Uma estratégia perfeita

Algo acontece quando uma das maiores bandas do mundo lança um disco inteiro de graça, na internet, para 500 milhões de pessoas

Pedro Antunes Publicado em 14/10/2014, às 10h29 - Atualizado em 24/10/2014, às 15h46

A indústria fonográfica quase entrou em colapso. Foi por pouco, muito pouco. O mercado era tão acomodado, autossuficiente, que não enxergou a avalanche inevitável que viria. Caiu nocauteado, espancado pela pirataria digital que chegava por meio do Napster, em 1999. Profetas do apocalipse musical previram o fim desesperador, 15 anos atrás. A receita se reduzia e, o mais assustador, ninguém sabia o que fazer com a música digital – e caridade não era o forte de uma indústria que movimentava, na época, cerca de US$ 27 bilhões no mundo com a venda de álbuns físicos.

Nesta uma década e meia passada desde então, acostumou-se a conviver com a música em que não se pode tocar – com os arquivos na nuvem, os serviços de streaming, os lançamentos exclusivamente digitais. Ainda assim, ninguém poderia prever o que

aconteceu no dia 9 de setembro de 2014. É provável que as pessoas ainda comentem, nos próximos anos, sobre o que faziam quando a Apple lançou, de graça, o aguardado disco de uma das maiores bandas da atualidade. O U2 e seu Songs of Innocence fugiram dos praticamente inescapáveis vazamentos e foram disponibilizados prontamente para a conta dos 500 milhões de usuários do iTunes. Tudo sem custar um centavo para o consumidor final.

O universo digital deixou de ser um bicho-papão assustador e é um apoio confiável para as gravadoras grandes e pequenas. “Todos nós entendemos que a gravadora deixou de ser uma fábrica de discos”, afirma Sergio Affonso, presidente da Warner Music Brasil. Dos US$ 15 bilhões gerados pela indústria no ano passado, de acordo com dados da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (conhecida pela sigla IFPI, em inglês), US$ 5,9 bilhões não vieram do formato físico, mas, sim, de downloads pagos ou serviços de assinatura de música digital. “Eu não me surpreendo”, comenta Alexandre Schiavo, presidente da Sony Music Brasil, uma das três grandes gravadoras em atividade – que, como todas as chamadas majors, precisou se adaptar aos novos tempos e parar de depender exclusivamente do mercado físico de música. “Vejo que cada artista, com a sua gravadora, está buscando uma forma de surpreender o público. [O lançamento do disco gratuitamente] é uma ação que causa muito barulho.”

Ao longo desses tempos de revolução – ainda tem movimento, mas marcada profundamente pela estratégia por trás do novo trabalho do U2 –, os grandes selos aprenderam que não podem mais esperar o dinheiro cair nos cofres. Gravadoras independentes haviam percebido ou aceitado isso antes. “Há ainda muito a ser explorado no mercado”, acredita Fernando Dotta, integrante da banda Single Parents e fundador da Balaclava Records, criada há dois anos. Associado à promotora Brain Productions, o selo diversifica seus negócios trazendo shows de artistas estrangeiros como Mac DeMarco e Sebadoh.

A segunda grande ruptura da barreira entre o físico e o digital veio em 2001, com o lançamento do iTunes e do iPod; a terceira, e ainda mais revolucionária, foi a chegada da iTunes Store. No ano seguinte, já existia uma entrada de capital proveniente apenas do mercado digital. Anos depois da famosa briga entre o Metallica e o Napster na justiça dos Estados Unidos, a primeira grande banda a abraçar a nova era, sem ressalvas, se manifestou: em outubro de 2007, o Radiohead lançou o disco In Rainbows de supetão, sugerindo que os fãs pagassem quanto quisessem pelas faixas. “Se eu morrer amanhã, ficarei feliz de não termos seguido trabalhando com essa indústria imensa, com a qual eu não sinto conexão alguma”, disse o vocalista Thom Yorke à Rolling Stone alguns meses depois. A iniciativa da banda esbarrou em uma questão financeira, já que apenas 38% das pessoas que baixaram o disco aceitaram pagar por ele, resultando em uma média de US$ 2,26 por download – ainda assim, foi o momento mais marcante da indústria musical na década passada.

