CRIATURA URBANA Mojica como Zé do Caixão, em casa, na região central de São Paulo - Rui Mendes

José Mojica Marins, o Zé do Caixão, pode estar longe das telas, mas está ativo como nunca

Cineasta comemora 50 anos do personagem que inaugurou o terror no Brasil: Josefel Zanatas – ou Zé do Caixão

Marcos Lauro Publicado em 26/11/2013, às 13h12 - Atualizado às 14h45

Sábado, 14 de setembro. Poucos poderiam desconfiar de que o dia após a sexta-feira 13 seria mais tenso do que o próprio dia maldito. A programação da Cinemateca Brasileira, órgão federal localizado em São Paulo responsável pela conservação de originais de boa parte da história cinematográfica do país, não dava muitas pistas. Havia apenas certo “Encontro com Zé do Caixão” no site e nos folhetos. Mas foi Mariliz Marins, filha do cineasta José Mojica Marins, quem deu a dica, alguns dias antes: “Chamaram o papai para fazer um exorcismo no prédio da Cinemateca. Acho legal você acompanhar”.

A Cinemateca passa por um momento delicado. Por divergências políticas e mudanças no Ministério da Cultura, a entidade deixou de receber boa parte da verba que é responsável por manter tanto a programação de mostras – gratuitas ou com preços populares – quanto a conservação de rolos e mais rolos de filmes produzidos no Brasil. Naquele sábado, 14, a Cinemateca recebeu, do lado de fora, um protesto pela causa da instituição e, do lado de dentro, o tal “Encontro com Zé do Caixão”. Mojica foi convidado para os dois compromissos. Chegou, empunhou o microfone do lado de fora do prédio diante de jovens diretores e estudantes de cinema, ressaltou a importância da Cinemateca e, ao final, chamou todos para dentro.

Mojica é bastante assediado, especialmente quando está diante de um público que conhece cinema. Convites para outros eventos e assuntos aleatórios fazem com que a caminhada de 50 metros pela rua interna da Cinemateca dure cerca de cinco minutos. Parece haver um encantamento em relação à imagem icônica dele, como se alguma força espiritual (maligna?) abrilhantasse a presença do velho cineasta neste plano físico.

Dado início ao exorcismo, fica claro que o ritual não é exatamente espiritual (“Papai nunca fez isso, nem sei como vai ser”, avisou a filha, que vive a personagem Liz Vamp). O que é encenado é um espetáculo teatral que conta a história de um homem apaixonado por cinema que viveu produzindo obras que ora sofriam com a falta de patrocínio, ora sofriam com a incompreensão do público. E o Zé do Caixão abre e fecha o espetáculo, em um exorcismo simbólico para aquele prédio que sofre com espíritos de burocratas malignos e forças financeiras ocultas. “Sou um homem do improviso, em tudo o que eu faço”, Mojica explica posteriormente. “Quando começo um evento, fico de costas para a plateia, em silêncio, só ouvindo o que eles estão comentando. Pego isso e monto minha fala na hora.” No encerramento, o mestre de cerimônias das trevas convoca todos os presentes para a reação.

“Enquanto ‘patricinhos’ pegam as verbas do governo, gastam com carros e drogas e entregam qualquer porcaria de filme, nós estamos com problemas financeiros”, Zé do Caixão declara. “Precisamos juntar forças e acabar com isso, valorizar mais o nosso trabalho.” O improviso, de repente, dá lugar à mobilização: a intenção do discurso passa a se reunir jovens cineastas para chamar a atenção do poder público para a causa do cinema independente nacional.

Não é a primeira vez que José Mojica Marins reúne multidões a favor de uma causa. Em 1982, ele se candidatou a deputado federal pelo PTB, apoiando Jânio Quadros como governador de São Paulo. Na lista de propostas do candidato estava a liberação do jogo de bicho e a regulamentação da prostituição, entre outros assuntos menos espinhosos para um país que vivia o fim de um regime ditatorial. Mesmo com comícios lotados em diversas regiões da cidade, Mojica não passou dos 1.228 votos, ficando em 256º lugar entre 278 candidatos.

A atual missão de Mojica parece um pouco mais alcançável do que aquela antiga vaga no Legislativo. O cineasta de 77 anos pretende chamar a atenção do poder público para a causa do cinema independente nacional, injetando a causa na mente dos profissionais do cinema por onde for passando, mas encontra uma barreira: a falta de conhecimento da nova geração sobre a história do cinema feito no país. “Eu não encontro mais Luis Sérgio ‘Persão’ [o sobrenome é Person, mas Mojica não consegue pronunciar palavras que terminam em “on”; o costume se tornou uma marca registrada dele], Rogério Sganzerla, Jairo Ferreira e Carlos Reichembach por aí”, desabafa Mojica, citando alguns cineastas da geração dele. “A maioria dos diretores que lutaram realmente pelo cinema nacional já morreu. Às vezes me sinto sozinho nesta briga.”


