Enquanto celebra seus 40 anos sobre os palcos, Madonna assume à frente de sua cinebiografia - um novo capítulo de uma extensa filmografia, que também cruza os caminhos de sua própria vida
Henrique Nascimento (@hc_nascimento) Publicado em 26/04/2024, às 11h10
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“Ninguém vai contar minha história além de mim.” Poderia ser um verso empoderado de Madonna, mas foi uma resposta da cantora à Variety em junho de 2022, quando tinha acabado de assumir o controle sobre sua cinebiografia.
“Eu tive uma vida extraordinária, devo fazer um filme extraordinário”, completou a artista, que não é nenhuma estranha a contar histórias, seja nos palcos, na frente das câmeras ou por trás delas. “Muitas pessoas estavam tentando fazer filmes sobre mim. Principalmente homens misóginos. Então eu bati o pé."
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É um salto sobre a própria narrativa vindo da mesma artista que, décadas antes, evitara qualquer forma rótulo - brasileiros hão de lembrar-se da forma lacônica como respondeu à jornalista Marília Gabriela, na infame entrevista de 1998, quando questionada sobre como se definiria: "Pergunte às outras pessoas a meu respeito", respondeu. “Não é bom fazer isso.”
Porém Madonna não é uma verdade inscrita em pedra, tampouco dona de uma trajetória linear. O próprio cinema surgiu para ela antes mesmo do sucesso na música. Quando chegou a Nova York com 35 dólares no bolso, seu objetivo era tornar-se dançarina profissional, mas acabou encontrando um primeiro espaço em uma produção independente de um estudante de cinema.
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Seu caminho a levaria, pelas ruas da metrópole, à cena noturna que vibrava na virada dos anos 1980 - onde fatalmente encontraria espaço para seus demos de pop cintilante entre as cabines de DJs. Daí em diante, foram poucos anos até a estreia nas telonas.
Foi depois de estourar com Like a Virgin (1984), seu segundo álbum, que a cantora viria a dar nova vazão às aspirações como atriz. Ao longo de quatro décadas, ela não só pavimentou o caminho de uma das mais longevas realezas pop, como também estabeleceu uma carreira sólida no cinema, através de produções que contariam, mais do que uma história, alguns capítulos da própria vida da artista. A seguir, a Rolling Stone Brasil relembra os principais destaques.
Susan Seidelman tinha uma visão específica para Procura-se Susan Desesperadamente. A comédia de erros, que contava a história de uma dona de casa comum obcecada com as aventuras românticas de uma tal de Susan, procurava refletir a Nova York da época e, apesar de ter nascido e sido criada a milhares de quilômetros da cidade, Madonna parecia casar perfeitamente com a ideia.
"A cidade estava aos pedaços e, no centro, havia aspirantes a artistas porque o aluguel era muito barato. Então, eu queria preencher o filme com pessoas que fossem autênticas àquela época. Eu não me importava se alguém no Kansas os reconheceria, mas os nova-iorquinos saberiam que eles eram nova-iorquinos", explicou a cineasta ao The Guardian em novembro de 2022.
Para interpretar a sua xará no longa, Seidelman queria encontrar uma estrela em ascensão. Nomes como Kim Cattrall, que viria a ser conhecida por Sex and the City, e Melanie Griffith, de Uma Secretária do Futuro, foram considerados para o papel, mas a cineasta estava de olho em outra artista, que não tinha formação como atriz, mas era acompanhada de um “burburinho interessante”, como contou ao The Hollywood Reporter em outubro de 2022.
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"Eram os primeiros anos da MTV. Não havia muitos clipes de rock ainda, mas ela tinha um dos primeiros da MTV. Acho que era 'Lucky Star'. E eu podia ver que a câmera a adorava", relembrou a cineasta.
No entanto, Mike Medavoy, então presidente da produtora Orion Pictures, não estava convencido sobre a cantora. Foi o filho dele, Brian, que o levou a dar uma chance a ela. Hoje também produtor em Hollywood, o jovem era, na época, aficionado pela MTV, como tantos na sua idade, e achava a artista uma “graça”. E, em questão de meses, apesar da preocupação inicial, Madonna iria de uma paixonite adolescente a uma superestrela pop, levando Procura-se Susan Desesperadamente ao sucesso junto com ela.
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Procura-se Susan Desesperadamente pode até ter marcado a estreia de Madonna nos cinemas, mas a artista não era novata à atuação antes disso. Em 1979, época em que atuava como baterista na banda Breakfast Club, a ex-dançarina respondeu ao anúncio do então estudante de cinema Stephen Jon Lewicki, que procurava “uma dominatrix de cabelo escuro que saiba dançar e atuar” para o seu primeiro filme, A Certain Sacrifice (Um Certo Sacrifício).
