Os últimos e dramáticos dias de vida da mais velha sobrevivente de um massacre a uma tribo da Amazônia
Por Felipe Milanez
Publicado em 11/01/2010, às 10h24Na quinta-feira, 1º de outubro de 2009, o sertanista Altair Algayer, o Alemão, amanheceu apreensivo. Fora uma noite tensa, praticamente em claro. A cada zunido diferente de inseto ou ranger mais estridente de galhos, o ouvido despertava o sentido de alerta e voltava toda concentração para o som não identificado. Seria o índio Pupak, filho adotivo da velha índia Ururu, vindo avisá-la da morte da mãe?
Alemão levantou-se antes de o sol nascer e vestiu uma bermuda velha. Deixou de lado a camisa e preferiu pôr os pés direto no chão. Por volta das 6h, foi até a maloca ver como estava a índia. Algayer, descendente de migrantes alemães do Sul do Brasil, estava mais branco do que de costume. Transpirava mais e parecia bem mais magro. Inquieto, não sabia como agir. Imaginava ter feito o possível ao longo de uma semana terrivelmente infinita. Sentia-se impotente, indignado consigo mesmo. Imaginava que coisas tristes aconteceriam e ele não teria como impedir. Restava apenas acompanhar os últimos instantes de vida de Ururu.
Aparentemente tudo estava normal. A pressão arterial de Ururu se mantinha estável e, às 7h da manhã, estava em 100 por 50, conforme constatou a enfermeira Jussara de Faria Castro, esposa de Alemão. O pulso era acelerado, rápido; o punho, fino, cansado - nada diferente dos últimos dias. Mas a respiração estava mais ruidosa, e a índia transparecia ansiedade. "Está muito difícil vê-la cada dia piorando", dizia a enfermeira. Ururu não conseguia permanecer deitada na rede, onde a dobra da garganta segurava o ar, e preferiu ser colocada no chão. Jussara levou um pano úmido e o passou delicadamente no corpo da índia, que recebeu a higiene como uma massagem. Algayer varreu o chão de terra com uma palha, alimentou o fogo e ajeitou cuidadosamente os pertences da índia que ele ainda chama carinhosamente de "iamoi" - "mãe" na língua akuntsu.
Dentro da maloca, a fumaça da fogueira irritava os olhos. Próximos, apenas o filho e as índias akuntsus. Fora, um calor acachapante deixava todo mundo amolecido. O ar estava seco. Reinava um silêncio quase absoluto entre os funcionários da Funai e os enfermeiros presentes. Uma sensação de angústia dominava o ambiente. A resistência apresentada pela índia akuntsu em sua última semana de vida havia sido tenaz, mas agora se esvaíra.
Nos anos 1980, Marcelo dos Santos era um jovem e promissor indigenista da Funai, em início de carreira. Vindo de São Paulo, viveu tempos que eram convidativos para aventuras na Amazônia. Ele foi designado para trabalhar junto dos índios nhambiquara, na fronteira de Rondônia com o Mato Grosso. Os nhambiquaras são um povo fascinante, com costumes que eram descritos como selvagens, mas que encantaram o antropólogo Claude Levy-Strauss a ponto de transformar sua percepção de sociedade. Santos também se fascinou por aqueles índios. Olhos azuis profundos, farta barba ruiva e cabelos claros, ele representava um tipo cada vez mais comum por aquelas bandas amazônicas. Rondônia, nessa época, ainda recebia uma avalanche de migrantes sulistas. Muitos chegavam iludidos por promessas de terra e crédito do governo militar e se deparavam com condições muito diferentes das que esperavam.
Conseguir terra era um desafio pelo qual não imaginavam ter de passar, já que o slogan corrente dizia haver "terras sem homens para homens sem terra". Grandes extensões de florestas eram divididas em glebas, e posteriormente loteadas pelo Incra para a colonização. À Funai cabia determinar onde havia índios; ao antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), órgão antecessor ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), definir as áreas de preservação - o resto era passível de ocupação. Desde 1952, quando o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) transferiu povos do sul de Rondônia para o Norte do estado, próximo a Guajara-Mirim, a região era considerada "vazia" e passível de ocupação. E assim sucederam os loteamentos, a ocupação, a exploração predatória das madeiras, a luta pela terra entre os posseiros e grileiros, e o mais intenso processo de desmatamento já visto na história. Em um desses espaços de terra, na gleba chamada Corumbiara, estavam os akuntsus, vivendo, como sempre fizeram, da floresta.