Na época, em uma carta aberta enviada à revista britânica NME, Bono elogiou a atitude tomada pelo grupo, afirmando que o Radiohead havia sido “corajoso e criativo ao tentar encontrar um novo relacionamento com o público”. “Tamanha imaginação e coragem estão em falta atualmente”, escreveu o vocalista em 2007. Esse troca-troca se manteve nos dias atuais: pouco depois do recente lançamento do U2, Thom Yorke publicou o novo disco solo, Tomorrow’s Modern Boxes, para download via Torrent, com o valor de US$ 6.

Em julho de 2013, Jay Z e a Samsung ofereceram algo semelhante à parceria entre Apple e U2, mas em menor escala. Um milhão de usuários dos celulares da marca puderam fazer o download do inédito Magna Carta Holy Grail. Três dias mais tarde, o álbum chegou às lojas de maneira tradicional (e vendeu bem, sendo uma das melhores estreias do ano passado). A grande diferença entre as duas ações foi a forma como o disco espalhou-se virtualmente. O U2 comemorou a chegada do álbum aos 500 milhões de usuários do iTunes instantaneamente, quando ninguém esperava.

Em um minuto, sua biblioteca podia não ter nada da banda irlandesa; no outro, tinha um disco inteiro, recém- -lançado, e muito aguardado por quem conhece a obra do quarteto. Tamanha a grandiosidade do grupo, é provável que não estivesse nos planos o fato de que nem todos os usuários do iTunes gostaram de ter a nova safra de Bono e companhia em seus dispositivos. Quem rejeitou o álbum fez tanto barulho que a Apple acabou lançando uma ferramenta para que Songs of Innocence pudesse ser deletado facilmente. “Talvez seja uma apelação do U2 para fazer com que a nova geração tenha interesse neles”, reflete Dauton Janota, fundador do Pleimo, plataforma brasileira de streaming. Como representante dos pequenos selos e da indústria independente, Fernando Dotta não concordou com a estratégia da Apple. “Achei invasivo demais colocar [o disco] à força para todos os usuários”, ele diz, ainda que acredite que o resultado seja capaz de estimular “as gravadoras a encontrar novos meios de produzir os artistas”.

Alexandre Schiavo, ao lado de uma grande gravadora como a Sony Music, não é tão taxativo, mas também não se coloca 100% a favor de como o lançamento foi conduzido. “Até que ponto isso não desvaloriza, por ser de graça?”, ele questiona. “Isso, em um primeiro momento, com um nome desses, vai criar uma grande atração. Evidentemente, não vai mudar se o disco é bom ou não.” O executivo da Sony, ao lado de Sergio Affonso, da Warner Music Brasil, cita como outra ação de destaque, além do Radiohead e de Jay Z, a cantora Beyoncé, que lançou um disco de surpresa, também no iTunes, com clipes para cada uma das músicas. “O mar de artistas novos é enorme. É muito difícil chamar atenção do grande público”, completa Schiavo. “Ser relevante hoje é uma disputa

muito maior.”

Ainda que haja opiniões divergentes sobre a maneira como ...Innocence foi lançado, há um clima de otimismo na música como um todo. Dono da gravadora Deck e consultor da Polysom, única fábrica de discos em vinil da América do Sul, João Augusto discursa de forma positiva. “Como profetizou Chris Anderson [editor da revista Wired e autor de livros sobre a gratuidade de alguns produtos]: há consumidores para tudo”, diz. “O mundo não é só feito de U2, Radiohead, e, se alguém quiser conhecer outros sons, irá pagar para ter música, seja streaming, download, vinil, CD, DVD. É assim que a roda está girando.” O próprio vinil – que ele se recusa a chamar de “produto de nicho” – é visto como um exemplo de como as pessoas ainda estão dispostas a pagar pela música. “É por isso que as 42 fábricas existentes no mundo estão trabalhando a todo vapor, com capacidade abaixo da demanda”, diz Augusto. “Já dá para dizer que haverá sempre gente disposta a pagar por qualidade, concorda?”