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Madonna enviou a ele uma carta de três páginas, escrita à mão, como um “currículo informal”. No texto, ela falava sobre o seu envolvimento com a dança, mas também se abria sobre a paixão pela atuação, dizendo que foi isso que a levou a suportar o ensino médio:
"Por uma hora, todos os dias, todos os megalomaníacos e egocêntricos se reuniam para competir por papéis e discutir sobre interpretação”, escreveu. Ela ainda falou sobre a sua parte favorita da dinâmica:
“Eu, secretamente, adorava cada momento em que todos os olhos estavam voltados para mim e eu podia praticar ser charmosa ou sofisticada, para estar preparada para o mundo exterior”, revelou a jovem, como se previsse o quão grande seria no futuro.
Ela não sabia, mas Madonna não precisava de tantas palavras: Lewicki havia decidido escolher a jovem para o seu filme ao ver uma foto que acompanhava a carta, em que ela aparecia passando batom nos lábios. Ele a considerou “incrivelmente sexy” no registro, como revelou no documentário Madonna + the Breakfast Club, de 2019.
A Certain Sacrifice apresentava Madonna como Bruna, que arquitetava um sacrifício para se vingar do homem que a estuprou. A produção, do gênero exploitation, foi filmada no final dos anos 1970, mas só chegou ao público em 1985, quando a artista já estava no auge e o conteúdo apelativo do filme poderia ser um problema.
"Há alguma nudez no filme e Madonna fica nua brevemente", esclareceu o diretor na época do lançamento, quando acusações de que A Certain Sacrifice se tratava de um filme pornográfico começaram a surgir. Isso não foi o suficiente para a artista e, na tentativa de bloquear o lançamento da produção, Madonna ofereceu 10 mil dólares para o cineasta. Quando a oferta foi recusada, ameaçou processá-lo.
"No final, quando chegou a hora do 'vamos ver', ela não se esforçou de todo o coração para me processar", relembrou em entrevista a J. Randy Taraborrelli, autor de Madonna: Uma Biografia Íntima, lançado em 2001.
Enquanto a carreira musical de Madonna escalonava rapidamente, a artista sofria algumas derrapadas nas telonas. Em 1986, após estrelar Surpresa de Shanghai, com o então marido Sean Penn, a artista recebeu o seu primeiro prêmio de destaque na indústria cinematográfica: o Framboesa de Ouro de Pior Atriz.
A situação não melhorou com os lançamentos de Quem É Essa Garota?, em 1987, e Doce Inocência, em 1989, que também foram fracassos comerciais e de crítica. Isso não abalou a fé de Madonna, que disse, em entrevista à Rolling Stone, em março de 1989, considerar que era, sim, uma estrela de cinema. A artista admitiu, no entanto, que Hollywood não a via como tal:
"Não acho que eles me entendam bem o suficiente para pensar em mim de qualquer forma. Muitos deles me veem como uma cantora", acrescentou.
A volta por cima de Madonna veio com Dick Tracy, adaptação das famosas tirinhas homônimas criadas por Chester Gould, lançada em 1990. No filme, ela interpreta uma sedutora cantora de boate, que não perde as chances de se jogar aos braços do protagonista da história.
"Breathless está completamente apaixonada por Dick Tracy, mas Dick Tracy não cede às suas investidas, então ela está bastante miserável com aquilo", declarou a artista em entrevista à MTV, em 1989.
Para Madonna, era fácil compreender a personagem, já que amar uma pessoa e não ser correspondida é algo comum na vida real. "Você sempre ama o que não pode ter", afirmou a artista, que definiu a sua personagem como “vilanesca e vulnerável ao mesmo tempo”.
Por sua interpretação de Breathless Mahoney, Madonna recebeu uma indicação à categoria de Melhor Atriz no Saturn Award. O maior legado de Dick Tracy, no entanto, seria o álbum I’m Breathless, lançado em maio de 1990, que trazia canções da trilha sonora do filme, compostas pelo lendário compositor e letrista Stephen Sondheim, junto com canções originais, inspiradas pelo longa, incluindo aquele que seria um dos maiores sucessos da carreira de Madonna: “Vogue”.
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A década de 1990 foi generosa com Madonna. Após o sucesso de Dick Tracy, a artista voltou aos cinemas no ano seguinte, com o documentário Na Cama com Madonna, que mostrava os bastidores da sua turnê mundial Blond Ambition, considerada um marco na história da música pop.
Com uma bilheteria de 29 milhões de dólares, o longa se tornou o documentário de maior bilheteria da história do cinema àquela altura, superado apenas em 2002, quando Tiros em Columbine, filme de Michael Moore, chegou às telonas.
O seu próximo trabalho seria Uma Equipe Muito Especial, longa de 1992, que contava a história de uma equipe de beisebol feminina fundada durante a Segunda Guerra Mundial. Protagonizado por mulheres, o filme se tornou o desejo de estrelas de Hollywood como Courteney Cox, Sarah Jessica Parker, Brooke Shields, Robin Wright e tantas outras, que queriam integrar o time de estrelas da produção.
“Quando você vê um filme em que todas as protagonistas são mulheres e todos os homens estão em papéis coadjuvantes, você quer estar nele”, justificou Lori Petty, que interpretou Kit, irmã mais nova de Dottie, papel de Geena Davis na produção.