"Em 1985, fui para uma fazenda verificar se havia índios por lá. Um fazendeiro precisava de uma certidão da Funai negando a existência de índios naquelas terras para conseguir crédito no banco", recorda-se Santos. "Mas, quando cheguei, um peão me disse: 'Olha, aqui não tem índio não, mas parece que aqui do lado andaram matando uns por estes dias'." Santos deparou-se com uma aldeia destruída - restos de moradias, cerâmicas, flechas e cápsulas de revólveres. Santos, então, chamou o indigenista e cineasta Vincent Carelli para imortalizar os vestígios do massacre e preparar uma denúncia pública.
Desde então, convencido de que havia índios na região, Santos passou a fazer buscas em toda área de floresta que não havia sido derrubada. Sofreu ameaças, boicote da sede da Funai em Brasília e pressão de políticos locais. Dez anos depois, em 1995, a tecnologia ajudou a labuta sertanista: fotos de satélite indicaram pontos que poderiam representar uma aldeia. Ele montou uma expedição, tendo Algayer como auxiliar, e foi conferir uma clareira: era uma pequena aldeia. O contato com os índios foi pacífico (e registrado por Carelli). Dois irmãos, o garoto Pura e a menina Txiramantu, caminharam até a equipe, trocando olhares. Os brancos barbudos foram levados até a aldeia e, algum tempo depois, apresentados à mãe e a uma prima dos dois irmãos. A língua falada pelo grupo foi identificada como pertencente ao povo canoê. Um sobrevivente da transferência organizada pelo SPI em 1952 foi destacado para servir de intérprete. Alguns meses depois, com a relação de confiança estabelecida, os canoês guiaram os sertanistas até outro povo vizinho que vivia, como eles próprios, uma situação de isolamento voluntário. Eram os akuntsus. O primeiro encontro com os remanescentes foi coordenado por Algayer e também filmado por Carelli. As cenas que se seguiram foram dramáticas. Guiados pelos canoê, eles foram direto para a aldeia e se depararam com Pupak, nessa época com cerca de 40 anos, que tremia incontroladamente de pânico. Escondida, Ururu foi a segunda a aparecer, trazida pelo braço, até mesmo com certa violência, pela índia canoê, a prima dos irmãos Pura e Txiramantu. Ela também estava em pânico e o resto do grupo, que somava mais cinco pessoas (as filhas e a mulher do velho Konibu, líder e xamã do grupo, mais tarde identificado como irmão de Ururu), só veio a aparecer depois que certa calma estabilizou os ânimos. Traumatizado com o universo dos homens brancos, o também sobrevivente Konibu seria o último a se revelar.
"Vai. experimenta que é bom", incentiva Alemão. O rapé arde o nariz. Konibu coloca mais um punhado na minha mão. Estamos sentados no pátio da aldeia akuntsu. Meto o dedo no montinho e trago um punhado ao nariz. Sigo Alemão, concentrado na curta viagem do rapé. Inalo e acompanho a solidão que a irritação no rosto provoca. Espirros, lágrimas, seguidos por uma sensação de limpeza. O xamã Konibu, a meu lado, está concentrado. Olha para mim e ri da minha inexperiência. Com os olhos ainda irritados, Alemão coloca o dedo nas costas de Konibu e aponta um buraco. O velho se agita. Demonstra uma vontade de compartilhar comigo um sentimento de revolta, e também a expressão triste da lembrança do que viveu. É marca de tiro. Em pé, Popak se agita, pula, mexe o corpo. Vira o braço direito para mim e aponta a assinatura que o chumbo também lhe deixou.
