A vida no Complexo do Alemão pelos olhos de Daiene Mendes, uma jovem estudante que busca, por meio da cultura e do jornalismo, novas possibilidades para o morro
Marcio Pimenta
Publicado em 17/11/2016, às 16h54 - Atualizado em 20/11/2016, às 22h44O complexo do alemão, bairro da zona norte do rio de janeiro, é considerado um dos mais violentos do estado: traficantes de drogas, milícias e polícia travam uma guerra na qual os moradores são os coadjuvantes. Estar lá por algumas horas não seria suficiente para sequer começar a tentar entender o que se passa. Seria preciso morar por alguns dias no Alemão para sentir o som, o cheiro e o gosto do conflito, como fazem involuntariamente seus habitantes. Eu queria, além disso, buscar saber como muitos jovens do morro encontram na cultura um ato de resistência contra o momento presente – momento no qual eles não têm muito a ganhar, e muito menos a perder.
Foi nessa busca que me deparei com Daiene Mendes, moradora do Alemão, estudante de jornalismo e estagiária do escritório da assessoria de imprensa da Anistia Internacional no Brasil. “Droga é uma coisa que a cidade inteira consome, mas a violência fica concentrada por aqui, no Alemão, na Maré, na Rocinha e em tantas outras favelas da cidade”, ela diz em um dos primeiros contatos, ainda em conversas pelo Facebook. Mais tarde, Daiene, de 26 anos, permitiria que eu passasse dias em sua casa, na comunidade de Nova Brasília, me guiando pela rotina no morro.
Apreciadora de cervejas artesanais, ela sugere que o primeiro encontro ao vivo ocorra em uma noite de sexta-feira do mês de julho, no bar Bistrô, o único a vender cerveja artesanal no Complexo do Alemão. Não foi nada difícil reconhecê-la: animada como um pequeno beija-flor, ela chega sorrindo e comentando, simpática, o fato de eu ainda não ter pedido nenhuma bebida.
“O Cristo Redentor abre os braços para a zona sul, mas dá as costas para o Complexo do Alemão”, diz Daiene. “A presença do Estado nas favelas é a polícia. Merecemos mais do que isso.” Até o fechamento desta edição, entre moradores e policiais, 32 pessoas haviam sido feridas e 14 mortas no Alemão em 2016. Em julho, a Anistia Internacional criou o aplicativo Fogo Cruzado, uma plataforma digital colaborativa na qual é possível registrar ocorrências de tiroteios na cidade do Rio de Janeiro. Apenas duas semanas após o lançamento, mais de 30 mil pessoas já haviam instalado o app e mais de 500 relataram tiroteios ou disparos de arma de fogo na região metropolitana da capital. O Complexo do Alemão estava entre os locais com maior número de registros.
Daiene Mendes e amigos deram vida ao jornal Voz da Comunidade, no qual falam com conhecimento de causa sobre acontecimentos no Complexo do Alemão. Essa foi uma das razões para ela ter figurado como correspondente em um especial a respeito do Rio de Janeiro antes e durante os Jogos Olímpicos no site do jornal britânico The Guardian.
O local onde a estudante mora fica em um caminho de ruas melancólicas, com casas pintadas em tons pastel ou nuas, com tijolos à mostra, e de muros pichados com mensagens de lembranças dos mortos no tráfico, repulsa à polícia ou apoio ao Comando Vermelho, a maior organização criminosa do Brasil.
Filha mais velha de pais religiosos, ela viu um novo mundo diante de si aos 16 anos, quando, em uma visita ao Museu da Vida, descobriu em uma exposição outras possibilidades sobre religiões e ateísmo, coisas que jamais haviam sido mencionadas dentro da casa dos pais. Foi também uma oportunidade para conhecer a cidade onde morava. “No Alemão, a maioria das pessoas não circula pela cidade. Nascemos, crescemos e morremos aqui”, afirma. “Falta repertório para que as pessoas olhem para fora e percebam a diversificação que a cidade oferece.”
Em um território onde o Estado só se faz presente por meio de uma polícia truculenta e mal preparada, a sorte lhe sorriu quando o pai trabalhou em uma empresa privada que oferecia bolsas de estudo aos filhos dos funcionários. Daiene foi matriculada em uma escola particular e de classe média. Lá, se assustou com o abismo econômico que existia entre ela e as novas colegas. “Elas usavam tênis Nike e correntes de prata. Aquilo me fascinava. Uma vez consegui juntar dinheiro para comprar um Nike em um outlet. Eu estava tão apaixonada por um modelo que comprei o único disponível, um número menor. Aquilo destruía os meus pés, mas eu andava com ele pra todo lugar pra que todo mundo pudesse ‘admirar’”, relembra, rindo.
