Ilustração - Índio San

As Veias Secas da Amazônia

Enquanto os imponetes rios da Amazônia são ocupados por usinas hidrelétricas e tornam o Brasil a "Potência Energética do século 21", o impacto dessas obras nas populações locais continua a ser ignorado

Felipe Milanez Publicado em 15/06/2012, às 12h42 - Atualizado às 12h44

Às margens do Rio Tapajós, em Itaituba (PA), um encontro de grupos sociais discute os impactos da construção da primeira de cinco hidrelétricas na região. Felício Pontes está com a palavra. Procurador Federal do Pará e atuante em defesa de populações atingidas por usinas, ele aponta no mapa a cachoeira Sete Quedas, um dos locais da construção da usina no rio Teles Pires, formador do rio Tapajós.

“É o local de procriação dos peixes”, Pontes explica, tentando provar que as usinas na Amazônia não são necessárias para o desenvolvimento do país, enumerando formas de desperdícios e energias alternativas. “Sou ruim de matemática, mas é só fazer as contas.”

Em seguida, Kubatiapã (nome indígena de Tiago Munduruku), cacique do povo mundurucu, pede para contar o pesadelo que teve na noite anterior.

“Estávamos andando, um bocado de pessoas. Pintados. Com arco e flecha nas costas, na direção do poente. Num momento vem um avião, passando pertinho. E de uma estrada, para um carro, e eles começam a atirar. O avião metralha. Eu estava com a arma, o arco na mão, que virou uma espingarda 22. O jato começou a atirar contra o povo, na direção dos mais fracos. Gritei para todo mundo entrar no mato. Era como pingo d’agua caindo do céu. Eram projéteis, balas. Nos escondemos, e fomos para essa cachoeira sagrada. Lá é um lugar protegido. Ali está a história”, diz. “Se acontecer a hidrelétrica, o rio Tapajós tem história indígena. Vão acabar com o rio. Vão acabar.”

De acordo com informações do Ministério Público e da organização International Rivers, o governo federal planeja construir três usinas no rio Tapajós, quatro no Jamanxim (um afluente) e seis barragens para o Teles Pires, que, juntamente como o Juruena, forma o Tapajós. Para a bacia toda, que inclui ainda o rio Apiacás, o plano é levantar um total de 16 barragens, que impactariam mais de dez mil indígenas que vivem às margens desses rios.

O pesadelo do genocídio indígena sonhado por Kubatiapã talvez não seja uma fantasia. No encontro, ocorrido em maio, o cacique debateu com lideranças dos movimentos sociais do rio Madeira, como Iremar Antônio Ferreira, do Instituto Madeira Vivo, e Antônia Melo, coordenadora do Movimento Xingu Vivo. O objetivo é construir uma “aliança pelos quatro rios”, envolvendo Madeira, Xingu, Tapajós e Teles Pires. Jesielita Roma Gouveia, coordenadora do fórum social dos movimentos da BR-163, estrada que está sendo asfaltada e trará impactos à região, foi escolhida para ser a coordenadora do movimento Tapajós Vivo.

“Itaituba cresceu desordenadamente desde a época do garimpo”, reclama Jesielita. “Depois, vieram as madeireiras, e agora os projetos de rodovia, hidrovia, complexos hidrelétricos e PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas) que estão no PAC 2, da presidente Dilma. O governo não conhece nossa realidade. Não estamos preparados para receber um projeto desse porte. A gente está sofrendo muito.”


Nunca, em toda a sua etno-história, a Amazônia passou por um processo tão profundo de transformação – nem mesmo com o desmatamento de quase 20% da cobertura vegetal, nos últimos 40 anos. Todos os formadores do Amazonas vindos do sul, salvo poucas exceções de rios em áreas planas, estão servindo a barragens. As duas usinas do rio Madeira, Santo Antonio e Jirau, devem entrar em operação este ano ou em 2013, enquanto Belo Monte, no rio Xingu, em Altamira (PA), está projetada para começar a funcionar em 2015. Nessa série, o rio Tapajós será o próximo a receber uma megaobra, que poderá ter início já no ano que vem, por São Luiz – a construção teria começado escondida já no início de 2012. Tudo faz parte do plano de tornar o país uma “potência energética do século 21”, conforme declarou Maurício Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE).

