<b>GUERRA E PAZ</b> Soldado sérvio em Belgrado, em 1999. Durante três meses, a cidade foi bombardeada pela Operação Força Aliada, da Otan, como forma de retaliação aos ataques da Sérvia contra a população do Kosovo - REUTERS/LATINSTOCK

Um Sonho de Liberdade

Anos após ter sido berço do último grande conflito do ocidente no milênio passado, o Kosovo continua lutando para ser reconhecido como uma Nação soberana

Gustavo Silva Publicado em 10/08/2012, às 17h58 - Atualizado em 26/11/2012, às 10h57

"Se você estivesse aqui um ano atrás, nessa hora a gente estaria fumando maconha, bebendo e jogando PlayStation." O comentário soava deslocado por causa da situação, mas parecia sincero vindo de quem vinha. Petrit Selimi é um homem de poucas formalidades e fácil trato, do tipo que, sempre que a situação permite, trata o interlocutor como “cara” em vez de “senhor”. A fenda que separa os dois incisivos superiores chama tanta atenção quanto as entradas que denunciam uma calvície que virá em breve para alguém em seus 33 anos, e dão toques curiosos ao físico esbelto pontuado por um par de olhos azuis sem muito brilho. Tem o perfil de alguém que, na falta de melhor descrição, pode ser tomado como “cool”: envolve-se com música, design e quadrinhos – gaba-se de ser coautor dos primeiros grafites nos muros da cidade onde vive e de ter se envolvido na produção do show do rapper norte-americano 50 Cent na região. Não obstante, é dono de um café livraria temática com foco em quadrinhos, cujo ambiente não difere muito de espaços culturais que abarrotam o bairro da Vila Madalena, em São Paulo.

Contudo, a situação no momento era a seguinte: Petrit, a esposa dele e eu sendo levados por um motorista a um hotel nos arredores de Pristina, a capital do Kosovo, onde seria celebrada a festa de 12 anos de fundação do Partido Democrático do Kosovo (PDK). Não apenas estaria parte das lideranças nacionais no local – entre elas o próprio Petrit Selimi, o segundo na hierarquia de poder dentro do Ministério de Relações Exteriores do Kosovo, no cargo de ministro assistente –, mas os vencedores de uma guerra muito além das batalhas democráticas nas urnas. Fundado em 1999, o PDK tornou-se o braço político e desmilitarizado do Exército de Libertação do Kosovo (ELK), o maior representante da etnia albanesa na Guerra do Kosovo, último grande conflito armado tragédia humanitária do mundo ocidental no milênio passado.

Cumprimentamos o primeiro-ministro Hashim Thaçi logo na entrada. Outras figuras do alto escalão estão presentes no enorme salão de eventos. O álcool vai deixando a noite mais animada à medida que o tempo passa, e as pessoas vão se tornando meus melhores amigos – recebo um convite para dar uma entrevista em uma rádio local e sou gentilmente chamado de “William Miller”, referência ao protagonista do filme Quase Famosos. A história dos kosovares ao meu redor, porém, tem potencial para render um roteiro muito mais instigante e historicamente emblemático.

Tome como exemplo Albian Gagica. Nascido no Kosovo, etnia albanesa, 30 e poucos anos, ele tem passaporte norte-americano depois de mais de uma década vivendo nos Estados Unidos. É um designer formado em Nova York, onde passou parte da infância e adolescência em busca de uma vida melhor, após fugir das guerras que desintegraram a ex-Iugoslávia no início dos anos 1990. A partir de 1998, o já universitário Albian começou a acompanhar reportagens na TV sobre Kosovo, que destacavam a violência crescente e o maciço fluxo de refugiados – 200 mil, em agosto daquele ano. Ele foi informado da situação que resultou na expulsão de seus pais de casa – “colocaram uma metralhadora nas mãos da minha mãe e a mandaram atirar no meu irmão”, conta. “Ela desmaiou, meu pai subornou os soldados sérvios e eles conseguiram fugir.” Quando soube que seu irmão havia se juntado aos rebeldes do Exército de Libertação do Kosovo, Albian esteve prestes a desistir do mundo acadêmico e pegar nas armas. A família, porém, o convenceu do contrário, com o argumento de que iria destruir sua própria vida. Fez o que pôde à distância. “Não tinha mais cabeça para estudar, então fui para Washington participar de protestos”, ele relembra, entre um gole de vinho e outro. “No dia seguinte, um dos meus trabalhos, um cartaz escrito ‘Free Kosovo’ rodeado de mãos ensanguentadas, estava na primeira página do Washington Post.”