Se a visita ao museu marcou um processo de abertura da mente, o dia 26 de novembro de 2010 ficou gravado como o início da perda da inocência. As forças policiais tomaram o Complexo do Alemão, anunciando um processo de pacificação do bairro e prometendo livrar a população da presença dos traficantes. “Eu estava vendo tudo pela TV. Chorei quando a bandeira do Brasil foi estendida no alto do morro. O Alemão estava ocupado. Pensei: ‘Nossa, agora seremos como qualquer bairro do Rio de Janeiro, teremos segurança, escola, postos de saúde, uma vida em paz’”, relembra. No entanto, seis anos após a ocupação, as esperanças de Daiene não se concretizaram – e a população quer a saída imediata das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora). “Nosso único questionamento é: por que a polícia ainda persegue o cidadão comum? Por que estão tentando impor uma cultura de medo que busca nos impedir de apontar erros e sugerir mudanças?”, escreveu ela no The Guardian, na ocasião em que um amigo teve três fuzis apontados para sua cabeça apenas por ser negro.
Hoje, 38 UPPs estão instaladas em toda a cidade do Rio de Janeiro. Segundo a Polícia Militar, isso significa que 264 territórios que antes eram ocupados por traficantes foram retomados. Mas os moradores sabem que o cotidiano ainda passa por acordar na madrugada ao som de intensas trocas de tiros. Nas quatro noites que passei no Alemão, houve tiroteios diariamente. “Está escutando esses tiros?”, indaga um morador enquanto comemos churrasco em um bar. “Fica tranquilo: quando eles estiverem mais fortes, é porque chegaram até a escadaria. Aí será a hora de corrermos daqui.” Não foram poucas as vezes que vi traficantes passearem armados de pistolas e fuzis como se estivessem portando guarda-sóis para ir à praia, enquanto jovens empinavam pipas, pais levavam seus filhos à escola e idosos varriam as calçadas.
Depois do par de tênis, Daiene quis uma corrente de prata. Comprou logo duas: uma para ela e outra para a então esposa, uma pesquisadora acadêmica que fazia dois mestrados simultâneos, em Direito e Sociologia, e morava na Barra da Tijuca, região nobre da cidade. Com seis meses de namoro elas formalizaram a relação em um cartório. Daiene mudou-se para o apartamento da companheira. “Então, me tornei uma favelada que bebe vinho. Era exótico. Por ter frequentado uma boa escola, eu conseguia ‘me comportar’ nos lugares. E isso choca e fascina as pessoas que guardam na memória estereótipos sobre como deve ser uma favelada.”
O casamento não durou muito (um ano), em parte por causa do contexto social. “Eu frequentava os círculos de amizade e a família dela, mas ela não fazia o mesmo por mim. Ela vinha pouco ao morro para visitarmos meus amigos de infância e a minha família. Acho que eu era apenas parte de suas pesquisas acadêmicas”, brinca Daiene. Logo depois da separação, sem dinheiro, ela ligou para uma amiga, que depositou R$ 20 em sua conta para que pudesse pegar o metrô de volta para o morro. Acabou indo parar no mesmo apartamento em que morava quando saiu de lá, aos 18 anos, e com um aluguel (R$ 200) que poderia assumir com a remuneração do estágio. O lugar com cerca de 12 m2 já foi sala de aula de uma escola infantil chamada Estrelinha Azul. “Só tinha um colchão. Depois vieram geladeira e TV.”
A vida recomeçava no retorno ao morro. “Durante o casamento me afastei de tudo, deixei meus projetos de lado, perdi até a bolsa de estudos da faculdade. Mas, agora, aqui é o meu lugar, aqui é onde quero estar”, diz Daiene, que tem em mente um novo projeto, o Favelê, cujo objetivo é incentivar o hábito da leitura entre os moradores de comunidades no Rio de Janeiro e promover a ida de crianças e adolescentes a museus e outros pontos culturais, para que, assim como ela, tenham a oportunidade de descobrir o Rio de Janeiro. Para isso, a estudante dispunha de uma Kombi na qual planejava montar uma biblioteca móvel. Apenas alguns dias após eu deixar o Alemão, a Kombi foi roubada e acabou ocasionando uma pausa no Favelê. Daiene pretende fazer uma campanha de financiamento coletivo para comprar outro veículo e tirar a ideia do papel.
