Conversamos com Fabiano e Caio Gullane, produtores da animação brasileira Arca de Noé e do documentário sobre a última turnê de Milton Nascimento
Angelo Cordeiro (@angelocinefilo) Publicado em 21/11/2024, às 16h30
A produtora Gullane consolidou-se como uma produtora que não apenas cria, mas também preserva e transforma a cultura brasileira por meio do audiovisual, e dois de seus projetos mais recentes — a animação Arca de Noé, inspirada no álbum de Vinícius de Moraes, e o documentário Milton Bituca Nascimento, previsto para estrear em 2025 — são exemplos desse compromisso com as artes brasileiras.
Em entrevista à Rolling Stone Brasil, em parceria com o CineBuzz, Fabiano e Caio Gullane, sócios da produtora, compartilharam detalhes sobre a relação da produtora com a música e como ela funciona tanto na animação de Sérgio Machado (Cidade Baixa) e Alois Di Leo (Caminho dos Gigantes) quanto no documentário sobre a última turnê de Milton Nascimento. Confira a seguir:
A música sempre esteve no centro do trabalho da Gullane, tanto em documentários quanto em filmes de ficção. Desde os primeiros projetos, como a biografia do sambista Geraldo Filme e o Nenê da Vila Matilde, até os mais recentes, como a série Sintonia e o filme O Magnata, inspirado no Chorão [vocalista da banda Charlie Brown Jr.], sempre buscamos criar uma conexão muito forte entre imagem e som.
A música é uma forma poderosa de contar histórias, seja no cinema, na animação ou em documentários. Quando fizemos Arca de Noé, por exemplo, quisemos que a música não fosse apenas um pano de fundo, mas uma protagonista da história. A música tem o poder de emocionar e de dar vida à narrativa, e sempre buscamos trabalhar com músicos de destaque para dar autenticidade e profundidade a essas histórias.
A história de Arca de Noé é bem interessante e começa com a filha de Vinícius de Moraes, a Suzana Moraes. Ela sempre teve o sonho de ver as poesias do pai transformadas em algo mais, como uma animação. Ela queria criar uma forma de compartilhar essas poesias com o mundo, mas de uma maneira que falasse tanto com o Brasil quanto com o resto do planeta.
O projeto começou a tomar forma quando ela procurou o Walter Salles (Ainda Estou Aqui) e o Sérgio Machado [diretor de Arca de Noé], que se empolgaram com a ideia. Juntos, chamaram a Gullane, minha produtora, e eu e o Caio para fazer parte do time. Estamos falando de mais de 12 anos atrás, em 2011 ou 2012.
Foi um processo longo. A concepção de um projeto desse porte leva tempo, e a ideia era algo grandioso, tanto na parte da história quanto na parte técnica da animação. Para garantir a qualidade que queríamos, o filme foi feito em 3D, o que exigiu uma coprodução entre Brasil e Índia. O Brasil cuidou da criação, direção e supervisão, enquanto a Índia ajudou na parte técnica, como animação e efeitos especiais. O Brasil ficou com a parte das vozes e da música. Então, o projeto, desde o início, foi pensado para ser algo competitivo internacionalmente.
A parte musical foi fundamental para dar vida à história. Trabalhamos com grandes nomes da música, como Beto Villares, Mário Caldato Jr. e Roberto Schilling, que ajudaram a dar a sonoridade que queríamos. A ideia foi convidar novos talentos para reinterpretar as músicas de Vinícius de Moraes e dar espaço para a nova geração: Céu, Mariana Moraes, Baiana System, Chico César… Eles deram sua interpretação única para canções que foram, há décadas, cantadas por artistas consagrados. Esse foi um grande desafio, porque queríamos respeitar a poesia de Vinícius, mas também dar algo novo e fresco.
Isso foi um grande diferencial do projeto. O Santoro e o Adnet foram desafiados a cantar no filme. A música é uma parte essencial da narrativa, então não bastava apenas atuar, eles precisavam se entregar à música também. Foi muito legal ver a dedicação deles.