Pristina está decorada para o natal e Ano-Novo. A neve ajuda a dar o clima. Luzes iluminam a avenida que leva o nome pelo qual Agnes Gonxha Bojaxhiu, filha de pais albaneses nascidos no Kosovo, é conhecida em todo o mundo: Madre Teresa. Uma estátua da mulher ilustre, tímida, mas nas mesmas proporções da modelo original, decora o calçadão. Não longe dali, um Papai Noel magro de dar dó dança ao som mecânico de temas cantados em albanês e de clara influência oriental – não por acaso, tendo em vista que a população no Kosovo é majoritariamente muçulmana. Centenas de banners pendurados nos postes de iluminação e outdoors dão boas-vindas à chanceler alemã Angela Merkel, que está de passagem pelo país. Pouco interessa o fato de que ela sequer vai passar pelo centro da capital, e que sua viagem tem como único fim a visita a soldados alemães feridos em confronto no norte do Kosovo. Aqui todo ato de simpatia é um ato político, pois a história recente do Kosovo foi moldada pela comunidade internacional, e especialmente pelos Estados Unidos.

História é um tópico elementar para entender os conflitos da região dos Bálcãs e, ainda mais, o caso do Kosovo. É difícil pontuar com precisão no calendário os fatos-chave entre as milenares nações do Sudoeste Europeu, mas há uma data fundamental coincidente: 28 de junho. O assassinato do herdeiro ao trono austro-húngaro Francisco Ferdinando em 1914 pelo nacionalista sérvio Gavrilo Princip, evento que culminou na Primeira Guerra Mundial; a assinatura da constituição que, em 1921, estabeleceu as bases para o que veio a se tornar a Iugoslávia; a extradição do ex-presidente sérvio e criminoso de guerra Slobodan Milosevic para o Tribunal Penal Internacional em Haia, em 2002 – todos esses fatos ocorreram no mesmo fatídico 28 de junho, e sempre com envolvimento sérvio. A relação umbilical entre Kosovo e Sérvia também nasceu no dia 28 de junho, mas no distante ano de 1389, com aquilo que veio a ser conhecido como A Batalha do Kosovo. Há controvérsias sobre a relevância factual da batalha em si – historiadores discutem que o saldo final foi mais um empate entre os dois lados do que uma derrota dos sérvios. Indiscutível é a criação do “mito do Kosovo”, uma marca que moldou a identidade de uma nação para sempre. O Kosovo é, desde então, o berço cultural e espiritual dos sérvios, onde também estão os monumentos e raízes de sua influente igreja ortodoxa nacional.


Do ponto de vista territorial, a região sempre foi habitada por dois grandes grupos étnicos, sérvios e albaneses, sendo os últimos historicamente a maioria absoluta. O “mito do Kosovo” criou uma espécie de anexação espiritual sérvia da região por séculos, tornando-se uma anexação de fato no início do século 20. A criação da Federação Socialista da Iugoslávia no pós-Segunda Grande Guerra solidificou o status do Kosovo enquanto província sérvia – não sem um pingo de ironia. O significado da palavra “Iugoslávia” – “o estado dos povos eslavos do sul” –, por sua vez, já dava pistas sobre o destino dos marginalizados não eslavos albaneses. Já em 1974, o Kosovo ganhou autonomia (ainda que sob o mesmo status), o que na prática concedeu à província poderes equivalentes aos das seis repúblicas iugoslavas – Sérvia, Croácia, Bósnia, Eslovênia, Macedônia e Montenegro.