Vistos do alto, os rios da Bacia Amazônica lembram veias que escorrem das margens elevadas para o centro baixo e movimentam um sistema vivo – a floresta –, habitado por inúmeras populações humanas e não humanas. A água é drenada para o centro por cerca de 1.700 rios, que se juntam para formar o rio Amazonas, maior do mundo em volume de água e, dependendo do cálculo, também em extensão. Escorrendo para o oceano Atlântico, ele despeja 240 mil metros cúbicos por segundo de água, um quinto de toda a água doce do planeta, a até 150 km da costa.

A cor das águas é uma característica de cada rio: o verde-escuro do Xingu e o verde-azulado do Tapajós, ambos de águas cristalinas, contrapõem o Madeira, de águas turvas e pouco convidativas. São características determinadas pela erosão: rios que descem dos Andes trazem mais sedimentos. As margens, onde esses sedimentos ficam depositados, se tornam férteis e, portanto, também são as áreas mais habitadas.

No percurso dos planaltos em direção à planície está o que o governo brasileiro considera serem 70% das “reservas energéticas” do país. Isto é: locais onde é possível aproveitar a força hídrica e transformá-la em energia pelas turbinas das usinas.

Desde a construção da usina Tucuruí, e em razão dos grandes impactos sociais e ecológicos na área, não foram feitas novas grandes usinas na Amazônia. A retomada do projeto de aproveitamento da reserva energética amazônica ocorreu durante o primeiro mandato do ex-presidente Lula e foi capitaneada por Dilma Rousseff, então ministra de Minas e Energia. É muito provável que esse plano do governo seja alvo de críticas e protestos este mês, durante o encontro mundial Rio+20. Ainda mais depois que Dilma descartou publicamente as numerosas críticas às usinas: “Ninguém numa conferência dessas também aceita, me desculpem, discutir a fantasia. Ela não tem espaço para a fantasia. Não estou falando da utopia, essa pode ter, estou falando da fantasia”, declarou a presidente.

Uma quantidade ainda maior de megawatts está além das fronteiras, nos Andes, para onde o Brasil planeja expandir seu mecanismo de produção energética. Há mais de 150 projetos de hidrelétricas para serem construídos na região nos próximos 20 anos, segundo estudo realizado pelos pesquisadores Matt Finer e Clinton Jenkins. As usinas devem ocupar cinco dos seis formadores andinos do rio Amazonas, e o Brasil será um dos principais investidores desses projetos. Os peruanos, por outro lado, criticam Dilma por querer construir cinco usinas hidrelétricas no país (já em negociação) com o intuito de produzir energia para o Brasil.

De acordo com o ambientalista Bruce Barbbit, em artigo publicado no jornal peruano El Commercio, os projetos do governo brasileiro deslocariam cinco mil pessoas no rio Inambari e implicariam no desalojamento de dez mil índios ashaninkas. Juntas, as usinas causariam impactos em 1,5 milhão de hectares de floresta. Isso iria ocorrer no “coração cultural e ambiental da Amazônia peruana, próxima a três áreas protegidas: o Parque Nacional del Manu, o Parque Nacional Bahuaja Sonene e o Parque Nacional Alto Purus”. Uma das usinas também atingiria o Santuário Nacional Megantoni, área sagrada dos índios machiguengas e próxima ao menos de dois povos indígenas isolados.


Jaci-Paraná, em Rondônia, é a cidade-dormitório dos trabalhadores da usina Jirau, no rio Madeira. Na verdade não é uma cidade – apesar de a população ter aumentado de 5 para 25 mil pessoas nos últimos anos –, mas um distrito de Porto Velho, em área territorial que domina o norte do estado e vai até a fronteira com o Amazonas, o Acre e a Bolívia. É uma tríplice fronteira extremamente violenta, rota do tráfico de cocaína e de extração ilegal de madeira, cujo vértice mais distante é chamado de “Ponta do Abunã”.