O meio digital ressurgiu nos últimos anos como uma tábua de salvação. Entre 1999 e 2012, com o Napster e a pirataria, o mercado fonográfico sofreu seguidas quedas na arrecadação, ano a ano; até que, em 2012, a receita anual mundial chegou a US$ 16,5 bilhões, um crescimento de US$ 100 milhões em relação a 2011. Em 2013, houve uma nova queda (3,9%), mas que não esfriou as expectativas, porque, segundo o IFPI, o valor total sofreu um grande impacto com o declínio de 16,7% de vendas no Japão, país que está embarcando no mercado digital somente agora. Caminho esse, aliás, já trilhado pelo Brasil há alguns anos: em 2013, o faturamento digital representou 36% do valor total da indústria, atingindo R$ 136 milhões (em 2007, o percentual do mercado digital era de 8%). O streaming é, em consenso, o grande responsável pela mudança de ânimo do mercado. Existem, no Brasil, 23 serviços de música digital, que abrangem desde os downloads pagos, como o iTunes, à assinatura de streaming, como é o caso de Deezer, Rdio, Pleimo e Napster (convertido em um serviço legalizado), nos quais é possível pagar uma mensalidade e ter acesso a milhões de músicas em aparelhos celulares e computadores. Eles, juntos, representam 43% do faturamento digital do país, algo em torno de R$ 59,6 milhões.

O lançamento do U2, mesmo tendo ficado de fora dos serviços de streaming, reverberou por todos os cantos. No Deezer, por exemplo, houve um aumento de 30% na execução das músicas da banda irlandesa. Os representantes da empresa, do Napster e do

Rdio concordam ao afirmar que a música gratuita é uma grande estratégia promocional, como foi o caso da ação da Apple. “A única coisa que vou criticar é essa estratégia de exclusividade”, diz Mathieu Le Roux, diretor do Deezer na América Latina. Tiago Ramazzini, vice-presidente do Napster no Brasil e América Latina, é o mais enfático ao afirmar que o streaming tem tudo para ultrapassar a indústria física. “Ele veio para ficar e vai substituir o físico rapidamente”, acredita. Enquanto isso, Dauton Janota, fundador do Pleimo, entende que a música nunca deixará de ter valor, “mas que os modelos de negócios existentes, sim”. “Um produto que interage com a emoção das pessoas jamais perderá valor”, profetiza.

Criador e presidente da distribuidora digital ONErpm, Emmanuel Zunz percebe que a facilidade oferecida pelo streaming (30 milhões de músicas com o pagamento, em média, de R$ 15 por mês) em breve irá ultrapassar o download pago. “Quando você pode ter todas as músicas do mundo tanto no seu aparelho celular quanto no seu sistema de som em casa, em alta qualidade, por um preço barato todo mês, isso é uma oferta incrível pra quem gosta de música”, diz ele, antes de avisar: “[Só que] para esse modelo dar certo, precisamos de centenas de milhões de pessoas consumindo música dessa forma”.

Mesmo que não sejam unanimidade – pergunte a Thom Yorke o que ele acha da remuneração média aos artistas, de menos de US$ 0,01 por execução de música, nos serviços de streaming –, esses grupos despontam como uma parcela importante do modelo

de negócios chamado por Affonso, da Warner, de “360º”. “O digital vem galopante, vindo a passos largos para assumir a liderança [como principal fonte de receita da gravadora]. Mas existe a publicidade, a receita dos shows. Faz um bolão e o negócio está se reerguendo.” Até mesmo Le Roux, do Deezer, assume o papel de coadjuvante importante, mas não de protagonista. “Discordo quando falam que somos os salvadores da indústria”, ele rebate. “O futuro está na união de todos os formatos.” As cartas estão todas na mesa e, aos poucos, todos parecem finalmente jogar o mesmo jogo.

