Ziggy Tocou Guitarra (e falou)

Se hoje Bowie não conversa com jornalistas, durante a carreira fez o oposto, explicando cada mudança musical e pessoal pelas quais passou. Leia nas diversas entrevistas a seguir

Redação

Publicado em 07/02/2013, às 16h11 - Atualizado em 17/02/2016, às 18h28
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<b>ASTRO ALIEN</b> Bowie na fase Ziggy Stardust, quando encarnava um ET - MICHAEL OCHS ARCHIVES/GETTY IMAGES

Em 1972, David Bowie conquistava os Estados Unidos na pele colorida do extraterrestre Ziggy Stardust. O jornalista Timothy Ferris acompanhou parte da lendária turnê que garantiria um capítulo especial na vida de Bowie – e também nos livros de história da cultura pop.

Um olho é verde, o outro alterna entre verde e laranja. As botas são de um vermelho brilhante, com saltos de mais de 6 centímetros. A blusa é laranja e transparente. O cabelo, tingido da cor de uma cenoura lustrosa, é empinado reto acima de sobrancelha. David Bowie já era magro antes de chegar à América do Norte e perdeu mais peso desde então; sua pele lisa parece esticada, ligando cada osso como se fosse um fio de telégrafo passando por cada poste. Ele muda de expressão constantemente, como o vento soprando sobre a superfície de um lago, como eletricidade estática. Tudo na aparência parece extremo. Ele está sentado reto em uma poltrona no quarto de hotel em Cleveland. Do outro lado da janela há vários prédios novos – parece o mostruário de uma construtora. Dois repórteres – um de um jornal local, outro da revista Creem – entrevistam Bowie. Ele responde com uma voz suave, quase um murmúrio. Encara o interlocutor, depois olha para o chão. Tudo em seu comportamento parece moderado.

“Você acha que toda a cena bissexual da Inglaterra deve muito a Ray Davies?”, pergunta o Sr. Cream. “Acho que sempre houve uma cena bissexual na Inglaterra”, diz Bowie. “Eu sei, mas quero dizer, por ter trazido isso à tona”, o repórter insiste.

O Sr. Jornal de Cleveland interrompe: “Davies não fica falando disso, entretanto. Ele parece ter se esquivado do assunto. Em duas entrevistas específicas que li, ele evitava falar a respeito.” Bowie completa: “Não é algo que cabe a mim interpretar”.

“O grande enredo por trás de ‘Five Years’, como surgiu?”, diz o Sr. Jornal de Cleveland.

“É...”

“É obviamente uma ficção científica, uma coisa futurista, mas como surgiu o lance de decidir que o mundo iria terminar em cinco anos?”

“Aquela tinha sido uma tarde ruim.”

“Você compõe a maioria das músicas no piano?”

“Em tardes ruins.”

“Qual a história por trás da frase ‘I wanted TV but I got T. Rex’ (‘Queria TV mas só tinha T. Rex’)? De onde veio essa música?”

“Foi escrita para Marc Bolan. Foi a primeira que compus para outra pessoa. A banda deles estava a ponto de se separar e eu disse para não fazerem isso, porque achava que era muito boa. Falei que escreveria um single de sucesso para ele. E escrevi. Foi fácil.”

Criado em bairros barra pesada no sul de Londres, David Jones é filho do relações públicas de um orfanato. Um único soco em uma briga quase lhe custou o olho esquerdo. A cirurgia preservou parte da visão, mas o deixou com a pupila paralisada. O reflexo de luz forte no fundo da retina faz com que o olho pareça laranja ou dourado, como o de um gato pego pelo farol de um carro. “Isso me tornou bem pacifista”, diz Bowie. “Fiquei de cama tanto tempo depois disso, com as operações no olho e tudo mais. Por causa de um único movimento perdi sete ou oito meses.”

Ele abandonou a Bromley Technical High School, passou por uma fase infeliz como artista comercial em uma agência de publicidade, formou um grupo chamado David Jones and the Lower Third e lançou um álbum. Quando o David Jones da banda Monkees ganhou proeminência, o David Jones de Bromley mudou o sobrenome para Bowie, que também é o nome de um tipo de faca.

Intermitentemente por alguns anos, Bowie se apresentou com a trupe de mímicos de Lindsay Kemp. Ele diz que a experiência foi importante para ajudá-lo a criar a performance de rock altamente estilizada que executa hoje. Na Inglaterra, fez um show que incorporava mímicos maquiados, mas não os trouxe para a turnê americana por causa dos custos.