“E então apareceu em cena aquele senhor repugnante que fez toda essa merda”, diz Petrit Selimi, em sua modesta sala no prédio do Ministério de Relações Exteriores, a respeito do ex-líder sérvio Slobodan Milosevic. O teor da frase diz respeito ao principal capital político de Milosevic em sua ascensão ao poder: o nacionalismo sérvio. A Iugoslávia estava prestes a se desintegrar – algo que de fato veio a se concretizar quando Eslovênia e Croácia, em 1991, e Bósnia, em 1992, declararam independência – e guerras se seguiram. Não no Kosovo, porém. O fim da autonomia da província, em 1989, e políticas de repressão contra a maioria albanesa, como o expurgo do grupo étnico de cargos públicos, o fechamento do parlamento local, a perseguição da imprensa e o processo de “serverização” da educação (como o estabelecimento do sérvio enquanto língua de ensino) levaram à criação de um sistema paralelo de serviços públicos, organizados e dirigidos pelos próprios albaneses, liderados por Ibrahim Rugova, espécie de Mahatma Ghandi kosovar, que pregava a não violência como forma de resistência. Entretanto, após o destino do Kosovo ser ignorado e excluído de todas as negociações de paz envolvendo a Sérvia, certos segmentos da população albanesa chegaram à conclusão de que o branco da paz é uma tinta invisível na construção da história. Sangue e armas seriam instrumentos mais adequados para desenhar o Kosovo no mapa. Deu certo.

Cada ataque armado de milícias contra instituições sérvias no Kosovo levava a uma violenta reação sérvia que, a partir de 1998, seguia padrões já apresentados em conflitos anteriores na Croácia e na Bósnia, como o massacre de civis e a questão dos refugiados. O presidente norte-americano Bill Clinton deu o ultimato a Slobodan Milosevic: ou o ditador assinava um acordo de paz comprometendo-se a interromper a campanha de terror contra a população albanesa e retirar as tropas sérvias da região, ou a Sérvia sentiria o poder de persuasão das bombas disparadas pela Otan na capital Belgrado.

A curiosa combinação de elementos no pitoresco cenário kitsch que é o centro de Pristina não tem nada que levante a mínima memória de guerra e conflito. É no caótico trânsito que a mensagem é transmitida, ainda que de forma não tão velada. O Boulevard Madre Teresa emenda diretamente em outro, o Boulevard George Bush, que, por sua vez, cruza com o final de uma das principais vias de circulação de Pristina, o Boulevard Bill Clinton. As grandezas são proporcionais à relação histórica das figuras com o Kosovo (o fato de o ex-premiê britânico Tony Blair ter um endereço levando seu nome em uma rua insignificante diz algo sobre isso). Em 1999, Clinton foi o homem à frente dos Estados Unidos que, por sua vez, comandaram, sob a batuta da Otan, a operação Força Aliada, que bombardeou a Sérvia de 23 de abril até 10 de julho de 1999 e deu fim ao programa de limpeza étnica e massacres levados a cabo pelos sérvios contra os albaneses no Kosovo. Já George W. Bush, foi um dos primeiros líderes internacionais a reconhecer a independência unilateral do Kosovo, em fevereiro de 2008. A Alemanha de Angela Merkel também reconhece o Kosovo como uma nação independente. Contudo, o status atual do Kosovo é único na comunidade internacional – trata-se de um não país. A resposta está resumida em um simples slogan que permeia todas as camadas da sociedade sérvia: “O Kosovo é a Sérvia”.

Andando pelas ruas, bares e cafés de Pristina (uma capital que qualquer turista sensato passaria o mais distante possível, dada a falta de qualquer beleza e atrações interessantes), passou a fazer sentido a conversa que tive em um ônibus com um funcionário norte-americano da Otan no Kosovo. “Eles simplesmente amam os Estados Unidos aqui, cara”, ele disse, sem esboçar arrogância. Na verdade, os próprios locais dizem que não há lugar no mundo mais pró-norte-americano do que o Kosovo.

Mas, se por um lado portar passaporte dos Estados Unidos traz benefícios em viver no Kosovo e na convivência com parcela albanesa da população, qual é a situação quando se está em território sérvio, rodeado de sérvios? Faço a pergunta ao meu interlocutor norte-americano, que viaja à Sérvia frequentemente. “Quando eu sinto que o ambiente é hostil, e de fato isso acontece, digo que sou canadense – afinal ninguém se importa com o Canadá”, ele brinca – ou não.