O pequeno apartamento agora tem muito mais que colchão, geladeira e TV: está cheio de livros. Títulos que abordam jornalismo, história do Brasil, sociologia, poesias de Paulo Leminski e dois temas que se destacam e revelam o momento pessoal de Daiene Mendes – religião e autoconhecimento. Daiene quer se encontrar. Uma das maneiras como busca fazer isso é dialogando com os autores dos livros que lê. Ao lado do trecho “Se este livro funcionar do modo como pretendo, os leitores religiosos que o abrirem serão ateus quando terminarem”, de Deus, um Delírio, de Richard Dawkins, ela responde ao escritor com uma anotação feita a lápis: “Vamos ver, né?!?!” Naqueles dias, estava lendo Homens em Tempos Sombrios, de Hannah Arendt, quase sempre em pé no metrô ou sentada sobre uma pequena mesa de madeira ao lado da janela com grades do apartamento, enquanto sopra a fumaça do cigarro enrolado por ela mesma.
Durante minha estadia, Daiene me convida para ir ao casamento de uma colega dos tempos de escola. Vai ao salão e perde-se em dúvidas sobre qual vestido usar. Por fim, uma vizinha lhe empresta uma peça de provas da Animale em poliéster, cor nude (“Reconheço: aprendi que, sim, o tecido tem um valor social”). Do grupo de amigas, ela é a única a se recusar a ser madrinha do casamento (“Eu não teria tempo, e o vestido custaria caro também”), mas diverte-se bastante no reencontro. Espanta-se com o luxo visto como desnecessário da casa Royale e faz críticas ácidas ao discurso do pastor que celebra a cerimônia, especialmente quando ele sugere um papel de submissão da mulher em relação ao homem. Ao retornarmos para sua casa, recita um trecho do monólogo A Alma Imoral, de Clarice Niskier, uma peça inspirada em conceitos bíblicos e filosóficos.
Os contatos iniciais com o jornalismo ocorreram na ONG Voz da Comunidade, que produz o jornal de mesmo nome e que ajudou a fundar. Ficou lá por cinco anos, até que, após um desentendimento com outro fundador, decidiu se afastar (eles permanecem amigos e Daiene segue organizando as finanças do jornal). “Duas coisas que não farei mais na vida: casar e fundar uma ONG”, zomba. Na faculdade de jornalismo, estagiou no caderno de cidades do jornal O Dia antes de ir para a assessoria de imprensa
da Anistia Internacional.
Faltam pouco mais de dois semestres para se formar e ela ainda não tomou uma decisão sobre qual caminho seguir na profissão, mas é possível notar que tem consciência apurada de seu papel como futura jornalista. Certo dia, enquanto acompanhávamos uma manifestação que recordava os mortos no tráfico, um vendedor de frutas bradava contra os manifestantes, alegando que estavam prejudicando seus negócios. Um dos fotógrafos do jornal da comunidade reagiu contra o vendedor com um discurso arrogante, se colocando como uma espécie de salvador da comunidade. Daiene se opôs ao fotógrafo, fazendo com que se calasse. Após a pequena confusão, refletiu em voz baixa se há uma comunicação real entre o Voz da Comunidade e a comunidade à qual o jornal afirma dar voz.
Daiene Mendes sabe desde o berço que o Alemão é carente de instalações e atormentado pela pobreza. A violência das abordagens policiais torna tudo ainda mais difícil. As crianças que brincam nos poucos parques instalados crescem já com o sentimento de hostilidade em relação à polícia. Por que deveriam confiar em homens que açoitam seus pais por qualquer motivo? Paralelamente, forma-se um ciclo perigoso: com apenas duas creches e não mais que 15 escolas para uma população estimada de 60 mil moradores, as estruturas existentes não são suficientes para as demandas e, portanto, também atuam como meio de exclusão.
Chegamos ao último dia de convívio. A minha presença na comunidade passara a despertar a curiosidade dos traficantes – na derradeira noite, um deles fez vigia próximo ao apartamento. Naquela tarde, uma simpática senhora, dona de um bar, me questionou se eu desejava ser um “novo” Tim Lopes, jornalista brutalmente assassinado em 2002 no Complexo do Alemão a mando do traficante Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco.
É hora de ir. Jantamos com o tio de Daiene em uma pizzaria, enquanto homens armados passam na rua, em frente ao estabelecimento. Depois, visitamos a avó dela, que a presenteia com um bolo de laranja. De volta ao apartamento, ela põe para tocar músicas de Racionais MC’s, Negra Li e outros artistas que gritam dores, culturas e perspectivas que a zona sul não poderia compreender sentada em um boteco do Leblon.