Bowie é vago quanto a idade, mas fica claro que está no meio de seus 20 e poucos anos e que tem atuado nos palcos de um jeito ou de outro por mais de um quarto da vida. Já gravou cinco álbuns, incluindo The Man Who Sold the World e dois pela RCA, Hunky Dory e The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders of Mars. Debates sobre bissexualidade à parte, Bowie é ao mesmo tempo gay e casado com a esposa. Eles têm um filho, Zowie.

David Bowie e a esposa chegaram a bordo do Queen Elizabeth II e pegaram o ônibus rumo a Cleveland. Bowie não gosta de voar, mas descobriu que gostava do ônibus Greyhound; frequentemente o cantor sentava sozinho nos fundos, escrevendo suas músicas ou observando a paisagem pela janela. Os primeiros shows tiveram reações dúbias da crítica. Alguns resenhistas pareceram desapontados por Bowie não ser uma espécie de Super Alice Cooper, uma rainha do rock gay e um degenerado elétrico o tempo todo. Uns poucos momentos no palco podem ter contentado essas almas – como quando Bowie se ajoelha e faz um tipo de sexo oral na guitarra de Mick Ronson – mas, no geral, todos eles tiveram que encarar: não houve ninguém desmunhecando no palco.

Assim, as avaliações variaram enormemente. A minha foi que Bowie é a figura mais forte a surgir no rock em anos. É um daqueles artistas que comandam com facilidade o olhar do público a cada movimento no palco. Em sua teatralidade controlada, sua habilidade de transmitir versos altamente comprimidos e na ansiedade constante que consegue fazer brotar na plateia, me lembra Bob Dylan. Ele absorveu Dylan, os Beatles, Elvis e mais meia dúzia de outros, mas o que emerge disso é substancialmente dele próprio.

O show tem todo um fator de espetáculo. Os Spiders from Mars usam trajes colados e luminescentes, cabelos tingidos e riffs precisos. Bowie não para de se mexer, fazendo poses reminiscentes de dúzias de outros roqueiros mais antigos e se comporta muito como um fantoche. Apesar de toda essa preparação, o show retém muito de espontaneidade em uma época em que os concertos da maior parte das grandes estrelas atuais parecem enlatados.

Bowie conseguiu fazer apresentações em Cleveland e Memphis antes de ser alcançado por uma gripe. Quando chegou ao Carnegie Hall, já estava com febre. A gripe havia progredido para um estágio desgastante quando visitei Bowie em seu quarto no Plaza alguns dias depois. Ele respondeu às perguntas como alguém gripado responderia. O olhar voltado para o vazio por um longo tempo, seguido de uma sequência preocupada de palavras. “Não sou um intelectual em hipótese nenhuma”, ele disse, fungando. “Fiquei muito preocupado quando vi algumas propagandas pré-turnê sobre mim nos Estados Unidos, que me citavam como fazendo parte de algum tipo de intelligentsia new wave. Também não sou primitivo. Me descreveria como um pensador tátil. Vou pegando as coisas... Sou uma pessoa fria. Uma pessoa muito fria. Tenho um impulso lírico, emocional forte e não sei bem de onde isso vem. Não tenho certeza se sou mesmo eu que transpareço nas músicas. Elas saem e eu as ouço depois e penso, bem, quem quer que tenha escrito isso tinha um sentimento muito forte quanto ao tema delas. Não consigo ter sentimentos assim tão fortes. Fico anestesiado. Me vejo andando por aí anestesiado. Sou meio que um homem de gelo.”

Psicologia à parte, Bowie falou sobre as dificuldades de mapear sua carreira como A Estrela dos Anos 70. “É muito difícil determinar que rumo esta nova era do rock vai tomar. Há definitivamente algum tipo de nova era surgindo... Há uma volta do espírito do entretenimento. Mas há também uma mistura de relevância social, é bem difícil determinar se os próximos artistas vão existir como figuras ainda maiores por causa do mérito como entretenimento ou se terão esse status grandioso por causa de algum tipo de valor social mais nobre.”

