Mara Gabrilli vê felicidade onde não há desconforto, sente prazer nas pequenas coisas e desconhece o medo da morte. Em meio à luta pela acessibilidade, ela pondera diante de uma balança invisível: cuidar de si mesma ou cuidar dos outros
Bruna Veloso
Publicado em 24/03/2014, às 13h32 - Atualizado às 13h34O apartamento onde mora a deputada federal Mara Gabrilli fica em uma área nobre de São Paulo – há uma jacuzzi na enorme sacada, a sala ampla é inundada pela luz cinzenta da tarde que atravessa as portas de vidro e a decoração é simples, mas sofisticada. Mara nasceu em uma família abastada, viajou o mundo, estudou em bons colégios. Mas as possibilidades financeiras parecem nunca tê-la atraído mais do que as possibilidades humanas.
Mara, 46 anos, virou Mara Gabrilli, psicóloga, publicitária, colunista, política articulada e voz ativa na busca por melhores condições para os deficientes físicos no Brasil, sua principal plataforma de campanha, depois de ter se tornado tetraplégica em um acidente de carro em 1994, aos 26 anos. Tetraplégica: a condição física que vem sempre atrelada ao nome dela parece insignificante diante da vivacidade do discurso, da fluidez das palavras, da maneira como ela interage com o interlocutor. A cadeira de rodas é mera coadjuvante.
Primeira titular da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida de São Paulo (2005-2007), depois vereadora (2007- 2010) e, por fim, deputada federal (eleita em 2010, pelo PSDB-SP), Mara diz que sempre teve um “olhar para Direitos Humanos”. Vai concorrer ao segundo mandato na Câmara dos Deputados – e não pensa na possibilidade de não ser reeleita.
O quão difícil é ser mulher na política? O gênero faz diferença?
Faz, mas para o lado bom. Eu acho ótimo, porque me traz mais um diferencial. Acho que lá os homens são mais delicados com as mulheres, e vejo que me tratam com muito respeito, com mais delicadeza do que entre eles. Vou naquelas reuniões de bancada, e é até engraçado: você olha, estão lá 60 homens – e eu. Não vejo problema, pelo contrário. Acho que abre muita porta. Olho aqueles homens todos e agradeço por não ser um deles [risos].
Em uma escala de 1 a 10, onde o Brasil estaria quando o assunto é a inclusão do deficiente?
Se a gente for levar em consideração infraestrutura e serviços, eu colocaria o Brasil no número 2. Mas, por outro lado, a gente tem alguma coisa que é meio intrínseca do brasileiro, que está um pouco na frente. Embora o povo daqui não tenha o hábito, não tenha serviço, não tenha auxílio, existe uma predisposição emocional para ser mais acolhedor e mais inclusivo, sem refletir sobre o assunto. Acho que nesse ponto a gente é 8. Mas é algo que eu enxergo no modo de ser, que não é lapidado.
Você parece ter uma personalidade muito bem desenhada em todas as fases da sua vida, antes e depois do acidente. Mas qual foi a principal mudança no seu modo de agir e pensar após ter se tornado tetraplégica?
Acho que muitas mudanças aconteceriam inevitavelmente. Mas foi muito trabalhoso conseguir chegar num equilíbrio. Sabe, eu estava hoje no avião, e pensei: “Nossa, estou tão feliz”. E não tem nada acontecendo. Eu me lembro de momentos muito difíceis, então ficou muito mais fácil e recrutável um momento de felicidade na minha vida. Porque se eu estiver sem nenhum desconforto físico e emocional, é felicidade. Sabe um bebê? Ele meio que começa a chorar, gritar e espernear, oscila entre desconforto e momento de prazer. Se ele não está com frio, com cólica, ele está bem. E foi muito trabalho para eu conseguir chegar nisso [ ficar confortável]. Durante muito tempo, passei por muito desconforto longo, contínuo e frequente. Toda a sorte de desconforto. E hoje eu tenho bem mais momentos confortáveis do que antes de eu sofrer o acidente.
Foi mais difícil lidar com a realidade de ser deficiente ou lidar com a impressão das pessoas à sua volta ante a sua deficiência?