Jaci convive com crack, cocaína e prostituição. Até meados de 2011, na beira da rodovia BR-364, que corta a cidade, havia a “Rua do Amor”, onde se localizavam bares e boates. Mas, depois da revolta dos trabalhadores em março de 2011, e com a atenção da mídia sobre a obra, uma maquiagem local foi feita: as casas deixaram a beira da estrada e se espalharam. Jaci-Paraná virou a “cidade-balada”.

Sexo é uma questão mal resolvida em grandes obras. Adão Rodrigues, que tinha a maior casa de prostituição próxima ao canteiro de obra de Jirau, a 15 minutos a pé do dormitório da construtora Camargo e Correa (e a quase 50 km de Jaci, para se ter uma ideia do isolamento), fechou as portas após a revolta e o acesso foi interditado pela Força Nacional. A casa que gerenciava tinha apelidos irônicos, como “Usina do Amor” e “Copo Sujo”. Adão mudou-se para Altamira, onde abriu a Boate da Noite na estrada que liga a cidade a Vitória do Xingu – uma casa de prostituição mais chique para receber altos funcionários, um nicho diferente da prostituição que rola nas ruas e envolve muita exploração infantil. Para diversificar os negócios no local onde será levantada Belo Monte, o empresário abriu também uma churrascaria e um hotel.

“Sem uma casa de shows com mulher, ninguém fica na obra”, falou Rodrigues antes de partir para Altamira, soando profético. Então, meses depois, abril de 2012, os trabalhadores de Jirau se revoltaram novamente contra as condições de trabalho, depredando parte do canteiro de obras. Gilberto Carvalho, ministro da Secretaria-Geral da Presidência, considerou a revolta “atos de banditismo”. Em 2011, a Força Nacional chegou rápido à área e revistava todos os trabalhadores antes de entrarem no trabalho – alguns denunciaram abusos e espancamento. A Camargo e Correa, responsável pelas obras, pediu a presença da Força até o fim dos trabalhos. Além dos 100 homens que estavam na região, o governo enviou mais 120 policiais da elite em 2012, militarizando o conflito social.

A Força Nacional é presença cada vez mais constante no oeste de Rondônia (o “oeste do oeste”). Há até pouco tempo, soldados eram vistos em Nova Califórnia, distrito do lado norte do Madeira, na Ponta do Abunã, para dar proteção à líder extrativista Nilcilene Lima, que denuncia madeireiros ilegais e grileiros e, por isso, tem recebido ameaças de morte. “É a época de colher castanha, mas a floresta está cheia de pistoleiros e os extrativistas estão com medo”, disse ela em dezembro, assustada, usando colete à prova de balas. O período de proteção terminou, a Força deixou Nova Califórnia, e Nilcilene foi retirada de sua comunidade por risco de ser assassinada.

Em maio de 2011, no distrito de Vista Alegre do Abunã, na mesma região, o líder camponês Adelino “Dinho” Ramos foi assassinado. Ele vivia no assentamento Curuquetê e também denunciava a atividade ilegal de madeireiros. Foi morto à luz do dia, diante de esposa e filha. Dinho conseguiu gritar a palavra que cita o nome do suspeito, “Ozéas” (após ser preso, Ozéas Machado foi solto e assassinado em janeiro; a investigação do assassinato de Dinho foi arquivada). Violência e disputa por terras são efeitos colaterais da inevitável migração que chega com as grandes obras.


é difícil entender até onde vai o impacto de uma hidrelétrica. Abunã, o último distrito antes de cruzar o rio Madeira rumo ao Acre e a Ponta do Abunã, fica em frente à Bolívia, e ali o consórcio Energia Sustentável (que constrói Jirau) dizia que não haveria impactos. E assim foi divulgado na audiência pública local, que apresentou um filme promocional que encantou os moradores. “Eles diziam que a usina era muito moderna, apareciam umas turbinas”, conta Sebastião Mota, dono do único mercado da região.