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Com Let’s Dance (1983), David Bowie atingiu um nível de sucesso que não havia conquistado antes. O álbum chegou ao número 1 da parada britânica e ao top 5 nos Estados Unidos, originando três singles de sucesso: “Modern Love”, “Let’s Dance” e “China Girl”. No ano seguinte, com o lançamento de Tonight, o artista parecia decidido a seguir a fórmula dançante do sucesso e tentou explicar sua nova posição ao repórter Charles Shaar Murray.

Então você acredita que o pop em sua melhor forma é subversivo e perigoso, ao contrário dos itens de consumo inofensivos de hoje?

É muito interessante ouvir Julien Temple falando sobre “os velhos tempos”, quando ele pensa na época do Sex Pistols. Você menciona 1977, e ele diz: “Oh, aquela época era tão perigosa”. Bem, 1977 não faz tanto tempo assim, faz? Se as coisas forem cíclicas como devem ser, então aquela época está destinada a voltar. Não peguei o grosso disso tudo, porque foi no período em que eu estava me ajeitando em Berlim, e lá isso veio de outra direção, sem toda aquela raiva e ódio presente na Inglaterra. Para mim é tudo como filmagens de arquivo, e não consigo ter o mesmo sentimento. Realmente me arrependo de ter perdido isso. Imagino como eu teria recebido. Adoraria ter visto os diálogos na televisão e o clima nas casas noturnas da época. Claro, é um clima muito mais saudável. Claro que é.

Você consegue se ver contribuindo com outra ruptura dessas?

No rock, acho muito difícil... Depois do ponto de vista inicial que você coloca quando começa. A menos que seja capaz de adotar mais que essa postura inicial, é difícil surgir com outra que tenha a mesma força que a primeira tinha. Para mim, o começo dos anos 70 foi o que me deu abertura. Não acredito que eu poderia contribuir tão agressivamente novamente. Mas o interessante do rock é que você nunca acha que vai durar muito tempo. Tenho 37 anos, quase 38, e me pego pensando: “Ainda estou fazendo isto!” Por isso você está sempre redefinindo tudo o tempo inteiro. O rock continua mudando tão rápido e tão furiosamente, que fica impossível planejar qualquer coisa com antecedência. Tenho duas ou três coisas em mente: fazer mais trabalhos com Iggy Pop e tentar compor algo que seja extraordinário e ousado. Estas são as únicas coisas na música que eu sei que estarei fazendo no futuro. Além disso, não sei. Nunca sei de nada.

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Chegando ao fim dos anos 80, especificamente em 1987, David Bowie já estava estabelecido como ícone não só musical, mas também de estilo. E as duas décadas de carreira já permitiam que ele se referisse com naturalidade ao passado, como fez nesta entrevista a Kurt Loder.

Você tinha alguma noção do que era estilo quando criança?

Sim, eu gostava de como as coisas combinavam e me interessava em saber como isso funcionava. Mas eu acho que sempre fui atraído pelo tosco [risos], então isso acabou me salvando, mesmo: eu nunca estava muito inteirado no gosto sofisticado quando a coisa ficava sofisticada demais. Eu não me importava com o senso de elegância e estilo, mas gostava quando a coisa ficava um pouco fora do convencional.

Seu personagem Ziggy Stardust significou um ousado distanciamento do rock. Como foram aqueles primeiros shows?

O difícil foi convencer a banda a fazer tudo aquilo.

Eram caras do rock, dos pubs, não?

Sim, esse era o maior problema, aliás, o fato de a gente não pensar nem um pouco igual. Era tipo: “Cara, qual é – não vamos ser apenas mais uma banda de rock, pelo amor de Deus” [risos]. Mas eles eram uma bandinha incrível, sabe? E embarcaram na ideia assim que descobriram que atrairiam mais garotas. Virou tipo: “Ei, elas gostam destas botas”. Pensei: “É, agora sim”. Era o que precisava. Foi só incluir uma pitada de sexo no meio e eles piraram. O cabelo deles de repente virou... oh, eram todos de cada cor possível e imaginável. Justo aqueles caras que duas semanas antes não tiravam os jeans de jeito nenhum [risos].

De onde vieram as roupas da fase Ziggy? Era você que as desenhava?

Não, foi um designer de quem eu já tinha visto as roupas, um cara chamado Kansai Yamamoto. Agora, claro, ele é um designer internacional, mas na época era muito experimental – as coisas dele eram bem diferentes do resto. Por isso as primeiras eram influenciadas por ele, e aí eu o conheci, e ele fez todas as que você realmente conhece – as roupas, as partes destacáveis, tudo aquilo. Ele disse: “Oh, essa banda é esquisita – hihihi – eles vestem minhas roupas”.