A impressão das pessoas não me ajudou em nada. Pelo contrário, incomodava. Mas com certeza não era esse meu maior incômodo. O meu maior incômodo foi o vazio em que eu me encontrei. Eu não conhecia aquilo. Não era classificável. Não sabia como faria para chegar ali [aponta com a cabeça], como seria quando a pessoa que estava do meu lado não estivesse, como seria pra deitar na cama... Eu não sabia nada.
Quando mais jovem, você já se imaginava em uma posição de voz proeminente como a que tem hoje?
Eu tinha um flash, mas não fui tão ousada no meu desejo. Eu trabalhava com publicidade, com painéis eletrônicos. Imaginava a cidade cheia de painéis eletrônicos de alta definição, e aquilo chamando muito a atenção das pessoas, e imaginava os slogans, as mensagens, aquilo que eu poderia falar para as pessoas. Acho que eu já queria falar para um monte de gente, mas não imaginava que seria dessa forma.
O que você vê do momento político atual no Brasil? Caminhamos para algo melhor?
Caminhamos para uma coisa boa, uma mudança. Tinha uma impressão muito ruim do Congresso quando eu nem pensava em ser deputada. A minha visão foi bem impactante e transformadora [após ser eleita]. Vejo muita gente boa, muita gente trabalhando. E gosto da energia de estar lá. Tem muito mais gente legal do que gente não legal. Mas o que mais aparece é aquilo que não é bom.
Você acredita que há mais gente agindo de maneira honesta do que corruptos?
Eu acho. Tem gente de todo tipo – tem gente legal que não muda muito o mundo. E tem gente legal que trabalha muito. Tem muitas pessoas trabalhando muito para deixar o Brasil melhor.
O deputado Jean Wyllys criou um projeto de lei pela legalização da maconha. Você é a favor ou contra a legalização no Brasil?
Até outro dia eu pensava que a maconha deveria ser legalizada. Mas hoje eu prefiro dizer que ainda não sei. Ouço muitas coisas de um lado e de outro, e estou louca para ver o que vai acontecer no Uruguai, para ter uma opinião mais bem formada. Eu tenho a tendência a achar que se deve liberar, porque você acaba com o crime todo que o tráfico envolve.
A política é um casamento eterno?
Eu não acredito em nenhum casamento eterno [gargalha]. Portanto, não acho que seja. Penso que é um momento que estou vivendo, e do qual gosto muito. Mas eu me conheço, gosto de fazer mudanças radicais. Não acho que vá trabalhar com política pra sempre, mas também posso pagar a língua.
Mas você faz planos de quantos outros mandatos e cargos precisa para colocar suas ideias em prática?
Eu penso em outros cargos, mas eu penso mais em fazer. Aí me questiono: será que nesse cargo eu faria mais? Eu quero otimizar. Será que no Senado eu faria mais? A gente [equipe dela] pensa e discute onde haveria mais possibilidade de fazer. O plenário da Câmara Federal é muito engraçado, parece uma rave. Primeiro que o presidente adora começar às 20h a votação, então você nunca sabe que horas vai sair de lá. E, mesmo que seja durante o dia, aquilo lá não tem luz natural. Aquele barulho... se você assiste à TV Câmara, sabe muito mais o que está Rolando do que quando está ali no lugar. Estava saindo de lá ontem e fiquei pensando, porque o ambiente dentro do plenário do Senado é diferente. A maioria é bem mais velha, então é um outro ritmo. E eu gosto dessa coisa pilhada da Câmara.
E se você não for reeleita na eleição de 2014?
[Longa pausa] Não sei. Não pensei nisso, não. Aí acho que vou embora, morar em outro lugar. [Pausa] Ontem eu recebi uma mensagem, fui aceita para um protocolo de pesquisa no Miami Project [maior centro de estudos sobre cura de paralisias do mundo]. Eles começaram agora o primeiro protocolo clinica de implante de célula de Schwann, que é uma célula que a gente tem no corpo, em pessoas que sofreram lesão medular.
Você teria que se mudar para os Estados Unidos?