“A gente vai encomendar um laudo para provar que vamos sofrer impacto dessa usina”, reclama o garimpeiro Lélio Ibañez. O garimpo de ouro, realizado em balsas com mergulhadores (uma atividade de alto risco), foi proibido e a Polícia Federal reprimiu os garimpeiros. “E como é que eles dizem que nós não vamos ser impactados?”, questiona Ibañez.

O distrito de Abunã é uma antiga parada da estrada de ferro Madeira-Mamoré. Quando o rio Madeira enche, o local se torna um vilarejo sujo e pantanoso. Água das fossas se mistura com os poços, não há rede de esgoto e a comunidade ainda cheira mal, em razão de um frigorífico. Faltam escola e postos de saúde. Entre as obras de compensação construídas pelo consórcio Jirau, estão uma quadra de futebol coberta e a restauração do antigo barracão de seringa da Madeira-Mamoré. Na intenção de melhorar o diálogo com a comunidade, o consórcio de Jirau também instalou uma “caixa de sugestões” dentro da mercearia de Mota, na qual os moradores podem deixar pedidos à usina. Em quatro meses, muitos habitantes depositaram papeizinhos na caixinha, que permanece intacta, sem que jamais qualquer funcionário viesse retirá-la.

“Eles disseram que vinham”, reclama Mota.

A usina Santo Antônio, em Porto Velho (RO), hoje ocupa a visão de todos que sobem na encosta do morro Mirante para admirar o pôr-do-sol. Tão próxima da cidade, a obra tem tido dificuldades para entrar em operação. A força das turbinas provoca o “banzeiro”: trata-se de uma forte onda que joga as águas contra casas de moradores do bairro Triângulo, que são obrigados a se mudar para pousadas (o consórcio paga pela hospedagem das famílias afetadas), e começa a derrubar também a comunidade São Sebastião, na outra margem. A pesca foi comprometida. “O peixe acabou com o desmatamento que a usina fez”, lamenta o pescador Heleno dos Santos, morador de Jaci-Paraná.

“A gente percebe que o rio está morrendo”, argumenta Iremar Ferreira, do movimento Madeira Vivo. “Mas ele está tentando se rebelar – tanto é que o Madeira já destruiu um pouco de Porto Velho. Com um rio barrado, milhões de vidas estão sendo barradas. É um crime contra a humanidade.”

Para pescadores, uma barragem representa uma bomba prestes a explodir. Assim como Heleno, que não sabe o que fazer da vida, Pedro Soares de Aragão, morador da Ilha da Fazenda, no rio Xingu, vive a mesma angústia. Ele não sabe para onde fugir quando ficar pronta a “ensecadeira” – como é chamado o corte no rio que começou a ser construído pela empresa Norte Energia SA, responsável por construir e operar Belo Monte. Antes de vir para o Xingu, Aragão vivia no rio Tocantins e foi atingido pela usina Tucuruí, construída durante a ditadura militar e inaugurada em 1984. Mesmo sendo um pescador tradicional, Aragão jamais recebeu a indenização a que tinha direito.


A Ilha de Pimental fica a menos de duas horas de barco de Altamira, descendo o rio Xingu. Possui um grande pedral à frente e é coberta por floresta e águas cristalinas esverdeadas. A região lembra um pouco outra Pimental, no rio Tapajós, a comunidade que irá sumir do mapa caso as usinas venham a ser construídas. Antônia Melo, do movimento Xingu Vivo, evita chamar de “ato consumado” a construção da usina Belo Monte. “Pimental é o local onde aconteceria uma tragédia, que seria barrar o rio Xingu”, diz ela, tentando transparecer certa esperança de que a usina não será construída sobre a ilha.

“Rios estão sendo transformados em energia, e as águas em dinheiro”, diz Antonia, que vive há décadas em Altamira, que é chamada por moradores de “Caostamira” (ou “Altamiséria” nos anos 80). “Hoje, é como se tivesse passado um tsunami: veio, encheu, ocupou e deixou um rastro de destruição.”

