A obra Rainhas da Noite transpõe o apagamento das trajetórias LGBTQ+ e reverbera a história das travestis Cris Negão, Jacqueline Blábláblá e Andrea de Mayo
Julia Harumi Morita Publicado em 16/10/2021, às 10h00
Cris Negão, Jacqueline Blábláblá e Andrea de Mayo eram nomes que Chico Felitti (Ricardo & Vânia) costumava ouvir em conversas com drag queens "das antigas." As travestis da noite paulistana vinham sempre acompanhadas de adjetivos ostensivos, ares mitológicos e poucos registros factuais - a brecha perfeita para um entusiasta por boas histórias.
"Conheci as drag queens das antigas, as travetis com seus 60, 70 anos, as quais nunca admitiriam a idade," disse Felitti em entrevista à Rolling Stone Brasil. "Ouvia uma coisa ou outra, assim: 'Ah, lembra da babadeira, a finada Jaqueline, a pesadona?' Vinha sempre com o adjetivo de que ela foi a última grande cafetina romântica. Mas ninguém sabia dizer exatamente quem era Jacqueline Blábláblá."
Quando o isolamento social se tornou parte de sua rotina, o escritor pegou o telefone e começou a ligar para amigos, colegas, conhecidos de conhecidos dentro e fora do Brasil. 100 telefonemas depois, tinha material suficiente para traçar a linhagem das três figuras misteriosas em um livro completo.
Lançado no dia 29 de setembro pelo streaming de audiobooks Storytel, o livro Rainhas da Noite transpõe o apagamento das trajetórias LGBTQ+ e reverbera a história oral da realeza travesti no centro de São Paulo entre os anos 1970 e 2000.
Em uma chamada de vídeo, Felitti falou sobre os desafios de trabalhar com memórias; o segredo para não cair em um julgamento de caráter das personagens; a participação essencial da atriz e narradora Renata de Carvalho e o papel do mainstream na conservação de histórias LGBTQ+.
Antes de coroar as três monarcas como protagonistas, Felitti idealizou um livro sobre Cris Negão, também conhecida como Cristiane Jordan, Virgínia ou Marquesa. Ao escavar relatos e registros, descobriu mais duas linhagens, praticamente indetectáveis na internet: Andrea de Mayo e Jacqueline Blábláblá ou Jacqueline Welch.
"Começou com Cris Jordan. Tinha uma coisa muito forte e consolidada da imagem dela. As pessoas falavam mais e tinham histórias mais claras. Tinha certeza que iria falar sobre Cristiane Jordan e o mundo ao redor dela."
O autor também disse: "Depois, consegui entender com a apuração que era uma tríade. Fazia sentido. Elas dividiam um poder parecido, por mais que cada uma tenha tido sua época e seu estilo de governar. Era uma linhagem, como se fosse uma família real."
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Em telefonemas "longuíssimos", Felitti ouviu os mais diversos fatos, fofocas e futricas durante um ano. O escritor fez um garimpo cuidadoso e extraiu as mais exuberantes histórias: travestis com carros de luxo comprados com dinheiro vivo, monarcas com linhagens próprias só de nomes e apelidos, brigas capazes de moldar a reputação de uma vida inteira e mais.
"[Precisava] separar relato pessoal da fofoca [e] do que era comprovável, então foi um texto que exigiu gradações: 'Isso a gente pode afirmar, é um fato, eu posso comprovar. Isso é a memória de uma pessoa. Isso é futrica.' E só ficavam as futricas muito importantes ou de pessoas muito importantes."
Apesar da seleção objetiva, o autor não coloca a oralidade das histórias em risco. Em alguns momentos, narra a mesma cena sob diferentes perspectivas e faz jus ao legado criado a partir dessas memórias. "A Cris Negão virando um camburão é uma cena que preciso contar três ou quatro vezes, porque as pessoas relatam ter visto [o momento] de maneiras diferentes."
A pluralidade de relatos também garante outro um elemento indispensável na obra de Felitti, a contextualização da violência presente na comunidade trans, a qual foi usada por muitos anos para desumanizar pessoas como Cris Negão, Jacqueline Blábláblá e Andrea de Mayo.
"Essas pessoas eram um título - e um título no gênero errado. Sempre associadas a crimes e marginalidade," diz Felitti. "Para mim, a vacina contra isso é dar um contexto. Por que essas pessoas foram parar no crime? Quais eram as possibilidades que elas tinham no mundo? Qual a história de vida delas?"
O escritor não esconde os crimes cometidos pelas Rainhas da Noite, mas faz questão de citar como Cris Negão foi explorada sexualmente ainda na infância, Andrea de Mayo foi vítima de violência dentro da própria casa e Jacqueline Welch era rejeitada por parte da própria comunidade.
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"É muito fácil demonizar ou desumanizar uma pessoa se você não contextualiza a história dela. O intuito do livro era contar a história inteira, em nenhum momento queria que ficasse o sabor de heroínas ou vilãs. Não, são humanas."
Para o autor, a série Veneno (2020), da HBO, é um grande exemplo e inspiração para fazer um retrato "justo," "objetivo" e "sensível" ao mesmo tempo. "Você não sai com só um adjetivo. Não sai pensando: boa ou ruim; legal ou maldosa. Você sai com colares de adjetivos. Acho que esse é o intuito."
Desde o primeiro telefonema com a Storytel, no qual teve seu projeto aprovado em cinco minutos, Felitti tinha duas certezas: Rainhas da Noite seria um audiobook e seria narrado por uma pessoa trans.
"Acho muito essencial. Inclusive, deveria ter sido escrito por uma pessoa T [...] Eu estou na comunidade, mas estou em outro país, em outra ilha, então adoraria que fosse escrito por uma pessoa da mesma ilha, a qual olhasse para trás e falasse: 'Vou falar sobre as travetis que vieram antes de mim'."
O autor não queria qualquer pessoa trans para narrar Rainhas da Noite, tinha que ser a atriz Renata Carvalho (O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu). Ele já conhecia a carreira da artista quando a conheceu casualmente em uma academia de ginástica e a seguiu no Instagram, onde teve contato com outras leituras dela.
"Ela não precisou ser testada para a vaga. Já era dela antes da vaga existir. Quando comecei a escrever esse livro, falei: 'Cara, tem que ser ela.' E todo mundo concordou," disse Felitti, que descreveu a primeira audição do audiobook como "incrível, de ordenhar a lágrima do olho."
Hoje, histórias LGBTQ+ ganham cada vez mais espaço na mídia e nas cultutra pop. O mainstream tenta atender às demandas e, assim, passa a servir como uma espécie de ferramenta para a conservação de histórias da comunidade, como Rainhas da Noite.
"Toda a cultura LGBTQIA+ está indo para o mainstream e eu não acho isso ruim. Pelo contrário, é o mainstream que vai garantir nossos salários, a sobrevivência das nossas histórias. A gente precisa de um recurso."
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Assim como Veneno, Rainhas da Noite tem o potencial para atingir gerações que nunca ouviram falar sobre Cris Negão, Jacqueline Bláblábá e Andrea de Mayo, mas possuem interesse em consumir, repassar e manter viva a história esquecida.
"Sou muito entusiasta. Como você disse, tem Pose (2018), tem Cristina Veneno, tem o livro da Cintura Fina. Tem tanta coisa saindo sobre a história da comunidade e é tão bem recebida pela molecada," diz Felitti. "É um momento histórico muito propício para gente fazer o resgate dessas histórias e não deixar elas serem esquecidas."
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