Você concebeu Ziggy como o rock star de plástico definitivo; ironicamente, a música que “ele” fez era ótima.

Eu sei, eu sei. Agora soa legal, sim. Acho irônico quando vejo uma banda como, digamos, o Sigue Sigue Sputnik, que é tão outré, tão absolutamente na veia de Ziggy, sabe? Tanto tempo depois, e a cabeça colorida dele ainda desponta por aí.

Aladdin Sane foi feito para ser uma transição consciente depois do personagem Ziggy ou algo completamente diferente?

Era para ser... Uma passagem: saindo de Ziggy sem saber de verdade para onde estava indo. Era um pouco efêmero, porque era algo que ainda estava no ar.

Você elaborou a maquiagem de Aladdin Sane sozinho?

Fui eu que inventei aquela coisa do raio no rosto.

O que significava?

Um relâmpago. Algo elétrico. Em vez de, tipo, a chama de uma lâmpada, achei que ele provavelmente seria marcado por um relâmpago. Uma coisa meio óbvia, já que ele era uma espécie de garoto elétrico. Mas a lágrima foi ideia de Brian Duffy, um fotógrafo inglês. Ele colocou isso depois. Achei bem legal.

E como Aladdin Sane se transformou na fase do disco Diamond Dogs?

Sabe-se lá Deus! Sei que o ímpeto para Diamond Dogs surgiu tanto de Metrópolis quanto do livro 1984 – eram as duas coisas que influenciaram. Na verdade, Diamond Dogs era para ser uma nova versão de 1984 – tentei conseguir os direitos musicais e transformá-lo em um musical. Mas meu escritório não se dignou a fazer algo a respeito, e então descobri que se ousasse encostar na obra, a sra. George Orwell iria me processar. Então, de repente, tive que mudar de ideia no meio da gravação, entende?

Young Americans, o álbum após Diamond Dogs, marcou uma direção artística nova para você – mergulhada nos ritmos negros dançantes. O que acha do pop negro atual?

Não há ninguém que me fascine. Não estou mais na mesma sintonia de Lionel Ritchie. Gostei de “Word Up”, do Cameo, então fui ouvir o álbum e dormi. O rap é a única coisa ousada no momento – Run-D.M.C é um dos meus favoritos. Mas tenho dificuldade com muito da música negra agora – é tudo meio dançante, não tem nada vulnerável ali, entende? Acho que o Prince é provavelmente o melhor da safra atual.

Em 1976, você se mudou para Berlim, e no ano seguinte começou um período avant-garde com o lançamento dos álbuns Low e “Heroes”. O que você acha da música de vanguarda hoje?

Bem, na América ela parece ter morrido.

Parece ser mais voltado para cada carreira.

Isso é interessante. Há Philip Glass, que agora está no zênite de sua carreira profissional, e Laurie Anderson, que faz shows na TV e nos palcos. Na Alemanha, esse período acabou. Acho que estava chegando ao fim na época em que deixei Berlim. O que tem surgido agora em Düsseldorf é bem chato.

E o Kraftwerk? Em “Heroes” há uma música cujo título é uma homenagem a Florian Schneider, que faz parte do grupo. O que você acha das músicas mais recentes deles?

São impecáveis como sempre. E boas, dentro de seu gênero. Mas eles são como artesãos – eles decidiram que vão fazer uma cadeira de madeira em particular, como desenharam, e cada uma delas será lindamente executada, mas todas as cadeiras serão iguais. É como uma indústria caseira. São artesãos.

Acha que o rock mudou?

O rock and roll é feito para nós – não para os garotos. Nós compomos, nós tocamos, nós ouvimos. Nós ouvimos rock. Os garotos ouvem outra coisa – eles têm uma nova necessidade musical, de um jeito diferente.

Você mudou muito com o passar dos anos?

Sou hoje muito mais como eu era em 1967, digamos, do que como era em 1977. Me sinto assim pelo menos. Mais alegre e otimista do que era – o contrário de quando me sentia deprimido e meio niilista no anos 70. Acho que, nesse sentido, completei o ciclo.