O impacto na região como um todo é muito mais abrangente do que o impacto no local exato da construção do vertedouro e da colocação das turbinas. O governo criou uma distinção entre “impactos diretos” e “impactos indiretos” – ainda que seja difícil convencer alguém impactado de que o sofrimento é “indireto”. Um estudo da organização Imazon mostra que, dependendo do cenário ocorrido em Belo Monte, “projetou-se que seriam desmatados de 4.408 km2 a 5.316 km2 adicionais, dependendo do nível de imigração”. Como a Ponta do Abunã (em Rondônia) é atingida pelo Complexo Madeira, os efeitos de Belo Monte também se espalham pelo Xingu e pelos seus afluentes.

A primeira medida oferecida pelo consórcio Norte Energia para amenizar os impactos de Belo Monte com os índios locais foi enviar recursos para que administrassem de acordo com suas necessidades. A quantia estabelecida é de R$ 30 mil por aldeia. Antes unidos, os índios parakanãs começaram a se dividir e a fundar novas aldeias. Só em 2012 surgiram duas novas. O interesse é arrecadar o máximo que podem. Porém, continua sendo uma renda insuficiente, e, de acordo com relatos de antropólogos que trabalham com os índios, o dinheiro tem sido gasto em idas constantes para Altamira e no consumo de bebidas alcoólicas. “O Xingu virou uma avenida expressa até Altamira”, conta uma antropóloga estabelecida em São Félix do Xingu, que pediu para não ser identificada.

As usinas no rio Tapajós devem ser construídas principalmente dentro das chamadas “unidades de conservação”, terras públicas com destinação de uso específica e que costumam ser o primeiro alvo de invasores que surgem com a construção dessas megaobras. Por causa disso, o impacto ecológico das construções é tão grande que será difícil de ser calculado. Para dar um formato “verde” ao projeto, o governo federal criou o conceito de “usinas plataforma”: a construção de usinas como se fossem plataformas de petróleo. Como em um filme de ficção científica, os milhares de trabalhadores seriam transportados por helicóptero, e todo o canteiro de obras, reflorestado.

A referência para as construções é Itaituba, um lugar onde urubus ocupam a mesma posição dos pombos nas grandes metrópoles. A cidade vive a decadência dos garimpos de ouro, que tiveram o apogeu nos anos 80, e hoje experimenta um novo modelo com a chegada de grandes mineradoras. Uma vez que as usinas atrairiam milhares de trabalhadores para a mão de obra, o governo visa evitar que se criem núcleos urbanos no entorno das construções – e que empresários do sexo como Adão possam vir a se estabelecer.


Sobre as usinas no Tapajós, Maurício Tolmasquim, da EPE, declarou: “Praticamente não tem impacto ambiental, porque vai se reflorestar tudo em volta e aí vai ficar a hidrelétrica no meio da floresta. A ideia é não ter cidades em volta. Temos que criar essas inovações para usar nossos recursos”. A opinião é distante da de Jesielita Roma, do movimento Tapajós Vivo: “Itaituba não tem condições de receber essa obra. Vão chegar 80 mil pessoas sem estrutura nem para a atual população”.

A “ausência” de impacto ambiental alegada pelo chefe da EPE soa estranha após a aprovação da MP 558, no Congresso, que altera os limites de cinco parques nacionais na Amazônia. Se não houvesse impacto ambiental, qual seria a necessidade de uma lei que diminui áreas de preservação justamente para receber hidrelétricas? A resposta, segundo o deputado Zé Geraldo (PT-PA), relator da medida, é que ela veio para “corrigir distorções”. Na prática, abriu-se uma cratera no centro da floresta protegida e retirou-se a proteção de 75 mil hectares para dar espaço às duas usinas. Já para abrigar os reservatórios de Santo Antonio e Jirau, em Rondônia, o Parque Nacional de Mapinguari foi reduzido, perdendo 8.470 hectares. No caso de Rondônia, as empresas ainda negociam receber recursos por crédito de carbono – afirmando que estão deixando de emitir gases de efeito estufa.