E, se o objetivo atual de José Mojica Marins é a mobilização em favor do cinema nacional, foi outro sonho que deu origem a toda a fama dele como cineasta. Ele não sabe mais precisar a data, mas em determinada noite do início de 1963 sonhou que ele próprio, de capa preta, cartola e garras enormes, o arrastava da cama até uma cova no cemitério. Lá, viu uma lápide com as datas de nascimento e da própria morte – Mojica jura que, mesmo no sonho, não quis enxergar a data da morte e virou o rosto. Acordou assustado, mas com a ideia do personagem já montada na sua cabeça. Nascia o Zé do Caixão, que ganhou “nome civil” de Josefel Zanatas – note o “satanás” de trás para a frente no sobrenome.

As filmagens de À Meia Noite Levarei Sua Alma começaram em 17 de outubro de 1963. A data não deu início somente a uma trilogia cinematográfica de terror, mas ao gênero propriamente dito no país – em uma época sem leis de incentivo e em que cada cineasta dependia da boa vontade de produtores, distribuidores e parceiros. O primeiro filme foi lançado no ano seguinte, 1964. O segundo, Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, em 1966. O encerramento, Encarnação do Demônio, chegou às salas escuras do país somente em 2008. Foram diversas tentativas para terminar a trilogia ainda nos anos 1960, mas o que restou foi apenas material estragado, que pode eventualmente se tornar mais uma obra nas mãos de Mojica.

“Minha ideia é juntar esses retalhos e fazer um filme explicando tudo isso – ‘Olha, a filmagem foi interrompida aqui por tal motivo, o país vivia a situação x’”, Mojica diz, descrevendo o que seria uma espécie de documentário sobre a história de um filme não realizado com um resgate histórico não só do personagem, como da situação política do Brasil durante a Ditadura Militar. “Eu realmente só não morri porque comecei a namorar a filha de um general. Mas antes cheguei a ir pro DOI-Codi [órgão responsável pelas detenções políticas da época]. O Persão me falou para eu cair fora do país, mas aguentei firme!”, relembra o diretor, que aproveita para cutucar novamente a nova geração de cineastas brasileiros. “Recebo estudantes para trabalhos de faculdade, mas eles não sabem de nada disso. Não sei o que está acontecendo.”

Entrevistar José Mojica Marins é tarefa das mais incomuns que um jornalista pode experimentar. Em vez de responder às perguntas, ele fala sem parar, contando detalhes da trajetória. Talvez por não se lembrar de nuances ou pela vontade de reforçar detalhes, o cineasta conta histórias repetidas em diferentes ocasiões, sempre com a mesma intensidade e brilho no olhar. Isso, somado aos muitos cigarros acendidos um na sequência do outro, forma o que poderia ser uma cena genérica de um dos filmes dele, com um ambiente esfumaçado e uma constante sensação de déjà vu.

Comemorando os 50 anos do Zé do Caixão em 2013, Mojica teve a agenda intensificada ao longo do ano. Mesmo aos 77 anos, encarou constantes viagens para palestras e workshops sobre longas-metragens e terror. Enquanto isso, permanece longe de novas produções para as telonas. “Não me sobrou tempo neste ano, mas já penso em algumas coisas para 2014”, confidenciou, sem dar mais detalhes. Mesmo longe da sua atividade principal, o cinema, Mojica não dá indícios de desânimo. Recentemente, foi convidado a ir ao México para dar uma master class na Cineteca Nacional e participar de eventos, totalizando dez dias no país. E antes do exorcismo do sábado, 14, o Rio de Janeiro recebeu Mojica para um evento do Sesi. Outro convidado da noite foi outro especialista em filmes de terror, o diretor capixaba Rodrigo Aragão.

Entre os novos nomes que se engajam de fato na cena atual, Mojica sempre cita Aragão, 36 anos. “Não tivemos muitos diretores que amavam o gênero nas últimas décadas, e terror é difícil. Acho que só deveria ser produzido por quem realmente gosta. E é claro que a censura desestimulou muitos pretendentes”, explica ele, que dirigiu filmes como Mangue Negro (2008) e A Noite dos Chupacabras (2011) e agora lidera uma geração de fãs do gênero que resolveu meter a mão na massa – ou no sangue de mentira. “Falta o mercado abrir os olhos e nos tratar com o mesmo interesse que recebemos do exterior. Essa história de ser maldito na terra que nasceu não é bonita!”

Mojica, aliás, até hoje não entende muito bem a razão pela qual o terror brasileiro não ter deslanchado. “O Brasil tem um folclore muito rico, histórias impressionantes... e as religiões afro-brasileiras têm roteiros praticamente prontos de filmes de terror, mas não sei por que o gênero não emplaca de vez por aqui”, o veterano diz, agora em tom de lamento. “Mas vejo o Aragão como um dos meu sucessores.” O discípulo retribui: “Mojica mostrou que era possível produzir com pouco dinheiro, solucionar problemas com criatividade, trabalhar e canalizar a paixão de todos à volta para o cinema”.


