Na linha de frente das polêmicas, a ministra Iriny Lopes renega a alcunha de “censora” e se assume como a porta-voz das principais causas femininas
Cristiano Bastos Publicado em 10/11/2011, às 10h40 - Atualizado em 15/12/2011, às 18h09
Durante a gênese de Brasília, no final dos anos 50, o presidente Juscelino Kubitschek reunia-se com engenheiros no prédio conhecido como “Pavilhão das Metas” para deliberar sobre a construção da nova capital. No edifício, quase anexado ao Palácio do Planalto, funcionava o quartel-general dos jubilosos “50 anos em 5” de JK. Um ambiente, vale dizer, predominantemente masculino à época. Nos dias de hoje, porém, o prédio comporta o quartel-general da Secretaria de Política para as Mulheres (SPM). Criada no primeiro dia do governo Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, o slogan da SPM fala por si próprio: “Trabalha com as mulheres, para as mulheres e pelas mulheres”. Desde o início do ano, a pessoa na dianteira desta secretaria é a ministra Iriny Lopes, 55 anos, natural de Lima Duarte (MG), cuja performance política tem sido, desde sempre, dedicada aos direitos humanos. Em 2006, entre outras atuações, ela foi relatora da Lei Maria da Penha na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Nas últimas semanas, Iriny roubou a cena midiaticamente dominada pelo noticiário pautado por denúncias de corrupção. O primeiro alvo foi o polêmico comercial de lingerie da marca Hope, estrelado por Gisele Bündchen, no qual a supermodelo ensinava a dar uma má notícia ao marido vestida apenas em roupas íntimas. “Promove o estereótipo equivocado da mulher como mero objeto sexual”, protestou a ministra. Muita controvérsia depois, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) decidiu, por unanimidade, pelo arquivamento do processo. Os outros alvos de Iriny foram a novela Fina Estampa e o humorístico Zorra Total, ambos da Rede Globo: a ministra considerou que, nas duas peças de ficção, havia ocorrências de “violência simbólica” contra a mulher.
Em Fina Estampa, a ministra remeteu um ofício à emissora “sugerindo” que a personagem Celeste denunciasse o marido Baltazar ligando para o número 180 (Central de Atendimento à Mulher) na próxima vez que sofresse agressão. Em 25 de outubro, um dos desfechos receitados por Iriny finalmente foi levado ao ar: após dar outra surra em Celeste, Baltazar acabou preso – Iriny havia recomendado à emissora que o violento personagem fosse judicialmente responsabilizado. Aguinaldo Silva, autor da novela, escreveu no Twitter: “Ira-ny [sic], a insaciável, agora quer ser corroteirista de Fina Estampa”. Ela nega, contudo, que tenha tentado interferir no enredo. “O que fizemos foi apenas uma sugestão”, diz. Já no caso do Zorra Total, Iriny também prestou apoio às metroviárias paulistanas que são contra o humor praticado pela dupla de personagens Valéria e Janete. A ministra se irritou com as cenas nas quais Janete sofreu assédio dentro do metrô e foi encorajada pela travesti Valéria a aceitar a investida. Às vésperas da Terceira Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, marcada para dezembro próximo, Iriny Lopes destacou a importância de sua ouvidoria –“Um canal estratégico de diálogo entre a secretaria e a mulher brasileira”. Imobilizada numa cadeira de rodas em virtude de uma torção no tornozelo, a ministra falou sobre humor, erotização da mulher, mídia e comunicação de massa. E, sem engessar nas respostas ou perder a ternura, abordou o tema que, ainda hoje, é um dos principais tabus na sociedade brasileira, o aborto: “Nossa vida de mulher não se restringe a ser mãe”, diz.
Por que a senhora optou em acionar o Conar para solicitar a suspensão da publicidade da Hope? E, agora que o comercial foi liberado, qual será a posição da secretaria?
Acionamos [o Conar] porque fomos informados pela ouvidoria que temos na secretaria. Ouvidoria essa que, na verdade, é uma conquista de nossa sociedade. Do tempo em que conquistar uma ouvidoria que não fosse “surda” era fundamental, porque a sociedade queria ser ouvida pelo governo e pelo judiciário. É um instrumento extremamente democrático. Recebemos, através dela, as mais diversas denúncias, todos os dias: sobre publicidade, sobre o não cumprimento da Lei Maria da Penha, sobre o mau funcionamento de delegacias especializadas, sobre agressões, físicas e verbais. No caso da publicidade da Hope – com base em decisões anteriores do Conar, que caracterizou como estereótipos semelhantes publicidades –, consideramos que era cabível o pedido de suspensão. O conselho considerou, porém, que não havia sustentação [para] a suspensão do comercial. Embora o Conar tenha reconhecido a admissibilidade da solicitação, o que também é muito importante, pois admitiu, assim, que tinha de debruçar-se sobre o caso e analisá-lo.