Em grande medida, o financiamento de todo projeto parte do BNDES – uma mudança com relação aos grandes projetos do passado na Amazônia, que eram financiados pelo Banco Mundial. O orçamento previsto de Belo Monte está atualmente algo em torno de R$ 30 bilhões – é possível o BNDES financiar até 80% da obra. “É empréstimo de dinheiro público para uma catástrofe socioambiental”, observa Brent Millikan, da organização International Rivers.

Segundo Millikan, as revoltas em Jirau e as greves em Belo Monte indicam, ao menos no que toca à legislação trabalhista, que há fatos que podem ser impeditivos aos empréstimos do BNDES – mais graves, nesse quesito, seriam as denúncias da utilização de trabalho escravo por empresas terceirizadas de Jirau. “O banco aprova o empréstimo, fazendo vistas grossas dos problemas, e depois não monitora as violações da legislação e o descumprimento de condicionantes das licenças ambientais”, diz. “Nem as normas de responsabilidade socioambiental estão sendo seguidas.”

Maria Bibiana da Silva tem mais de 100 anos e nasceu no Ceará. Chegou em 1917 a Itaituba, na comunidade Pimental. Ficou até hoje, onde vive com o filho, Bernardino da Silva Azevedo, 80 anos. “Eu só queria ficar tranquila para morrer em paz. Mas vão destruir e alagar tudo aqui”, diz.

Bernardino tem a consciência de que não vai se beneficiar da usina. “Ela não vai servir para nós. Até sair, não vamos estar mais aqui. Eles só falam que vai dar emprego, isso e aquilo. Mas não falam se vão dar uma boa atenção para o povo que mora na localidade ou indenização. Pelo que a gente está vendo, aqui vai ser essa mesma coisa. É triste”, analisa, completando que se tiver de deixar o local, irá se mudar para Trairão.


Trairão é a cidade-destino escolhida por muitos dos que vivem na comunidade Pimental, às margens do rio Tapajós. Localizada próxima à BR-163, é palco de intenso conflito por terra e madeira, um lugar violento que tem sido impactado pela obra de Belo Monte e, tudo indica, também será pela hidrelétrica de São Luiz do Tapajós. Em outubro de 2011, João Chupel Primo foi assassinado em Itaituba (onde será construída São Luiz do Tapajós), dois dias após retornar de Altamira (onde será erguida Belo Monte), para onde havia ido denunciar a extração ilegal de madeira. Ele vivia em Trairão, de onde Júnior José Guerra teve de fugir para não ser morto. Um dos focos do conflito é a riqueza natural que existe na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio – localizada entre Altamira e Itaituba.

Cada obra tem especificidades. No entanto, é possível aprender com experiências passadas. As usinas do complexo do rio Madeira estão em estágio avançado de construção. Belo Monte, no Xingu, está no primeiro ano de trabalho. Tapajós é ainda só um projeto, que deve ser leiloado. Porém, Tucuruí, que foi concluída em 1984, poderia servir como exemplo do resultado de uma obra hidrelétrica na Amazônia.

Basicamente, a energia de Tucuruí alimenta a indústria de alumínio. No entorno do lago há um assentamento agroextrativista – o único no sul do Pará cujo objetivo é integrar colonos com a natureza. Nele viviam José Cláudio e Maria do Espírito Santo, assassinados em 24 de maio de 2011, por denunciarem a grilagem de terras, a extração ilegal de madeira e a produção de carvão de mata nativa utilizado na indústria siderúrgica. A luz elétrica chegou à casa do casal apenas em 2007, 23 anos depois de a usina estar em funcionamento. Meses antes de sua morte, Maria se declarou “triste”, pois São João do Araguaia, cidade onde nasceu, ficará embaixo do lago da usina Marabá, a ser construída no rio Araguaia. José Cláudio, por sua vez, fez uma reflexão negativista sobre como opera a ideia do progresso para quem vive dentro da Amazônia. “Aqui só fica o buraco”, lamentou

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