Os bastidores de Uma Equipe Muito Especial, no entanto, foram bem apimentados, especialmente pela presença de Madonna no elenco. Inicialmente, Debra Winger, de Laços de Ternura, ficaria com o papel de Davis, mas a situação mudou quando, em junho de 1991, o LA Times divulgou um rumor de que Madonna faria Kit. A suposta escalação da cantora enfureceu a colega, que não queria trabalhar com a artista.
No livro No Crying in Baseball: The Inside Story of A League of Their Own, que detalha os bastidores do filme, o autor Eric Carlson revelou que Debra chegou a ameaçar o diretor do longa, Penny Marshall, dizendo que tornaria o trabalho muito mais difícil para o cineasta, caso ele contratasse Madonna.
Ninguém tinha certeza sobre o motivo da raiva de Debra contra Madonna, mas um comentário da cantora sobre o trabalho da atriz em O Céu que nos Protege, longa de Bernardo Bertolucci de 1990, era apontado como o responsável pela fúria: “Debra Winger foi uma escolha errada. Foi muito errada, muito errada. Era muito brochante. Foi horrível", declarou Madonna à revista The Advocate, em maio de 1991, ao ser questionada sobre a obra.
Sem conseguir resolver o problema, a Columbia Pictures decidiu encerrar o contrato com Debra, por não querer correr o risco de lidar com o seu temperamento durante as gravações, e Madonna seguiu no filme como Mae Mordabito, uma das garotas do time, papel para o qual havia sido escalada desde o princípio.
Mesmo sem o atrito com Debra, os problemas com Madonna continuaram. Já alçada ao patamar de fama e sucesso que mantém até hoje, a artista foi apontada uma pessoa difícil de se trabalhar: “Ninguém sabia o que esperar do ícone mais conhecido e popular da cultura mundial", declarou Tom Hanks ao Entertainment Tonight em 1992.
O ator, que interpretou o técnico Jimmy Dugan no longa, continuou: "Ela tinha uma personalidade distinta”, afirmou, definindo Madonna como alguém que viu e passou por muita coisa, dificultando a conexão com a colega: “Acabei gostando dela. Eu a achava legal”, acrescentou.
Evita viveu uma novela antes de chegar aos cinemas. Um dos maiores sucessos do teatro musical, a obra de Andrew Lloyd Webber era cotada para ganhar uma adaptação cinematográfica desde que estreou nos palcos de Londres, em 1978, mas demorou anos para sair do papel.
Sob a direção de Alan Parker, Madonna - que vinha de uma decepção com Corpo em Evidência, de 1993, e algumas participações especiais nas telonas - foi a escolhida para viver a primeira-dama da Argentina, desbancando nomes como Meryl Streep e Michelle Pfeiffer, mas o caminho não foi fácil.
Estrelar o seu primeiro musical já apresentava um desafio pessoal para Madonna, mas a rejeição dos argentinos à artista era ainda pior.
“Quando eu cheguei à Argentina para filmar Evita, no caminho do aeroporto de Buenos Aires, todas as paredes estavam cobertas com grafites gigantes pedindo: 'Fuera Madonna'", relembrou Alan Parker em seu blog pessoal.
As críticas vinham de partidários de Eva Péron, que acreditavam ser um insulto à memória da primeira-dama ter Madonna, que havia lançado o álbum Erotica apenas alguns anos antes, no papel.
"Não posso dizer que isso não me afetou, mas a verdade é que creio que os comentários negativos são baseados em coisas que a gente não sabe ou não compreende, e recomendo a todos que formem uma opinião após ver o filme", declarou Madonna na época.
Apesar da forte rejeição argentina a Evita, o longa se tornou o maior marco na carreira de Madonna como atriz. Elogiada pela crítica, a sua interpretação de Eva Péron foi consagrada com o prêmio de Melhor Atriz em Musical ou Comédia no Globo de Ouro em 1996.
Para a surpresa de todos, após o sucesso de Evita, Madonna foi gradativamente se afastando da carreira como atriz. Em 2000, ela foi elogiada por seu trabalho na comédia romântica Sobrou Pra Você, mas sofreu mais uma derrapada dois anos depois com o lançamento de Destino Insólito, remake de Por um Destino Insólito (1974), de Lina Wertmüller, pelo qual recebeu outro prêmio de Pior Atriz no Framboesa de Ouro. Seu último trabalho como atriz foi na versão inglesa da animação Arthur e os Minimoys, lançada em 2006.
Porém, Madonna ainda não tinha terminado com o cinema. De atriz, ela passou para diretora e, em 2008, lançou o seu primeiro filme, Sujos e Sábios, no Festival Internacional de Cinema de Berlim, um dos mais prestigiados da indústria cinematográfica.
O longa não foi um sucesso de crítica, mas também não parou Madonna, que dirigiu W.E.: O Romance do Século. Lançado em 2011, o filme aborda o caso entre o Rei Eduardo VIII e Wallis Simpson, que o levou a abdicar do trono. A recepção à novidade foi ainda pior do que a de seu filme de estreia e, finalmente, Madonna se afastou de vez da indústria, deixando apenas a promessa de retornar, em algum momento, para fazer de si mesma a sua grande musa. Estaremos aqui para ver, certamente.
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