A liberação da propaganda foi considerada uma derrota para a secretaria?
Derrota, não. Na realidade, a polêmica sobre qual caracterização as mulheres precisam ou devem ter na publicidade voltou à tona. Esse é um debate que foi feito tempos atrás e depois ficou um pouco esquecido. Mas agora a discussão retoma pela maneira com que a SPM e o Conar conduziram. Acredito que abre um caminho para o diálogo como, aliás, foi feito em relação a outros temas, como no caso da cerveja. Pelas regras do Conar, a publicidade de cerveja hoje não pode ter nenhuma alusão que venha despertar a atenção das crianças. Nem à prática de esportes. Não pode trazer nenhuma alusão à juventude para que não se crie estímulo ao uso constante ou abuso. Há, ainda, a questão de um limite nas publicidades de cerveja e, também, de que tipo de exploração e qual tipo de presença as mulheres podem ou devem ter nesses comerciais.
Por outro lado, a propaganda da Hope não poderia ser interpretada, também, como a atitude de uma mulher moderna que, pelo contrário, não é reprimida sexualmente?
A questão ali não era de repressão sexual. Mas pode ter gente que pense assim, sim. A liberdade não só da orientação, mas da sexualidade, é parte fundamental da constituição do ser humano. E a sua realização também é fundamental para o equilíbrio e para a felicidade. O que contestamos, na verdade, é a indução de pensar que a mulher precisa lançar mão desse artifício [o sexual]. É a empresa bater carimbo no que é “certo” e no que é “errado”. Até porque uma mulher moderna de verdade não bate o carro do marido; ela bate o seu [carro] e estoura o seu [próprio] cartão de crédito. A publicidade não é uma coisa que a pessoa escolha ver, como outro programa qualquer. Ou que você escolhe comprar, como uma revista. Se está assistindo a televisão e, quando vê, entra o comercial. Não está sob a governabilidade de quem assiste. Vai, então, se perpetuando essa ideia de que a sensualidade, que é uma característica positiva do ser humano, é para se dar bem.
No parlamento europeu discute-se uma política de “tolerância zero” para o uso de “insultos sexistas e imagens degradantes” na propaganda. O governo brasileiro pretende chegar a esse nível de regulação?
Nós vivemos em um país republicano, temos poderes constituídos. E a marca de nossos governos, tantos os dois do presidente Lula quanto o atual, da presidenta Dilma, é a da democracia e da participação da sociedade. Para o governo, a defesa dos direitos é fundamental. A valorização das mulheres e sua ascensão a um patamar de igualdade é uma meta, porém não compete a nós determinar. É um debate do qual faremos parte, mas não será o governo a definir. Não compete-nos essa iniciativa. Uma questão dessa natureza, que muito mais afeta ao Congresso e ao Parlamento do que ao Executivo, precisa ter clamor popular. Não significa dizer, contudo, que chamados ao debate não teremos opinião. Teremos, sim. O governo tem responsabilidades. Responsabilidades com a superação de todo e qualquer preconceito e com a prevalência dos direitos. Inauguramos um novo momento e, daqui em diante, ainda vai rolar muito debate.
A senhora acredita que o quadro do Zorra Total ofende o público feminino ao tratar o assédio sexual como “uma cantada qualquer”?
Esse é um debate antigo. Os homens acham que as mulheres devem se sentir “valorizadas” ao receber uma cantada. As mulheres, obviamente – assim como os homens, independentemente do gênero –, gostam de ser notadas e positivamente apreciadas. A questão é o modo da abordagem, que, muitas vezes, é depreciativo. Sempre que for de uma maneira leve e dignificante, a cantada, seja de homem para mulher ou vice-versa, só faz bem. Sobre o Zorra Total, a SPM recebeu a demanda do sindicato [da Secretaria de Assuntos da Mulher do Sindicato dos Metroviários de São Paulo] e emitiu uma carta em solidariedade às mulheres metroviárias. Essas mulheres sentiram-se, de alguma forma, desconfortáveis em seu dia a dia de trabalho. Quem anda em ônibus ou metrô lotados sabe que há muita gente que tira “casquinha” – e ninguém gosta que tirem casquinha da gente. Gostamos é de ter a opção: “Quero ficar mais próxima de você ou não”.
Uma das tiradas polêmicas do humorista Rafinha Bastos foi sobre estupro: “Toda mulher que vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia... Tá reclamando do quê?”
