dylan faria de maravilhoso em anos posteriores derivou desse antecedente de “fracasso”. Quer dizer, talvez não tenha sido fracasso nenhum, no final das contas. Talvez fosse melhor do que qualquer pessoa, incluindo o próprio Dylan, pudesse achar na época.
Em abril de 1969, Bob Dylan lançou o bem-sucedido Nashville Skyline, um álbum de country music tradicional em que ele exercitava a veia crooner e até fazia dueto com o amigo Johnny Cash em uma releitura de “Girl of the North Country”. Dois meses depois, Dylan retornaria ao estúdio em Nashville para a primeira das sessões de Self Portrait, trazendo consigo partituras e vários cadernos de música. “O que você acha de fazer um álbum com músicas de outras pessoas?”, ele perguntou ao produtor Bob Johnston. Johnston mais tarde lembrou: “Ele chegou ao estúdio com livros e Bíblias velhas e começou a gravar”. Dylan fez covers de músicas country e hits pop. Entre eles, “I Forgot More (Than You’ll Ever Know)” (sucesso de 1953 das Davis Sisters), “Take Me as I Am (Or Let Me Go)” (hit country de Gene Watson), “Take a Message to Mary” e “Let It Be Me” (ambos sucessos do Everly Brothers), “A Fool Such as I” (identificado com Hank Snow e Elvis Presley) e “Blue Moon” (standard escrito por Richard Rodgers e Lorenz Hart, sucesso com Mel Tormé e com o grupo de doo wop The Marcels).
Dylan então colocou de lado Self Portrait (que originalmente deveria ter o título de Blue Moon) até março de 1970. Quando o trabalho foi retomado, em um estúdio de Nova York, os interesses e estilo de cantar dele estavam mudando. O artista agora interpretava de maneira menos afetada e tinha uma ampla gama de músicas folk em mente – incluindo trabalhos de artistas contemporâneos. Exemplo disso são “Thirsty Boots”, de Eric Andersen, uma canção do tempo da luta pelos direitos civis, “Annie’s Going to Sing Her Song”, de Tom Paxton, e “Early Mornin’ Rain”, do canadense Gordon Lightfoot.
Várias das outras escolhas de Dylan remontavam a fontes antigas do cancioneiro norte-americano e britânico. “Pretty Saro” era uma canção triste que chegou aos Estados Unidos no século 18, trazida por colonizadores irlandeses-escoceses; “Railroad Bill” era uma música sobre um negro que era ladrão de trens da década de 1890 – ela veio da coleção American Songbook, de Carl Sandburg; “Tell Old Bill” era outra canção tradicional coletada por Sandburg; “Days of ’49” falava de uma história sobre a corrida do ouro na década de 1840; “Little Brown Dog” aparece como “Tattle O’Day” em Another Self Portrait. “House Carpenter” veio da coleção de baladas de Francis James Child do final da década de 1880 – Dylan já a tocava desde o início da década de 1960. Ele também gravou “Copper Kettle”, os devaneios de um vendedor de bebida ilegal.
O acompanhamento da maior parte dessas faixas, até então inéditas, como aparecem em Another Self Portrait, é cru e esparso – o violão de Dylan combinava ao instrumento de David Bromberg e ao teclado de Al Kooper, que lembra que a sessão foi curiosa. “Eu não tocava com Bob em estúdio desde Blonde on Blonde”, diz Kooper. “Por isso, fiquei feliz de ser chamado. Quando cheguei ao estúdio, foi esquisito. Ele estava com uma pilha de revistas Sing Out! e as examinava, escolhendo músicas e simplesmente gravando. Era tudo estranho. Por que o Shakespeare da composição musical está gravando canções de outras pessoas? E por que está gravando todas essas músicas folk antigas? O que está acontecendo?”
Bromberg, que estava começando a se destacar como cantor, compositor e guitarrista, enxerga a coisa de outro jeito. “Dylan estava com um monte de revistas e songbooks”, conta. “Mas só os consultava para algumas das letras. Ele conhecia as músicas: ele gostava delas. Não havia nada de experimental naquilo. Ele é mais do que um compositor. É também um intérprete brilhante – acho que talvez estivesse com saudade disso.”