Sinto que sou bem recebido pelos akuntsus. Eles confiam em Alemão, meu guia, e ficam curiosos para saber que tipo de branco eu sou. Tenho o corpo todo pintado por jenipapo pela arte dos índios camaiurás, do Xingu, onde estive uma semana antes. As mulheres seguem as linhas escuras em minhas costas com a ponta dos dedos. Surpresas pela descoberta, elas chamam Ururu para ver. Ela caminha com dificuldade, tem as pernas tortas. Conhecedora da arte da pintura corporal, se mostra impressionada pelo trabalho. Sua satisfação é expressa com uma leve mexida no lábio, indicando um singelo sorriso de aprovação. Logo em seguida, senta-se ao lado de seu fiel escudeiro, um mutum, e, do outro lado, um companheiro jacamim - os dois pássaros pretos que ela cria possuem um ar, ao mesmo tempo, sombrio e tranquilo. Meu primeiro contato com os akuntsus ocorreu em 2006, dez anos após os contatos iniciais com a Funai. No posto de fiscalização da Terra Indígena Omerê, localizado entre a aldeia dos akuntsus e a aldeia menor ainda dos canoês - hoje habitada apenas pelos irmãos Pura e Txiramantu e um filho dela, Bakwa, os sobreviventes após a morte da mãe deles, da prima e de outro filho de Txiramantu.
No ônibus entre Chupinguaia e Corumbiara, duas cidades pouco aprazíveis no interior do estado, a terra devastada, a fumaça constante e os esqueletos de castanheiras secas no meio de pastos arrasariam um coração de pedra. Neste cenário, os remanescentes dos povos akuntsus e canoês são um híbrido entre heróis da história brasileira e fantasmas de um mundo que já acabou, mas resiste em sucumbir. O constante pensamento sobre o fim a que eles estariam condenados em apenas mais uma geração é aterrorizante. A brutalidade imposta a seres humanos que pareciam tão alegres, um choque.
Não se sabe quantos índios morreram no ataque à aldeia akuntsu, já que os corpos nunca foram encontrados. Konibu acredita que os cadáveres de seu povo tenham sido comidos, já que para os akuntsus os brancos são aterrorizadores: verdadeiros canibais sanguinários. Mas, para os sertanistas, o mais provável é que tenham sido carregados na caçamba de um caminhão e desovados em alguma represa das fazendas da região, como é comum por lá. Santos encontrou cinco malocas familiares, o que poderia representar a existência de até 30 vítimas. Mas é possível que eles já fossem um grupo reduzido, cerca de uma dúzia. Ou que fossem ainda mais numerosos. Nunca se saberá. "A comunicação é difícil, e até hoje não foi feita uma genealogia familiar para se tentar descobrir quantos eram na época", diz Vincent Carelli, que passou anos investigando a história, culminando no documentário Corumbiara, vencedor do festival de Gramado de 2009.
Hoje, fora os brancos que visitam a área, os índios só entram em contato com pessoas da cidade quando estão com problemas de saúde. E o último verão amazônico foi fatal para a frágil saúde dos akuntsus. Uma epidemia desabou sobre a aldeia, e todos eles tiveram problemas respiratórios. Konibu, o caso mais grave, foi diagnosticado com tuberculose. A velha Ururu, debilitada com uma infecção pulmonar, teve de ser internada. Por cerca de um mês, os akuntsus viveram como nômades entre cidades e hospitais de Rondônia, cada qual em lugares e momentos diferentes.
Entre 15 de setembro e 6 de outubro, todos os akuntsus foram hospitalizados com infecções respiratórias. Aramina e Enontéi, esposa e filha de Konibu, nunca tinham ido para uma cidade e sofreram enjoos no carro. Todos viram uma quantidade assustadora de pessoas brancas, como aquelas que haviam massacrado o seu povo, e não sabiam como reagir tão imersas em território tido como hostil. Konibu e sua outra filha, Txiaruí, ficaram em Cacoal, hospitalizados. Ambos os quadros foram agravados por problemas cardíacos, e a moça teve de submeter-se a uma cirurgia para a retirada do útero e do ovário esquerdo.