Ser brasileiro é ser percebido como neutro em disputas internacionais desse quilate – o que é uma meia verdade no caso entre Kosovo e Sérvia. Brasília não reconhece Kosovo enquanto nação independente, decisão sustentada pela Resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU, que selou o fim das agressões e da guerra entre Otan, Sérvia e Kosovo. Comum às ações políticas da ONU que visam colocar lados opostos na mesa de negociações, o conteúdo da resolução é intrinsecamente ambíguo: pede por maior autonomia do Kosovo e instituições próprias, ao mesmo tempo em que declara a integridade territorial da Sérvia – que incluiu o Kosovo dentro de suas fronteiras – como inviolável, tal como sua soberania sobre a província. O cabo de guerra diplomático se arrasta: até o momento, 91 países reconhecem o Kosovo como nação de fato desde a declaração unilateral de independência em 2008, entre eles os Estados Unidos, 22 dos 27 membros da União Europeia e o Tribunal Internacional de Justiça, maior órgão jurídico da ONU. Já outros países de peso no cenário internacional, como China e Rússia, com seus próprios movimentos separatistas (Tibete e Chechênia, respectivamente), são irredutíveis em negociar o status do Kosovo, especialmente o último, aliado histórico da Sérvia.

“A Sérvia nunca irá reconhecer a independência de sua província”, atesta o ministro Goran Bogdanovic por meio de uma tradutora, que faz questão de enfatizar a frase. Estamos em Belgrado, em uma enorme sala no ministério para o Kosovo e Metohija, órgão máximo sérvio dedicado exclusivamente às questões da região ao sul. A inclusão de “Metohija” no nome diz respeito à divisão de regiões no Kosovo que, se pelo lado sérvio dá o nome oficial à província, por outro é simplesmente ignorado pelo governo local kosovar.

A minoria sérvia no norte do Kosovo não reconhece a autoridade de Pristina. Da mesma forma, considera-se negligenciada por Belgrado. No ano passado, mais de 20 mil sérvios do Kosovo entraram com um pedido de obtenção de cidadania russa. O vácuo diplomático e político deu origem a instituições paralelas na região, algo que em conjunto ao contexto geral do Kosovo cria um cenário fértil para atividades ilícitas (o “país” é hoje o mais pobre da Europa, cujo desemprego atinge por volta de 45% da população e um quinto do PIB tem origem em fontes estrangeiras). “O Kosovo é, infelizmente, o buraco negro da Europa”, diz o ministro Bogdanovic. “No que diz respeito ao crime organizado, lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, tráfico de pessoas – são coisas enormes por lá.” O complemento que viria a seguir na mesma declaração já era aguardado por mim. “E eu tenho certeza de que você está ciente de que a União Europeia acusou o primeiro ministro de estar envolvido em crimes muito sérios, como o tráfico ilícito de órgãos.”

A história citada por Bogdanovic é digna de uma adaptação para o cinema: um extenso relatório publicado no final de 2010 acusava Hashim Thaçi, o primeiro-ministro do Kosovo, de ser o chefe de uma rede criminosa que há mais de uma década – desde o ápice do conflito, em 1999 – controlava o comércio de heroína e a venda de órgãos (basicamente rins de soldados sérvios capturados e assassinados para esse propósito) no mercado negro. As acusações ganharam força principalmente pelo infame caso da clínica Medicus – um esquema descoberto em 2008 em que mais de 30 pessoas em condições de pobreza foram levadas a Pristina com a promessa de ganhar milhares de euros pela extração de seus órgãos, mas acabaram sem o dinheiro e sem o rim, cujo destino final era Israel. Membros do PDK e do ex-ELK, ligados a Thaçi, foram relacionados ao caso, acusados de serem investidores da clínica. Ex-comandante do ELK sob a alcunha “Snake” (cobra), Thaçi permanece sob investigação desde 2011.

O lado obscuro do Kosovo fica evidente principalmente no aspecto da corrupção. No contexto europeu, o país fica acima apenas da Rússia no Índice da Corrupção, ranking elaborado pela agência Transparência Internacional. Christopher Dell, embaixador norte-americano em Pristina, comentou recentemente que o Kosovo está “afundando em corrupção”. A declaração pode ter, em um primeiro momento, um tom hiperbólico. Mas se for levado em consideração que até mesmo o chefe da agência anticorrupção do país, escolhido a dedo pelo primeiro-ministro, foi preso por corrupção em abril...

Também no mesmo mês de abril, dois ex-ministros, ambos responsáveis pela pasta da Cultura, foram indiciados por crimes de corrupção. “A partir de conversas com aqueles envolvidos diretamente com a cultura, vi o quanto de política e politização havia na cultura do Kosovo”, contou o atual ministro, Memli Krasniqi, em entrevista dada meses antes do escândalo com seus antecessores, na aconchegante sala do Ministério da Cultura, Esporte e Juventude – outros dois campos de sua responsabilidade –, em Pristina.