Karina Buhr

Acho mala receber coisa que não pedi. Mas acho engraçado também essa celeuma com a distribuição que o U2 fez, dentro de um contexto em que se exalta a propaganda à exaustão. De todo jeito, para eles é ótimo, só dá mais força para a estratégia. Me sinto maltratada diariamente com todas as invasões de que somos vítimas na internet. Propagandas direcionadas, histórico gravado por empresas. Acho horrível ter uma conta de e-mail e receber o aviso: “Você escreveu a palavra anexo no seu e-mail, mas não há anexo, deseja enviar mesmo assim?”

Uma vez escrevi um texto chamado “Estupros no Teleatendimento”. Na época, tive meu e-mail bloqueado por um mês, por “desvio de conduta”, e depois estipularam um limite dos envios. Para mim, isso é uma grande invasão – preferia ter recebido o disco do U2 [risos].

Essa coisa de “artista negociante” é sempre exaltada e, dentro desse pensamento, não seria o U2 a maior inspiração? Mas acredito também que exista um problema da opinião pública com artista que fica rico, de uma maneira geral. Eu não gosto dessa coisa mercadológica exacerbada, mas quem curte deveria gostar [do lançamento de Songs of Innocence].

Tulipa Ruiz

Acredito no download gratuito como o início da relação entre artista e fã. Quando uma pessoa procura o seu disco ou chega a ele de alguma forma, faz o download. Está começando a conhecer o trabalho do artista e, a partir disso, irá encontrar outros conteúdos para ir se alimentando, vai buscar vídeos no YouTube, etc. Esse é o caminho contemporâneo para as pessoas comprarem um álbum. Elas não compram mais um disco no escuro.

A estratégia de marketing da Apple, entretanto, acabou se tornando um tiro no pé. O conteúdo entrou à força nos aparelhos das pessoas e o que era para ser o maior lançamento da história, segundo eles, tornou-se um problema. Foi necessário criar uma ferramenta para excluir o conteúdo. O legal do conceito de viral é que ele vai se multiplicando e sendo compartilhado pelas próprias pessoas, não é um “pop-up” [que aparece quando menos se espera].

O download é um começo e, por isso, a iniciativa do Radiohead, em 2007, com o disco In Rainbows, deu tão certo. O grande drama da internet é que as ações não são replicáveis. Não é possível repetir o modelo. O U2 coloca milhares de pessoas em um estádio, mas eles não pensaram que esse número ficaria pequeno se comparado às pessoas que não gostaram da iniciativa e se sentiram invadidas. Normalmente, essas pessoas não seriam ouvidas, mas essa estratégia, ironicamente, deu voz a elas.

Dinho Ouro Preto, Capital Inicial

Eu acho que as bandas vêm percebendo que as pessoas estão se relacionando com a música de outro modo. Principalmente entre a garotada, há cada vez menos vontade de pagar por som. Acredito que ambas as soluções, a do U2 e a do Radiohead, são paliativas. Ainda não surgiu uma saída que pode servir a todos.

Eu, modestamente, tenho uma sugestão para a indústria: que toda música seja disponibilizada de graça. Poderia funcionar como a TV aberta. Tal como é na televisão, não se pagaria pelo consumo do conteúdo – você entraria na página do selo, procuraria o artista que quer ouvir, e pronto. A gravadora, por sua vez, teria como saber o quanto a página foi acessada e quantos downloads foram feitos. Com esse número poderia se estabelecer o valor da publicidade, que pagaria todos os custos inerentes a gravação, divulgação e marketing. Da mesma fonte viriam os direitos autorais e artísticos das bandas. E, assim, toda música seria gratuita. Quer dizer, não há almoço grátis, quem pagaria seriam os anunciantes. Mas, como na TV aberta, não se pagaria pelo acesso ao conteúdo. Problema resolvido.

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