Depois de quase um mês de internação, Ururu e Pupak voltaram para a terra indígena em 23 de setembro. Os dois sempre andaram juntos, ele a trata com carinho e dedicação, ela lhe confere conforto materno e espiritual. Mas Ururu havia chegado debilitada, desidratada e sem conseguir andar. Estava apática, magra. Queixava-se de dores. Tinha dificuldade para respirar. Começava a sucumbir. Após um longo período em Cerejeiras, a mais velha dos akuntsus decidiu que não poderia morrer longe de sua terra. E ninguém conseguiu dissuadi-la da ideia.
Quinta-feira, 24 de setembro de 2009: Ururu toma os medicamentos às 7h da manhã. Pupak parece disposto; ela está apática. Só se alimenta com ajuda - e em pequenas quantidades. À tarde, piora. Começa a queixar-se de dores por todo o corpo. Muita dor de cabeça, no estômago e na garganta. A enfermeira oferece soro para hidratá-la. A índia está abatida, triste e desanimada. A pressão arterial, no fim do dia, é de 90 por 50. Ela recusa o líquido. Txiramantu atravessou o pasto que os fazendeiros ainda mantêm em suas terras, e separa a aldeia canoê do posto médico, para visitar Ururu. Ele faz um belo ritual de cura. Canta, recita mantras, assopra sua áurea para espantar os maus espíritos. Ururu parece sentir-se aliviada e cai no sono em sua rede, sem aceitar uma colher sequer do mingau que lhe foi oferecido.
Sexta-feira, 25: Ururu acorda ainda menos disposta. Aceita apenas água com mel. Pede para ficar só. Quer que a deixem em paz no mato ou na beira de um igarapé próximo. Algayer é prestativo. Arma a rede, leva seus pertences e a carrega no colo até a beira da água. Oferece um pedaço de banana, que é recusado. Ele e Pupak levam a brasa do fogo para aquecê-la - ela nunca deixou apagar a chama. O filho decide ir para a mata colher ervas, folhas e paus. No posto, os funcionários estão preocupados e tensos. Pupak retorna com uma série de ingredientes e os raspa sobre as costas da mãe. Sopra fumaça em seu rosto, como uma forma de purificação. Ururu passa o dia sem aceitar alimento. Tampouco permite ser hidratada. As queixas de dor no corpo são frequentes, mesmo medicadas com analgésicos. Algayer percebe a gravidade da situação e insiste em levá-los a um médico na cidade. Conversa calmamente com Pupak, que se mostra nervoso. Cospe no chão e faz gestos para se comunicar: sua mãe adotiva deve ser tratada onde está, e não na cidade.
Sábado, 26: O quadro de apatia e dores generalizadas se mantém. Ururu pede a presença da xamã Txiramantu. Ao fim de mais um rito, sente-se melhor e sua expressão é tranquila. Aceita um pouco de soro. A pressão sobe para 110 por 60, ainda dentro de um quadro normal. O interior da maloca está abafado. O fogo é um companheiro mesmo quando a temperatura ambiente está alta. Ururu recusa um caldo de frango com legumes oferecido para o almoço. Se mostra irritada e retira a soroterapia da veia. Recusa que seja reinserida. Algayer volta a insistir para que ela seja levada para a cidade. Pupak agora está mais nervoso com a insistência.
Domingo, 27: A enferma pede para ser levada novamente para a beira do igarapé. Quer ficar só, quer que a deixem no mato e a esqueçam. A pressão está estável em 110 por 60. Recusa soro e comida. Faz gestos para indicar dor no abdômen. Queixa-se de dor de cabeça. Algayer insiste para que a índia seja levada para o hospital. Tenso, Pupak pede que respeite a vontade de Ururu.
Segunda-feira, 28: Desânimo e fraqueza persistem. Ururu recebe um banho de ervas. Permanece silenciosa na cabana. Bebe um pouco de suco, mas recusa a soroterapia. Quer fi car só, somente Pupak está a seu lado.
Terça-feira, 29: As dores aumentam pela manhã. A pressão é de 90 por 50. Ela aceita um gole de soro, mas recusa que seja colocado em sua veia. Um caldo de frango e fubá é apreciado pelos presentes, que comem fartamente. Menos Ururu, que nega. Por volta das 3 da tarde ela está próxima ao fogo, abanando e cheirando três folhas de aspecto rugoso. Aspira fumaça. A cada momento, esquenta uma parte do corpo. Tosse seguidamente.