As gravações em sua forma nua – como aparecem agora em Another Self Portrait – são inspiradas, passionais, obras de um cantor em um estágio diferente. Mas Dylan preferiu não lançá-las naquela forma. Tragicamente, o melhor do material ficou engavetado. As gravações de Nova York foram enviadas a Nashville por Bob Johnston para serem completadas com cordas ou seção rítmica. Dylan não participou das sessões de overdub nem trabalhou nos arranjos; tudo isso foi feito por Billy Walker, arranjador de Nashville, que forneceu arranjos sinfônicos para o som de cantores de country urbano como Eddy Arnold. As orquestrações enxertadas foram chocantes demais para um público que, até então, tinha levado os caprichos de Dylan na boa. Alguns acharam que as cordas lembravam demais o estilo de Dimitri Tiomkin (compositor de trilhas sonoras), ou de Mantovani (maestro especializado em arranjos orquestrais para música tanto popular quanto semiclássica, com cordas em profusão).
No final, quase tudo em Self Portrait incomodava: a mistura de voz suave e rude, a escassez de canções próprias de Bob Dylan – apenas cinco composições novas (duas eram instrumentais), mais quatro performances desleixadas da apresentação na Ilha de Wight. E ainda houve a decisão particularmente ruim de creditar as canções tradicionais como sendo da autoria de Dylan.
Apesar do fato de que havia um álbum notável escondido dentro dele na época, o próprio Dylan com frequência renegava Self Portrait. Em 1984, ele declarou a Kurt Loder, ex-editor da Rolling Stone EUA: “Eu disse: ‘Bom, que se foda. Eu queria que essa gente simplesmente me esquecesse’. Eu queria fazer algo de que eles não iam gostar de jeito nenhum, com o qual não pudessem se identificar. Eles vão ver, vão ouvir e vão dizer: ‘Bom, vamos passar para o próximo. Ele não fala mais aquelas coisas. Ele não nos dá o que nós queremos, sabe como é?’ Vão procurar outro”. Na biografia Crônicas, Dylan escreveu: “Eu simplesmente joguei tudo em que pude pensar na parede e lancei aquilo que ficou grudado; depois, voltei e recolhi tudo que não grudou e lancei também”. Ele também diria mais tarde que apenas tinha esquecido como compor músicas do jeito que fazia antes – chamou isso de um período de amnésia. “Nos primeiros anos”, ele disse, em 2004, “tudo era igual a um tapete mágico para mim – e então, de repente, acabou. Aqui estava esta coisa que eu passei a vida toda querendo fazer, mas de repente achei que não era mais capaz de fazer.”
Com a mudança no campo musical, também vinham novidades na vida pessoal. No final de 1969, Dylan saiu de Woodstock e transferiu a família para uma casa em Greenwich Village, em Nova York, com a porta da frente que se abria para MacDougal Street. Woodstock finalmente tinha se tornado insuportável. “Era gente que chegava sem ser convidada, assombrações, invasores, demagogos. Tudo isso estava atrapalhando a minha vida doméstica”, ele escreveu. “Nós nos mudamos para Nova York por um tempo na esperança de demolir a minha identidade, mas lá não melhorou nada.”
Dylan agora tinha um punhado de músicas – “Time Passes Slowly”, “Father of Night”, “New Morning” – que estava pensando em dar ao dramaturgo Archibald Mac-Leish para a sombria peça Scratch. Em vez disso, ele as colocou no álbum seguinte, New Morning, que começou a gravar pouco depois da finalização de Self Portrait. “Foi natural”, diz Al Kooper, que produziu o disco. “Eu apresentava os arranjos básicos. O jeito dele era calmo. As sessões eram na maior parte diurnas. Ele ia para casa para ficar com a família.”
Dylan só gravou músicas originais, e em vez de trabalhar rápido como de costume, experimentou vários arranjos. “Ele ficava mudando de ideia”, Kooper diz. “Chegou a um ponto em que tudo estava pronto, mas ele ainda precisava decidir a sequência e que versão de certa música iria usar. Eu disse: ‘Acho que o meu trabalho acabou aqui. Faça o que quiser, mas acho que você não precisa mais de mim’.”
Meses depois, em 21 de outubro de 1970, Dylan lançou New Morning. No começo, o álbum foi recebido como um retorno triunfante à forma. Uma manchete na Rolling Stone da época dizia: “Dylan está de volta!” O próprio Dylan parecia achar que o álbum tinha sido um esforço de manter a cabeça fora d’água. “Alguns críticos consideraram o álbum morno e sentimental, desmiolado”, ele próprio observou. “Bem... Claro que o álbum não tinha nenhuma ressonância específica com as amarras e pinos que prendiam o país. Nada para ameaçar o estado das coisas.”