A outra grande paixão da vida de Mojica é menos óbvia: o Corinthians. O primeiro de nossos encontros, em abril, foi em um workshop para uma turma de sete alunos sobre técnicas de filmagem que resultaria na produção de um curta-metragem. Ao mesmo tempo, o time enfrentava o Linense pelo Campeonato Paulista, em um período que penava para vencer adversários fáceis. Nos intervalos entre uma fala e outra, Mojica queria saber do Corinthians. Através de informações vindas de meu smartphone, ele acompanhou o Corinthians perder por 2x1. “Até desanimei!”, exclamou, enquanto os alunos se preparavam para as cenas finais. O curta em questão apresentava uma cena de canibalismo – uma linguiça, pipoca doce e sangue cenográfico faziam as vezes das entranhas do aluno escolhido para ser jantado por zumbis. O exercício propunha que cada aluno elaborasse a história da própria morte, contando-a para a câmera na forma de um depoimento vindo direto do inferno.

No encontro seguinte com Mojica, meses depois, a sorte no jogo continuou sem dar as caras: o Corinthians havia acabado de perder de 4x0 da Portuguesa, pelo Brasileirão. “O time tem um baita elenco, mas quando a coisa começa a dar errado não para!”, observou o fanático. Aproveito para questionar se, assim como Mazzaropi e o clássico Mazzaropi – O Corintiano (1966), Mojica nunca sentiu vontade de colocar o time do coração nas grandes telas. “Nunca. Mas conversei com o Mazzaropi para fazermos um ‘terrir’, um filme em que eu faria a parte do terror e ele atuaria como o caipira de sempre. Mas ele acabou falecendo antes de começarmos o projeto”, conta. Mojica se acostumou a ver os parceiros indo embora, deixando a luta pelo cinema brasileiro em suas literais grandes garras, ao lado da cartola e da capa preta, a marca registrada do Zé do Caixão. Nos anos 90, realizou diversos eventos de corte das unhas. Desde então, deixa crescer moderadamente, e somente as da mão esquerda (especialmente a do polegar) – nada comparável com o tempo em que as unhas faziam curvas. A decisão foi por orientação médica, já que o hábito estava causando atrofia nas mãos.

José Mojica Marins sempre foi um artista multimídia. Além do cinema, já atuou na música, teatro, rádio, revistas em quadrinhos e, claro, na televisão – isso sem contar o automóvel VW 1600, da Volkswagen, que ganhou o apelido de “Zé do Caixão” em 1968 devido às formas nada arredondadas. Depois de aterrorizar uma geração que não teve contato com os filmes dele no semanal Cine Trash, extinto programa da TV Bandeirantes, Mojica atualmente faz parte do plantel do Canal Brasil com O Estranho Mundo de Zé do Caixão. O talk show teve contrato renovado e parte para uma sétima temporada em 2014. “Se depender de mim, sigo com o programa até o fim da minha vida”, diz o agora apresentador, que entrevistou uma lista surreal de celebridades, que vai de Mallu Magalhães a Lima Duarte, passando por Nelson Sargento e Rogéria.

Mojica mora há mais de 20 anos no bairro de Santa Cecília, zona central de São Paulo, no mesmo prédio onde já manteve um escritório, o que soma cerca de 40 anos na região. Já se mudou algumas vezes e, a cada mudança, foi perdendo itens importantes do acervo pessoal. O apartamento atual é antigo, de cômodos amplos, e, não fosse por alguns pequenos objetos de decoração, não evidenciaria que o espaço abriga o maior cineasta de terror da história do Brasil. Em cima da geladeira, em vez do tradicional pinguim, um crânio de porcelana. Na sala, mais caveirinhas dividem espaço com um sofá branco e uma grande mesa de jantar, onde repousa a famosa cartola do Zé do Caixão, desenhada pelo estilista Alexandre Herchcovitch em 2008, especialmente para Encarnação do Demônio. Atrás de uma porta, um cartaz original e emoldurado de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver.

Apesar de ser figurinha fácil pelas ruas do centro, não há quem não se surpreenda ao encontrar Mojica – ou, para a maioria, o Zé do Caixão – em pessoa, trajado casualmente, em caminhadas despreocupadas. A figura dele, que por muitos anos transitou a linha tênue do caricato, folclórico e ridículo, hoje tem o respeito reconquistado por causa da trajetória percorrida, estudada e compreendida por um maior número de admiradores. Valorizando o culto em torno de si, Mojica aprecia e desfruta com gosto o reconhecimento merecido. Ao mesmo tempo, ele também pode estar em um evento cheio de estudantes, diante de uma plateia repleta de admiradores ou cercado por meia dúzia de repórteres sedentos por frases de efeito, e ficar totalmente alheio ao assédio, perdido nos próprios pensamentos, preocupado apenas em encontrar a resposta para uma única questão essencial: “Quanto tá o jogo do Corinthians?”

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