Assim, o escritor e parceiro de Raul Seixas em alguns de seus maiores sucessos, define a amizade que os unia
Paulo Coelho Publicado em 29/09/2009, às 15h22 - Atualizado em 28/06/2012, às 12h58
Em 1989, eu estava fazendo o caminho de Roma quando soube da morte de Raul Seixas, em uma cabine telefônica, quando liguei para o Brasil (como fazia uma vez por semana) para ver se minha mulher estava bem. Tinha três moedas de cinco francos no bolso, um minuto e meio de conversa. Eu disse: "Oi, Cris, tudo bem?" E ela: "Não sei se eu te conto". Caiu a primeira moeda, depois a segunda e daí ela disse: "O Raul morreu". Caiu a terceira moeda.
Ao contrário do que manda o figurino, eu senti uma profunda alegria. Parecia que, naquele momento, Raul estava livre, bem, contente. Lembro que passei o resto desse dia cantando nossas músicas. Eu tinha publicado O Alquimista, mas não era o escritor que sou hoje - mesmo no Brasil. E continuei com aquela sensação de que Raul, de alguma maneira, tinha cumprido a missão a qual ele havia se proposto. Raul tinha vivido a lenda da vida dele, feito tudo o que achava que tinha de fazer. E não deixou absolutamente nada: foi uma escolha dele.
Nunca o vejo como uma vítima do sistema ou um cara que entrou num processo de autodestruição - nada disso. Foi uma escolha consciente, muitas vezes conversamos a respeito. Eu sempre demonstrei certo receio, contudo ele dizia que eu não me preocupasse: ele estava fazendo exatamente o que queria. No dia de sua morte entendi perfeitamente.
A nossa relação sempre foi muito complicada desde o começo. Quando começamos a trabalhar juntos, nos víamos todo dia. Ou ele vinha para minha casa ou eu ia para a casa dele. Era uma relação muito intensa, e uma competição acirrada. Raul sempre achava que eu queria mostrar que era melhor que ele, e vice-versa. Eu era o intelectual que sonhava morrer incompreendido, e Raul tinha esse poder de comunicação muito grande - muito grande. Pouco a pouco, nós começamos a desenvolver toda a ideologia da Sociedade Alternativa, unindo o ideário hippie. No disco Krig-Há, Bandolo!, a música-chave é "Ouro de Tolo", que é dele, e tem "Rockixe", quase uma declaração de princípios. Pouco a pouco começamos a nos entender. Apresentei as drogas a Raul, as sociedades secretas e essas coisas todas. Será que fiz bem? Raul entrou de cabeça nisso tudo. Em dado momento, eu disse: "Chega, parei". Mas Raul continuou, uma escolha absolutamente consciente, e ninguém pode julgá-lo por isso.
A única coisa que me desagrada hoje é uma certa manipulação da lembrança dele. E o que me surpreende muito é a atualidade das coisas que fi zemos e, também, a atualidade da presença do Raulzito. Raul Seixas é mais atual que nunca. Vemos, nesse caso, a tragédia como força que consolida a carreira de alguém. Ele não precisaria ter morrido da maneira que morreu, mas repito que foi sua escolha. A tragédia consagra - infelizmente. Assistimos ao Jim Morrison no passado, e assistimos ao Michael Jackson agora. A imprensa fez tudo para destruir Michael Jackson e, quando ele morreu, a comoção popular foi gigantesca.
O mesmo aconteceu com o Raul. No fi nal de sua vida, era convidado para programas de TV, visto como uma raridade. A tragédia faz com que a pessoa ganhe uma dimensão completamente diferente. Ou seja: ele se sacrifi cou por isso. Desde os mitos mais ancestrais, das mortes dos deuses, até hoje. John Lennon é mais importante que Paul McCartney porque foi assassinado. Na verdade, ambos têm o mesmo peso. Você enfrenta a tragédia e se transforma. Nossa relação era pessoal e, claro, foi se desgastando. Duas personalidades muito fortes. Daí nosso trabalho ser muito criticado. Porque não era aquela coisa: "Me mande um cassete que vou botar uma letrinha". Rolavam discussões e momentos de agressão. Nunca chegávamos às vias de fato, entretanto eu lembro que algumas vezes chegamos muito próximos a isso. Em Brasília, ele chutou uma mesa e eu chutei um abajur. A gente ia se engalfinhar, mas Gloria, que estava com ele, botou panos quentes. Lembro de pensar: "Agora vai sair porrada". Vinte minutos depois, estávamos sentados compondo. Não fi cava resquício de ódio.
