Lançado nesta quarta-feira, 24, o segundo disco se distancia da aridez sonora do trabalho autointitulado lançado em 2014
Gabriel Nunes Publicado em 24/08/2016, às 13h58 - Atualizado às 18h39
Por Gabriel Nunes
Princesa representa uma ruptura em relação ao disco de estreia do Carne Doce. Diferentemente do debute – que foi concebido na terra natal dos músicos, Goiânia – o mais recente trabalho do quinteto foi registrado em terras paulistanas. Longe de casa, os goianos deixaram o estúdio caseiro e se enclausuraram entre as paredes centenárias da Subestação Riachuelo (atual Red Bull Station) para confeccionar o segundo álbum da carreira. Gravado no intervalo de um mês, o disco se distancia da aridez sonora do trabalho autointitulado de 2014. Esse desligamento em relação ao primogênito está inevitavelmente subordinado à transferência da capital do cerrado para a pauliceia desvairada. No entanto, atribuir a metamorfose musical unicamente à questão geográfica seria limitá-la.
É evidente o aperfeiçoamento do senso de pontualidade entre os integrantes. Essa maior desenvoltura – o saber a nota certa na hora certa – é resultado da convivência sobre e fora dos palcos. Trocando em miúdos, os membros do Carne Doce aprenderam nesses dois anos a conversar melhor como banda. O que não significa, meramente, que hoje em dia eles toquem melhor do que na estreia. Parafraseando Nietzsche: o violino tocado pelo mais virtuoso dos violinistas pode ser confundido com um arranhado qualquer quando a sala é grande demais. É preciso se fazer ouvir. E foi isso o que Salma Jô, Macloys Aquino, João Victor Santana, Ricardo Machado e Aderson Maia fizeram nesse lapso temporal que separa Carne Doce de Princesa.
Como as rupturas deixam marcas perenes, o Carne Doce traz para o segundo disco a ironia ambivalente do primeiro. No entanto, o mais recente trabalho do grupo não surge como um apêndice do anterior, ou então como uma continuação inconsistente que busca viver das reminiscências de uma estreia notável. Pelo contrário. Princesa aparece como uma entidade independente de seu antecessor.
O segundo disco do Carne Doce oscila entre extremos. Na faixa homônima, a intérprete subverte, em uma psicodelia sacolejada e dançante, a lógica do pop romântico – na voz masculina o trecho “princesa, meu jeito vulgar vai te conquistar” soaria como um pastiche de filosofias de botequim. Em “Amiga”, uma balada melancólica marcada pelos teclados pausados, que soam como guitarras, Salma retrata a mulher que flerta com a solidão, mas que se sente sufocada pelas convenções sociais que exigem dela desenvoltura e extroversão o tempo todo.
Já em “Eu Te Odeio”, o contralto sussurrado da goiana se confunde com o dedilhado cadenciado de Aquino em uma inusitada canção de amor. Na sequência, com “Carne Lab”, o quinteto deixa sangrar sua veia mais experimental e lisérgica. Majoritariamente instrumental e com onze minutos de duração, a sétima faixa de Princesa é a mais longa da carreira e escancara a influência que grupos conterrâneos, como o Boogarins, tiveram na sonoridade da banda nos últimos anos.
Por fim, o disco chega ao clímax com a tríade “O Pai”, “Artemísia” e “Falo”, sendo esta última o ápice do triângulo musical. As três canções se complementam ao dialogarem pungentemente com a questão da desigualdade de gênero. A dominação masculina aparece abertamente em “O Pai” na figura do patriarca, cujo tamanho é a medida de todas as coisas. Nesta canção, o eu lírico reconhece resignadamente na imagem do pater familias um indivíduo opressor e extremamente incisivo. “Artemísia” – referência ao gênero botânico conhecido pelas propriedades abortivas – retoma o assunto nas entrelinhas, mencionando implicitamente os homens que ditam as regras sobre o corpo feminino ao criminalizarem o aborto e colocarem a maternidade como uma obrigação inquestionável.
A dominação de gênero volta a ser tratada explicitamente em “Falo”, momento mais crítico de todo o disco. Na canção, Salma se dá “o luxo de ser verborrágica” e faz um jogo de palavras com o verbo “falar” e o “falo” (símbolo que representa o órgão sexual masculino) que a todo custo tenta silenciá-la enquanto canta. O silenciamento pode ser observado na metáfora para o roubo de protagonismo (ao colocar o eu lírico como backing vocal da performance) ou então quando recorre ao "argumento" de que ela estaria se exaltando por estar “naqueles dias”. Contudo, em um fluxo de consciência crescente, a goiana contorna a situação e se coloca como sujeito de si mesma. “Meu bem, eu sempre fui selvática”, canta para em seguida encerrar vociferando o imperativo: “É bom que você se cuide/ Que não vai ter quem te acuda/ Quando eu quiser te capar!”
Se Carne Doce (2014) apresenta certo senso de universalidade, Princesa revela-se mais confessional ao colocar o sentimento do mundo sob os olhos do feminino. Com seu contralto reverberante e letras que crescem nos ouvidos como pequenas parábolas à la Orides Fontela, Salma conta uma história. Ou histórias. Recortes arbitrários, soltos, mas que ao serem amalgamados ficam prenhes de significado. Como em um álbum fotográfico. É um disco desordenado, como são, de certo modo, as vidas. Vidas que escapam da pena da goiana e ganham consistência nos arranjos do quinteto. Princesa é as vidas das muitas mulheres que habitam Salma.
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