A diretora Audrey Estrougo recontou a trajetória do Suprême NTM, grupo de hip-hop pioneiro na França, no filme 'Suprêmes'
Heloísa Lisboa (@helocoptero) Publicado em 20/09/2024, às 13h00
Torre Eiffel, croissants, Mona Lisa, boina vermelha e Amélie Poulain estão entre os símbolos que evocam a França. Se entrasse na lista, o hip-hop provavelmente estaria em uma das últimas posições. Audrey Estrougo, porém, quis mostrar que o gênero também faz parte da história de seu país e, por isso, dirigiu Suprêmes (2021).
O filme retrata a chegada do hip-hop à França a partir de Saint-Denis, comuna onde jovens começaram a denunciar problemas socioeconômicos ainda na década de 1980. "Eu cresci nos subúrbios de Paris, e o NTM sempre fez parte da minha adolescência. Eles são como irmãos mais velhos", disse a cineasta em entrevista à Rolling Stone Brasil.
"Sempre disse a mim mesma que, acima de tudo, eles são testemunhas dessa juventude dos bairros. Quis contar uma história sobre jovens abandonados por seus políticos, e eles são os vetores perfeitos para isso", continuou.
JoeyStarr e Kool Shen, membros principais do grupo Suprême NTM cujos nomes reais são Didier Morville e Bruno Lopes, respectivamente, deram os passos iniciais na carreira com a dança e o grafite. Em 1991, eles lançaram o primeiro álbum, Authentik, ao lado de seu extenso grupo de amigos. Nos anos seguintes, a dupla passou a chamar mais atenção da mídia — e das autoridades e políticos — com suas letras explícitas e críticas. A sigla NTM, inclusive, significa "Nique Ta Mère", "F*da-se sua mãe", em tradução livre.
Embora muitos tenham tentado assumir a dianteira de projetos semelhantes, foi Estrougo quem recebeu o consentimento de JoeyStarr para transformar a narrativa da banda em longa-metragem. "Uma vez que eu defini o filme que eu queria fazer e encontrei um produtor que entendeu minha abordagem, tentei contatá-los [JoeyStarr e Kool Shen] de maneira tradicional, por meio de seus respectivos agentes", confessou a diretora.
Ela acrescentou: "Acontece que o primeiro que aceitou me encontrar foi JoeyStarr. Primeiro, ele me alertou, porque, logicamente, eles já haviam recebido diversas propostas para uma adaptação ao cinema, mas recusaram todas. Foi o meu desejo de falar sobre a juventude dos subúrbios que o convenceu. Ele aceitou sem hesitar e sempre apoiou muito o filme".
O longa-metragem também retrata a diluição do Suprême NTM (ou ao menos do comboio que o acompanhava): alguns amigos dos artistas precisaram ficar pelo caminho para que o grupo fosse melhor gerenciado.
"Na época em que o filme se passa, não havia apenas os dois [JoeyStarr e Kool Shen], mas sete, além dos amigos que os seguiam por toda parte. Foi [um processo] longo e nem sempre prazeroso, porque, como o filme mostra, muitos ficaram bravos e guardam rancor deles por terem sido sacrificados", disse Estrougo sobre a roteirização de Suprêmes. O assessor de imprensa da Jean Paul Gaultier Franck Chevalier chegou a ocupar o cargo de gerente da banda.
"Com Marcia Romano, a corroteirista do filme, nós trabalhamos primeiro na estrutura do filme. Só nós duas. Depois começamos a olhar para todos os protagonistas da história", lembrou. A trajetória de Bruno e Didier é retratada apenas até o auge do NTM.
Era imperativo para a gente trazer autenticidade à narrativa. Podemos dizer que é uma ficção 100% baseada na realidade.
Ainda que Kool Shen e JoeyStarr sejam igualmente protagonistas do NTM, Estrougo e Romano escolheram explorar a vida pessoal do segundo. O relacionamento de Didier com o pai proporciona cenas desconfortáveis. Nem a fama e o sucesso de JoeyStarr foram suficientes para conquistar a aprovação de seu pai. Didier possuía furor suficiente para seguir com o Suprême devido às insatisfações sociais e à ausência de amparo familiar.
"Para mim, é uma questão de prisma, de ponto de vista. Na minha opinião, Didier e Bruno têm uma relação que é definida para além da amizade", argumentou a diretora. "O que eu queria mostrar era esse equilíbrio frágil entre juventude, amizade, música e apoio. Bruno é fundamental para o grupo, assim como a vida pessoal de Didier. Então, escolhi contar como ele serviu como espinha dorsal nos problemas emocionais de Didier."
Eu queria contar a história de um movimento: o hip-hop, seu nascimento, sua ascensão. Esses caras saíram dos túneis de metrô onde faziam grafite para pegarem um microfone e ficarem sob o holofote. Até então, o hip-hop era um gênero menor e marginal. O que acontece após o meu filme é bem conhecido por todos e bem básico quando você está interessado na vida de grupos musicais no geral. Na minha opinião, NTM não foi o primeiro grupo de rap, mas sim o último grupo punk, e era essa energia que eu queria filmar. Não devemos nos esquecer de que as gravadoras mataram o hip-hop e sua filosofia bem rapidamente, em 1992.
Como Estrougo pontuou, "é impossível contar essa história sem a autorização dos personagens principais, ou você não tem o direito sobre as músicas". Desse modo, a produção exigiu o contato com todos os envolvidos no NTM.
"Não podemos esquecer que eles eram, acima de tudo, um coletivo", ressaltou a cineasta. "Eles faziam rap, dançavam, escreviam e grafitavam juntos. Então, houve vários estágios e, às vezes, decepções para que todo o NTM aderisse à abordagem do filme."
No meio desse sistema caracterizado por Estrougo como "estressante", foi preciso dialogar com o primeiro DJ do grupo no longa: "Ele não falava com eles desde 1992, e levou meses e meses para que ele permitisse as gravações".
Didier e Bruno participaram da existência do filme do início ao fim. Eles acompanharam todas as etapas de produção, dos primeiros ensaios à edição final. E ambos ficaram muito comovidos, mesmo.
A escolha do elenco levou cerca de oito meses e foi permeada pela dúvida de Estrougo sobre procurar "jovens rappers, dançarinos ou até mesmo artistas do grafite". Ela admitiu que a semelhança física entre os atores e os verdadeiros músicos também foi um obstáculo, mas decidiu "focar na energia": "O público que conhece Bruno e Didier de verdade tem que encontrá-los no filme".
"No fim, achei alguns atores e escalei vários amadores. Minha escolha acabou em Théo Cristine e Sandor Funtek [intérprete de Kool Shen]", recapitulou. "Embora não sejam os melhores cantando e dançando, demonstraram grande capacidade de trabalhar. Por um ano, eles trabalharam para conseguirem fazer todos os shows do filme ao vivo. O resultado valeu a pena, porque todas as apresentações no filme são autênticas."
Suprêmes está disponível na Reserva Imovision, plataforma que reúne parte do catálogo da distribuidora Imovision.
"É sempre animador ultrapassar fronteiras com seu trabalho e perceber como culturas podem se relacionar", refletiu Estrougo sobre seu filme no streaming brasileiro. "Sei que o Brasil tem uma cena do hip-hop desenvolvida e estou curiosa para saber o quanto a história do meu filme pode ressoar sobre o país."
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