O filme brinca com essa troca: atores cantando e músicos atuando. O Chico César, por exemplo, faz uma música incrível do Bode e também atua como o Bode. Já o Baiana System traz uma energia única para as músicas da Galinha e do Pato. Essa mistura entre música e atuação é uma das grandes sacadas do filme.
O filme teve uma excelente recepção internacional. Foi lançado em 72 países e dublado em diversos idiomas, como francês, italiano, vietnamita e espanhol. Estamos ainda trabalhando para lançar nos Estados Unidos e no Japão, que são mercados importantes.
Esse sucesso internacional é reflexo do trabalho cuidadoso que fizemos, com a contribuição de músicos e técnicos de todo o mundo. A coprodução Brasil-Índia e a parceria com a CMG, que ajudou nas vendas internacionais, foram fundamentais para a distribuição do filme. É uma grande vitória para o Brasil, porque conseguimos levar uma propriedade intelectual brasileira, baseada na poesia de Vinícius, para o mundo inteiro.
Sem dúvida. O universo que criamos com Arca de Noé é muito rico e permite várias possibilidades. Estamos planejando uma sequência e também considerando a ideia de um spin-off em formato de série
A história não tem fim, e podemos continuar explorando as aventuras de Vini, Tom e os outros animais. A música e as poesias sempre estarão presentes, criando novas versões e dando novas aventuras aos personagens. O sucesso do filme nos encorajou ainda mais a continuar nesse caminho.
Ah, Milton Nascimento... Esse é um nome que nos acompanhou desde a infância. O Caio e eu [Fabiano] sempre fomos grandes admiradores do Milton, da sua obra e do Clube da Esquina.
A Gullane teve a honra de trabalhar com ele em uma série para a Globoplay chamada Milton e o Clube da Esquina, que contou a história dos dois discos mais importantes do Clube da Esquina. E agora, com o documentário sobre a sua turnê de despedida, fomos convidados pelo Agostinho Nascimento, filho do Milton, e pela [diretora] Flávia Moraes para seguir a trajetória dessa despedida. Acompanhamos a turnê na Europa, nos Estados Unidos, e, claro, o grande show de encerramento no Mineirão.
G.: A proposta do documentário é retratar o legado de Milton Nascimento. Ele tem uma carreira impressionante e, aos 80 anos, está fazendo uma turnê que marca a despedida dos palcos. Mas o documentário não é apenas sobre o show, ele também é uma forma de celebrar a obra do Milton, com depoimentos de grandes nomes da música refletindo sobre a importância da sua música. E temos a participação de Quincy Jones, que dá uma entrevista emocionante sobre a influência de Milton na música mundial.
A ideia do documentário é, sem dúvida, celebrar a música do Milton, mas há também uma exploração de momentos mais pessoais, especialmente a relação dele com outros músicos. O que a Flávia Moraes sempre fala é que os artistas podem até parar de se apresentar, mas as suas obras ficam. O documentário é uma forma de garantir que a obra de Milton, que é imortal, continue sendo celebrada por muitas gerações.
E estamos também trabalhando em um projeto paralelo: uma cinebiografia ficcional de Milton Nascimento. Aí, sim, vamos mergulhar de forma mais íntima na vida do Milton, explorando não só sua trajetória artística, mas também sua vida pessoal, suas lutas e suas vitórias. Isso está em desenvolvimento, e será uma forma mais profunda de contar sua história.
A gente acredita que o audiovisual tem o poder de resgatar, preservar e reinventar a cultura brasileira. Em tempos difíceis, é importante olhar para as nossas raízes e mostrar nossa história de uma forma que toque as pessoas. O que fazemos aqui na Gullane é tentar conectar o passado e o presente, criando algo que faça as pessoas refletirem e se emocionarem. Para nós, isso é o que dá sentido ao nosso trabalho.
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