Eu fui aceita para sete protocolos, e para esses eu não sei, porque não estou interessada neles, estou interessada no implante. Para o implante em si não tenho que me mudar, tenho que ir, fazer a cirurgia, ficar um tempo e voltar a cada três meses.
Pensou sobre isso?
Não, você que está me provocando! Você veio com essa pergunta, se eu não fosse reeleita, e eu nunca tinha pensado nisso. Não é me gabar, mas eu acho que mereço, e muito, cada um dos votos que recebo, porque eu trabalho muito, minha equipe trabalha muito. Eu dou tudo de mim, dou mesmo.
Você acredita em destino?
[Pausa] Ah, eu não acredito que a gente tenha um destino traçado. Acredito que haja um destino e que a gente pode mudá-lo todo dia. Por exemplo: se você está no fundo do poço, acho que a primeira coisa que tem que acontecer para essa situação mudar é você parar de cavar. E a gente tem uma tendência a continuar a manter o mesmo status quo. O que eu posso dizer é que as pessoas com deficiência sempre chamaram minha atenção, muito por eu enxergar potencial. E segundo que eu sempre tive uma veia pulsante para os Direitos Humanos, para tentar melhorar a vida das pessoas. Acho que é muito mais ligado a essas características de personalidade do que algo do tipo “meu destino já estava traçado” de que eu iria ser uma cadeirante.
Você sempre falou com muita tranquilidade sobre sexo. Além de as pessoas se chocarem com uma cadeirante que fala sem pudores sobre o assunto, também há um choque por você ser mulher...
E agora tem um plus, de eu ser deputada [risos].
Qual é o tabu mais intenso nesse caso? No livro, por exemplo, você fala de ter transado com uma amiga, fala da primeira vez após o acidente, na UTI...
Acho que para as pessoas mais próximas, que são pessoas que são tão próximas que nem lembram da cadeira, que me criticam pela forma como eu falo, é o fato de ser mulher. Agora, para o público em geral, acho que é mulher cadeirante.
Para você, sempre foi uma questão natural?
Acho que sempre teve uma naturalidade, senão não sentiria essa liberdade para falar. Quando eu fiz o ensaio sensual para a [revista] Trip, em 2000, foi que isso surgiu, e eu até me assustei. De repente começaram a me chamar para ir a um monte de programas de TV, e só me perguntavam sobre sexo. Eu fiquei assustada, tipo vou virar uma especialista, a “sexóloga de rodas”?
Você gosta de ser rotulada como “um exemplo de superação”?
Ah, gosto. Tem tanto rótulo ruim, esse aí tá lindo. Você servir de exemplo pras pessoas... É uma honra, na verdade.
Tem medo da morte?
Não tenho medo de morrer. Às vezes, quando penso na morte, penso em tudo que vai ficar por fazer, como vai ficar minha equipe, se vão trabalhar com outro deputado. Mas não é um pensamento que me apavora, é um pensamento que vem e depois me dá vontade de omar um café. Tenho medo de umas coisas que não têm a ver com morte. Tenho medo de não ter alguém para me mexer – por exemplo, estou aqui dormindo com a Gil [a assistente mais antiga de Mara], aí acontece alguma coisa com ela, e eu vou ficar aí para sempre, na mesma posição. Isso me dá medo.
Você praticamente nunca está sozinha. Sente falta disso?
Mas estar sozinha é na hora que eu quiser, né? Eu ignoro ou peço para ficar sozinha. O que eu sinto falta às vezes é de coisas mais práticas. De sair da cadeira, arrumar o abajur – a iluminação da casa é uma coisa que está me incomodando. Vou fazer uma reforma. Agora, por exemplo, eu já levantaria, veria todos os recursos para melhorar a iluminação da sala, iria botar o café, colocar um som. Se eu estou sozinha com a Gil, eu demand muito. Sou um tipinho que demanda – eu quero a salada, a música, a luz, o cheiro, e não sei o quê. Mas o estar sozinho... basta você existir pra poder ter a sensação de estar sozinho. Acho que há muitas pessoas que estão cheias de gente do lado e estão se sentindo sozinhas.