Quarta-feira, 30: Constantes dores no corpo. Ururu bebe um gole de água com mel e alimenta seu papagaio de estimação com mamão. Está fraca, e movimenta-se com dificuldade. Está imóvel. Passa a apresentar tremores. Pupak distribui emplastos com folhas e raspas de cascas de árvore por todo o corpo da mãe. Ururu já não ergue a cabeça. Faz sinais de dor. A enfermeira tenta aparar sua cabeça, ajeita o tórax. Não há posição confortável. Ofegante, Ururu mostra-se ansiosa e angustiada. Quer ficar só. Silêncio. A morte é iminente. Os brancos próximos sentem o fatalismo da situação. Escrevem relatórios por e-mail, falam com Brasília. Pedem ajuda e orientação da Funai e da Funasa. Solicitam um médico, que já deveria ter chegado. No ar, um cheiro de desolação.
Em 1º de outubro, o ar estava seco. O sol, a pino, era forte e cortava a atmosfera azul sem uma nuvem sequer. A visão das árvores gigantes atrás da pequena maloca estava distorcida pelo fata morgana. Um silêncio angustiante tomava conta do ambiente. Alemão, sentado sob o telhado de palha na varanda do posto da Funai, conferindo conforto provisório à sua apreensão. Pupak entrou na maloca da mãe e saiu nervoso, caminhando rápido e mexendo efusivamente o corpo. Entrou na casa ao lado, onde estavam as outras mulheres da sua tribo. Do lado de fora, impaciente, Algayer escutou o choro alto, agudo e estridente. Às 12h15, Ururu, que tinha em torno de 85 anos, tombou a cabeça de lado tocando o solo. Morreu sentada no chão de terra de sua maloca, ao lado da rede de fibra de tucum tecida por ela mesma, próxima da fogueira montada por Algayer.
Respeitando o luto, Algayer se colocou à disposição para auxiliar Pupak. Mas se limitou a ajudar a cavar a cova. O resto foi feito pelos índios, que embrulharam o corpo leve nas folhas e fizeram rezas. Todos choraram muito. O enterro foi rápido, com um fogo permanecendo aceso sobre a sepultura. Pupak despediu-se de todos e se isolou em outra aldeia. Mas, antes de partir, gesticulou para Alemão como se dissesse "novamente meu mundo acabou, não há mais ninguém". Quando voltou, dias depois, trouxe consigo os pertences de Ururu, fez uma fogueira dentro da maloca e deixou o fogo apagar as últimas lembranças materiais da mãe que o escolheu. "Mesmo se tivesse conseguido levá-la para o hospital, sabia que não resolveria. O médico ligaria soro, um monte de coisas, e isso era tudo o que ela não queria", pondera Alemão. "Sabendo o que se passou na vida desse povo, a gente fica sem poder agir. É muito sofrido. Desde o início eu os acompanho. Mas ficar fazendo cova é muito triste." O Brasil praticamente ignorou o acontecido. Na Inglaterra e na França, alguns jornais, seguindo informações da ONG Survival International, informaram que um dos últimos índios akuntsus havia morrido. Para que a notícia ganhasse mais relevância e fosse compreendida por um público distante da realidade indígena brasileira, o drama foi traduzido de forma contábil: "Declínio de uma tribo: restam cinco", titulou o inglês The Independent.
A certidão de óbito diz: parada cardíaca e respiratória. Mas a verdade é que Ururu morreu de tristeza. "Tristeza índia", como escreveu um dia Darcy Ribeiro, contando o fim de Kosó, um índio kaapor, que entrou em depressão pela morte de seu fi lho, ouviu, então, seu pai falecido chamá-lo em um sonho e foi encontrar-se com ele. "Deitou-se na rede e, em vez de dormir, se fez morrer. Este é um talento índio extraordinário, registrado mais de uma vez", descreveu o antropólogo brasileiro. Como Kosó, Ururu, sobrevivente do genocídio do seu povo, trancou-se em si mesma. Até a alma abandonar o frágil corpo. Já que roubaram a vida e a cultura do seu povo, ao menos a morte ela decidira guardar para si.