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Em 1999, quando lançou ‘Hours...’, Bowie já era conhecido como músico, ator, pintor, patrono das artes e pioneiro da internet. E tudo sem perder o charme, como comprovou a repórter Mim Udovitch ao entrevistá-lo.

Você é absurdamente inteligente, não?

Não! Não mesmo. Sou completamente instintivo.

Não se vê como intelectual?

De jeito nenhum. Nem remotamente! Coloque-me em uma sala com Brian Eno, que é um intelectual de verdade, e fico desnorteado.

Qual é a sua memória mais antiga?

É muito estranha. Eu estava deitado, devia ter 4 anos. Senti uma presença no jardim, então fui até a janela e estava muito escuro. Havia dois boxers, ou pelo menos pareciam boxers, só que em duas formas espectrais brancas e brilhantes, lutando. Eles viraram e olharam para mim, e eu corri de volta para a cama, cobri a cabeça e não consegui mais dormir.

Você se lembra dos seus sonhos?

Sim, e eu os transcrevo.

Conte um.

Não vou fazer isso, mas digo que pelo menos 33% das letras que escrevo têm referências aos sonhos.

Exatamente 33%?

Digamos 33%, uma vez que essa é a velocidade dos velhos LPs de vinil em RPM. Sonhos a 33%. três anos mais tarde, em 2002, david bowie revelou à mesma Mim Udovitch que já parecia estar plenamente consciente de quem ele realmente era – com uma pequena ajuda da família.

Ei, você não está fumando! Parou?

Parei. Mas você quer fumar?

Não, tudo bem. Mas estou chocado por você ter parado. É um grande feito.

Não é? E isso é o resultado de ter uma filha? Acho que sim. É o resultado de ter passado a maior parte do inverno fumando na varanda? Em grande parte.

Falando sobre o novo disco, Heathen, você se descreveu como sofrendo de “um bipolarismo fraco”.

Credito isso ao fato de eu ser canhoto. É o sinal do diabo, como todo mundo bem sabe. Embora eu tenha lido que os canhotos são bem mais espertos.

E estranhamente você se lembrou disso.

Implicavam comigo quando eu era pequeno por ser canhoto.

Quem implicava?

As crianças. Na escola, me lembro muito bem das crianças rindo de mim porque eu desenhava e escrevia com a mão esquerda. Era algo como: “Oooh, você é o diabo”.

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Quando David Bowie lançou Reality (2003), nada indicava que seria o último disco dele em dez anos. Em entrevista a Austin Scaggs, ele não dava sinal de que queria parar e deixava clara a paixão pela música.

Seu primeiro instrumento foi o saxofone. Por que o sax?

Meu irmão era muito fã de jazz. Ele tocava para mim coisas bem diferentes, como Eric Dolphy e John Coltrane. Eu queria um barítono, mas ganhei um sax alto.

Você tem uma coleção de instrumentos?

Perdi e quebrei tanta coisa – e isso realmente me irrita. A única coisa que tenho e é vagamente interessante é meu stylophone, da época de Space Oddity. Ao longo dos anos, doei muita coisa para a caridade. É aquilo, você pensa: “Oh, não posso ficar dando tanta importância para isso”. E depois, se dá conta: “Onde é que eu estava com a cabeça?”

Quando foi a última vez que uma música fez você chorar?

Há uma que me deixa de um jeito que nenhuma outra é capaz. Chama-se “Four Last Songs”, composta por Richard Strauss. Particularmente na execução de Gundula Janowitz. Essa definitivamente consegue me levar às lágrimas.

Você coloca música quando acorda?

Sim, coloco. Ainda ouço vinil. Depois de jogar muita coisa fora, devo ter ainda uns dois mil discos. É a nata de toda a coleção que tive. É muito diversa. Tem de tudo, do blues do Delta a Jacques Brel. São poucas as músicas de que eu não goste ao menos de algum aspecto – exceto country & western, que não suporto.

Qual foi o último grande show que assistiu?

Este ano vi o Radiohead no Beacon Theatre [em Nova York]. Suspeitava que eles eram a melhor banda no momento, e a apresentação me convenceu. Mas também vi Lou Reed no Town Hall. Achei magnífico. Havia algo tão fundamental no que ele fez, e isso lhe deu tanto espaço para entrelaçar anedotas e comentários espirituosos – algo em que Lou é muito bom. É estimulante, porque significa que não importa a sua idade – é tudo uma questão de intenção, integridade e o poder de afetar as pessoas.

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