Mas também havia um desconforto que pairava nas beiradas da música “Sign on the Window”: a afirmação de Dylan de que o amor e a família “têm que ser o centro de tudo” vinha no fim da canção ou como consolo ou dor a um homem que entendia como os sonhos mais bondosos podiam se perder com facilidade no meio da chuva. Se o acidente de Dylan tinha feito com que ele se voltasse para a família, que a apreciasse melhor, também o levou à percepção de que o selo hermético da felicidade pode não durar. Coincidência ou não, ele e a esposa, Sara Lowndes, protagonizaram um divórcio amargo na década de 70.
No final de 1971, as exigências relativas a quem Bob Dylan devia ser e ao que ele devia fazer ainda não tinham terminado. Uma nova raça de obsessivos começava a passar o pente-fino na obra, nos detalhes da vida e nas declarações, em busca de pistas para o mistério dos motivos dele. Um maluco até chegou a revirar o lixo de Dylan e organizou manifestações na frente da casa dele em Greenwich Village, com gente carregando cartazes de ataque ao cantor por sua aparente indiferença a causas radicais.
No dia 1º de agosto, Dylan participou, sem ser anunciado, do Concerto para Bangladesh organizado por George Harrison, realizado no Madison Square Garden, em Nova York. Isso traria credibilidade à causa beneficente do ex-beatle. Mas Harrison teve dificuldade em fazer com que Dylan assumisse o compromisso – ele estava preocupado com o grande público e como a massa poderia interpretar aquela participação. Tudo naquele dia foi uma surpresa. Exatamente no momento em que o mundo do rock estava se ajustando a Dylan de acordo com os novos termos dele – como homem com passado glorioso, mas presente hesitante e futuro incerto –, ele retornou feito um fantasma, pronto para se regenerar de volta à vida. E a façanha foi realizada.
Do final de 1971 ao início de 1974, Dylan foi mais um rumor do que um luminar. Ele participou como músico convidado ou como um vestígio de voz nas gravações de outras pessoas, entre elas o primeiro álbum solo de Doug Sahm. Também representou Alias, o parceiro enigmático de Billy the Kid (o amigo Kris Kristofferson) em Pat Garrett & Billy the Kid, filme de caubói de Sam Peckinpah – e ainda compôs a trilha sonora para o filme. Dela veio um sucesso inesperado, “Knockin’ on Heaven’s Door”, que até hoje segue como uma das canções mais marcantes do artista. Não haveria nenhum novo álbum formal até Planet Waves, no início de 1974 – outro disco que parecia afirmar dedicações domésticas, apesar de também fazer a previsão de um casamento que começava a se desintegrar.
Dylan, no final, iria se reerguer. A turnê de 1974 com a The Band e com a The Rolling Thunder Revue (1975) mostravam que o público o seguia fielmente. Álbuns reveladores e ousados como, Blood on the Tracks (1975) e Desire (1976), apontavam para novas perspectivas. Anos depois, no início da década de 1990, com Good as I Been to You e World Gone Wrong, ele mais uma vez gravou versões de canções folk antigas e impenetráveis, e fez isso mais ou menos do mesmo jeito que havia feito na forma essencial de Self Portrait: como voz solitária, tentando recuperar inspirações e lições da história e dos artefatos que tinham construído sua força e sua notoriedade em primeiro lugar. “Estas canções antigas são o meu repertório e o meu livro de orações”, Dylan declarou. “Todas as minhas crenças derivam delas.” A música que Dylan faria depois em álbuns como Time Out of Mind (1997), Love and Theft (2001) e Tempest (2012), entre outros, seriam trabalhos sobre busca pessoal, uma busca pela transcendência.
Self Portrait fez isso com uma voz mais jovem, quando o mundo todo parecia estar à disposição para ser agarrado por Dylan e pela época a seu redor. Cada momento importava, mesmo que fosse apenas para colocar de lado momentos anteriores. A mistura de provações e alegrias e mais provações pelas quais ele tinha passado entre o acidente de motocicleta de 1966 e as últimas estações do ano de 1971 o tinham desprovido de qualquer obrigação de se acomodar ou de resistir ao que o mundo esperava dele, ou de garantir a si mesmo ou a outros que a única coisa que existe é o amor – e que ele é que faz o mundo girar. Nenhuma dessas preocupações iria determinar Dylan nos anos seguintes. Os anos de Self Portrait o tinham libertado de tudo isso.