Hoje, a comunicação é em tempo real. Está em todos os lugares e cada dia mais pessoas são inseridas no processo. Tudo repercute imediatamente. É preciso pensar sobre o que se está falando ou fazendo. É muito fácil falar em censura: “Ah, já quer censurar!” – vem logo com uma “tesourinha”. Não se trata, contudo, de censura e, sim, de valores que são importantes na sociedade para que haja um nível de convivência respeitoso, civilizado e construtivo. Sobre o que o menino [Rafinha Bastos] falou sobre estupro, se por acaso um dia ele fosse molestado, talvez ele tivesse a noção da barbaridade que disse e do quanto foi um insulto. Apesar de existir, em número muito menor e em situações particularizadas, o estupro masculino é pequeno, mas existe. E o estupro feminino é, não apenas numericamente grande, como parte do princípio de que “com as mulheres pode fazer porque sempre se fez”.
A senhora teme que lhe ponham a pecha de “feministamente correta” ou de “censora”? No caso Hope, a senhora se disse censurada.
Quem está na política não pode ter medo, senão não cumpre o seu papel. O que me motiva estar na política é, justamente, a possibilidade de mudança. Que se for para manter tudo do jeito que está então não precisa de mim, ora. Eu acho a postura da imprensa não só desrespeitosa, como atrasada. Está fora do foco do que o mundo está procurando fazer. Enquanto o mundo busca, através de todos os mecanismos possíveis e imagináveis, criar as condições de uma nova cultura, com liberdade, autonomia e igualdade para todos e todas, eu vejo que a imprensa está na contramão. Por que que o que eu faço ou falo tem de parecer “censura” e eles [os veículos de imprensa], por sua vez, não podem considerar também natural que precisem refletir sobre os argumentos que eu coloco?
Recentemente, os atores Dira Paes e Alexandre Nero, da novela Fina Estampa, foram ao Faustão. Dira chegou a elogiar as suas manifestações. A senhora encara isso como um reconhecimento da Globo em relação ao que a secretaria prega a respeito da Lei Maria da Penha?
Olha, achei que havia legitimidade de enviar à Rede Globo a sugestão que fiz. Porque se não fosse para receber uma “sugestão” eles não teriam criado um departamento exclusivamente para isso. Não está escrito que ministro não pode fazer “sugestão”. Sugestão é acolhida ou não. É claro que as novelas são uma peça de ficção, mas a realidade está em suas tramas. A vida imita a arte, a arte imita a vida – é assim desde que o mundo é mundo. Os elementos que estão lá são da vida cotidiana: a busca do emprego, os alpinistas sociais, os que são ludibriados pelos vilões, o maniqueísmo. O cotidiano está representado nas novelas. E a violência praticada contra a mulher também está expressa naquela trama. As novelas, que são fenômeno tipicamente brasileiro, são um canal de comunicação muito poderoso. Eu posso, por exemplo, fazer uma campanha publicitária da SPM contra a violência doméstica – posso e faço, estamos sempre fazendo –, mas se, daqui a três anos você fizer uma enquete sobre a violência no ano de 2011, a maioria das pessoas, eu aposto com você, vai se lembrar da novela e não vai se lembrar de nossa campanha. A novela emociona, as pessoas se veem retratadas naquela situação. E os números são dramáticos. No Brasil, são 45 mil mulheres mortas nos últimos dez anos. São dados muito graves.
São dez mulheres mortas por dia, segundo o estudo Mapa da Violência no Brasil 2010.
Sim, vítimas de homicídio. Crimes estes provocados pelo fato de serem mulheres. E esse homicida, geralmente, é parente, namorado, noivo, ex-marido. Tem mulheres que afirmam apanhar ou sofrer violência cotidiana há pelo menos dez anos. Dessas, 65% afirmam que a violência é praticada com presença dos filhos, em sua maioria, crianças e adolescentes. E 23% delas dizem que os filhos apanham junto com elas. Para as crianças que assistem a essa violência – principalmente aquelas para as quais isso não é eventualidade, mas uma regra – estamos criando traumas que não sabemos se serão superados. Há, segundo os estudos, muitos casos de alcoolismo relacionados à violência e, também, de vítimas passivas.
A senhora se disse a favor de “uma menor erotização da mulher nas propagandas”. Como isso seria possível no Brasil, país em que tal atributo é muito marcante nas mulheres?