A coisa que eu mais agradeço dessa relação foi ele ter me ensinado que cultura popular não é, necessariamente, uma coisa negativa. Ao contrário, a capacidade de se comunicar com todos é muito positiva. No fundo, é o objetivo do ser humano, a comunicação com seu próximo. A segunda coisa que ele me ensinou é a linguagem e de como fazer uso dela. Eu me lembro de gostar de músicas do Raul, antes de ele ser famoso, que ele fazia para outras pessoas na CBS. Eu o ouvia e dizia: "Então essa música é sua. Que maravilha!" Tem uma música que diz: "Estou voltando pra casa / Camisa amassada / Mais um dia de trabalho / Que afi nal chegou ao fi m". Eu não sei nem quem canta. Só vim saber muito tempo depois que a canção era dele. Descrevia a rotina que tanta gente vive, do cara que vai de ônibus trabalhar. Raul me ensinou a ver isso e guardo até hoje.
Sem dúvida, minha vida tem dois momentos-chave: um é o Caminho de Santiago, quando assumo, realmente, ser escritor. O outro é o encontro com o Raul, quando deixei de querer ser gênio incompreendido. Recordo que eu dava poesias para Raul ler. A primeira versão de "Al Capone", por exemplo, era um grande tratado. O Raul disse: "Não é nada disso, cara." Eu, irritado, respondi: "Você quer algo como 'Al Capone, vê se te emenda'?" Ele disse que sim. Eu respondi: "Raul, não se escreve dessa maneira", mas a frase fi cou em minha cabeça."Vê se te emenda', que coisa horrorosa." E, só para sacanear, continuei: "Já sabem de teu furo, nego, no imposto de renda". E perguntei: "Você acha que isso é bonito?" Ele: "É ótimo". Falei: "Então tá".
Fui para casa e escrevi a letra de "Al Capone". Ele nunca dizia que a letra estava uma droga. Dizia: "Não é assim, sabe?" Letra de música não é poesia. Letra de música é letra de música. É preciso libertar-se um pouco dessa ideia. Aprendi fazendo letra de música que é preciso ser absolutamente objetivo - sem ser superfi - cial. Quando você canta: "Eu perdi o meu medo da chuva / Pois a chuva voltada pra terra traz as coisas do ar", a frase se encontra no contexto de uma música sobre o casamento, mas poderia muito bem estar totalmente separada desse contexto. Quando terminei de escrever "Gita", cujo primeiro título era "A Letra A Tem Meu Nome", a música fi cou com quatro minutos. Eu disse: "Pô, agora vou ter que cortar". Ele retrucou: "De jeito nenhum. Não vai cortar nada". Essa era a cumplicidade que tínhamos. Para os padrões da época, "Gita" era uma música muito longa. Ele disse: "Eu vou usar a letra inteira". "A gravadora vai vetar", eu disse. "Não vai, não", ele respondeu: "Já tive sucesso com o Krig-Há, Bandolo!" E realmente não vetaram. Nessa noite, caiu uma grande tempestade que cortou a luz. E nós compondo "Há Dez Mil Anos Atrás" a luz de vela. Levamos para a gravadora e a música deu certo.
Só vim a chorar a morte do Raul seis meses depois. No dia da morte dele, eu senti uma espécie de estranha euforia. Sonhei com o Raul, que ele estava muito bem. Um belo dia, eu estava falando com um amigo, Edinho Oliveira, e de repente eu disse: "O Raul..." E aí desabei, comecei a soluçar. Não conseguia parar de soluçar; eu chorava sem parar. Chorava tudo o que não havia chorado pela sua morte. Quando terminei de chorar, senti de novo aquela paz. Hoje, enfi m, eu vejo Raul Seixas tendo o reconhecimento que merece. Em vida havia muito preconceito, todos achavam que MPB era autêntica e rock brasileiro não merecia nenhum respeito. Mas as coisas são assim. Maktub.
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