Krasniqi, 33 anos, é parte de uma nova geração política que duplamente representa o slogan do Kosovo, “Os Jovens Europeus”: além de ser a nação mais recente do continente, é também aquela cuja população tem a média de idade mais baixa, 25,9 anos. O background de Krasniqi é curioso: antes do envolvimento com a política, que teve início em 2007 como membro do parlamento nacional, ele fez carreira na música e tornou-se a maior voz do rap albanês, cantando nos anos 1990 sobre “as durezas da vida sob a ocupação sérvia” no duo Ritmi i Rruges. “Eu já fazia política através da música, agora faço política de maneira mais concreta e engajada”, compara.

O fato de o Kosovo não ser plenamente reconhecido como nação resulta em uma série de restrições, como a dificuldade de o país em se integrar a órgãos internacionais como a ONU, a Otan e a União Europeia, o que por sua vez dificulta negociações no cenário internacional em questões políticas e econômicas. É o mundo dos esportes, porém, que ajuda a compreender não só os efeitos práticos dessa situação, mas também as consequências e os resultados de uma guerra.

Se o futebol é um espelho da história, é a sempre neutra Suíça o país que melhor reflete o passado em fatos presentes. Nos últimos 12 meses, quatro jogadores de origem kosovar-albanesa foram convocados para a seleção suíça. Times da Albânia, Finlândia, Noruega e Suécia também já contaram com o suporte de expatriados kosovares. Por outro lado, o futebol também dá a cor aos contornos cinzentos da situação do Kosovo. Recentemente, a Fifa, organização máxima do futebol mundial, autorizou que a seleção do país disputasse amistosos não oficiais, decisão que conflitou com a equivalente europeia Uefa, que só aceita a filiação do Kosovo quando o país for reconhecido como independente pela comunidade internacional.

"De que lado você está?"

Não demorou muito para que a pergunta surgisse quando revelei ser um jornalista escrevendo uma reportagem sobre a situação entre o Kosovo e a Sérvia. Discutir a relação entre os dois lugares é como participar ativamente de uma rixa de futebol – há pouco espaço para meios-termos e muito para opiniões e visões polarizadas. Sentado na bancada de um bar na capital sérvia Belgrado, bebendo um dos 150 tipos de Rakijas, a deliciosamente forte mas suave bebida alcoólica local, escolho a diplomacia barata como resposta: “Estou aqui só para tentar compreender”.

Milan Stojanovic, meu interlocutor, jovem estudante na faculdade de agricultura de Belgrado, abre um sorriso e se apressa em curar minha ignorância com uma curta parábola: “Imagine você, brasileiro, e há cerca de 100 anos os norte-americanos chegam ao seu país”, ele inicia. “Eles então começam a ter dez filhos cada um e, em 100 anos, se tornam uma maioria. Aí, eles dizem: ‘O Rio de Janeiro é nosso’.”

“As pessoas na Sérvia acham o que, que caímos do céu?”, rebate Beatrice Lajce, funcionária da agência de desenvolvimento urbano da ONU, enquanto conversamos vendo a neve cair do lado de fora em um café em Pristina. Ela sequer sabe de minha conversa com Stojanovic em Belgrado, mas fala espontaneamente sobre o que considera o lado sérvio nesse jogo de retóricas em um cenário em que, como escreveu o jornalista Tim Judah, “a verdade não importa, mas sim o que as pessoas acreditam que ela seja”.

Todos os pensamentos se conectam no último dia de minha estadia em Pristina. No requintado restaurante onde se dá o almoço de fim de ano do Ministério de Relações Exteriores do Kosovo, os lugares à mesa estão marcados como em uma sopa de letrinhas – OSCE, ICO, UNMIK, EULEX, KFOR são alguns dos órgãos internacionais presentes, além de embaixadores de países influentes, como a representante norte-americana, com quem converso em português (ela exerceu a função diplomática em Portugal). Selimi Petrit, mestre de cerimônias do dia, pede silêncio. Antes de solicitar um brinde a todos os convidados, ele solta uma declaração espontânea, mas impactante.

“Uns querem ser ricos, outros querem ser famosos”, diz. “Nós no Kosovo só queremos ser normais.”

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