Faz parte, até pelo nosso clima tropical e por causa da miscigenação. Temos orgulho de nosso corpo, seja ele mais “assim”, seja mais “assado”. Vemos com naturalidade. O que acho que não precisa é estar associado diretamente ao comércio. Dependendo do tom, sai daquela graça e sensualidade para uma coisa, às vezes, ofensiva – e, de novo, a questão de estereotipar: “Mulata só tem bunda”. Não é verdade; ela é uma mulher inteira. Não é aquele negócio de “produto de exportação”. Eu sempre estive ligada aos direitos humanos. Para mim, sempre foi menos uma causa “moral” e muito mais uma questão de igualdade. O fato não era se ela [Gisele Bündchen] estava ou não de lingerie; o errado era ela falar o que falou trajando roupas íntimas. Esse era o ponto contestável. A mulher moderna conversa olho no olho com seu companheiro e diz: “Olha, lamento, bati o carro. Vamos compartilhar os gastos”. Uma mulher moderna faz isso! Ela tem o salário dela e busca a sua autonomia. Queremos que a mulher seja vista como um todo: um belo corpo, um belo rosto e um belo cérebro.
Os homens também sofrem estereótipos. Eles não mereceriam uma secretaria?
Não! Aí você está querendo demais [risos]. É uma questão histórica. Nós somos contra qualquer tipo de estereótipos, queremos igualdade, mas igualdade “no bem”. Queremos que homens e mulheres fiquem bem. Nós precisamos fazer uma ruptura com essa cultura de que as mulheres podem menos, que as mulheres sabem menos. A mulher apanha, porém “sempre foi assim”. Muitos preconceitos são invisíveis porque acabaram se naturalizando. Você olha e não enxerga, pois “sempre foi assim”. Demora um tempo para a média entender. Então fica aquele negócio: “Isso é xiitismo!” É preciso romper com a cultura atual e construir outra. São essas rupturas que farão a mulher atingir a igualdade com os homens. E não adianta somente políticas públicas. Também é necessário postura e cultura.
No caso da menor de idade presa em uma cela com homens no Pará, pouco barulho fez-se em cima do caso, inclusive na mídia. Qual foi a atuação da SPM?
Nós enviamos representantes da secretaria para lá. Não se fez barulho na mídia. Todavia, precisaríamos, nesse caso, que esse “barulho” tivesse sido feito. Principalmente para se reforçar casos contra a impunidade e as responsabilidades constitucionais que cada esfera e cada poder têm. A SPM enviou representação para acompanhar o desenrolar, mas o caso está na alçada do governo estadual.
O estado do Pará é reincidente...
É, teve o caso daquela menina que foi detida, por ordem judicial, em uma cela onde só tinha homens, uns anos atrás. São situações que não podem acontecer. Mas a gente não deixa de acompanhar.
Tem se dito que essas polêmicas envolvendo a secretaria poderiam custar-lhe seu cargo de ministra. A senhora chegou a conversar com a presidente Dilma?
Não cheguei a conversar. A presidenta Dilma é extremamente cuidadosa com o seu governo. É da personalidade dela e do seu perfil acompanhar tudo. No entanto, é preciso registrar que nós, ministros, possuímos um nível de autonomia que ela respeita muito. Dilma não fez, para mim, nenhuma solicitação, determinação ou interferência. A especulação sobre minha permanência trata-se, portanto, de uma tentativa de politizar o debate. Não há nenhum fundamento.
Antes de ser empossada ministra, a senhora afirmou que defende o direito da mulher de interromper a gravidez. Qual é a melhor justificativa para se apoiar o aborto?
É um tema delicadíssimo, em todos os sentidos. Em especial para as mulheres. Não é uma decisão qualquer. Nossa vida de mulher, porém, não se restringe a ser mãe. É uma parte importante, a reprodução, a multiplicação da vida. Mas cada um de nós, homem ou mulher, tem o direito de escolher com liberdade. O que eu não acho correto é negar que esse debate precisa ser feito com a delicadeza e responsabilidade que ele merece. Também não pode ser tratado como um tema de disputa emocional: o Estado é laico, porque se não for laico desrespeita a individualidade de diversas crenças e religiões. As mulheres, entretanto, não devem ser obrigadas a fazer ou não o aborto. E o Congresso, ao qual cabe o debate, precisa tratar o tema olhando para todos os aspectos que o envolvem. O Brasil pode até escamotear o assunto, mas ele sempre estará presente. E, enquanto ele é escamoteado, milhares de abortos com altíssimo risco de morte, principalmente para as pessoas mais pobres, são feitos diariamente. É melhor que coloquemos na mesa todas as opiniões e busquemos uma legislação que trate o aborto com responsabilidade e sensibilidade. As mulheres não podem continuar morrendo por causa da falta de diálogo.
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