- Bruce Lee em Operação Dragão (Foto: Reprodução) / Capa de Bruce Lee: Uma Vida (Foto: Divulgação/Editora Seoman)

A infância da lenda das artes marciais: leia capítulo da biografia Bruce Lee - Uma Vida

Biografia da Editora Seoman escrita por Matthew Polly homenageia vida e legado de Bruce Lee, ator e instrutor de artes marciais

Redação Publicado em 06/08/2021, às 15h29 - Atualizado em 27/11/2021, às 14h30

Responsável por conectar a cultura ocidental e oriental por meio das artes marciais, Bruce Lee morreu em 1973, aos 32 anos. Contudo, o legado do ator, instrutor de artes marciais e filósofo continua - e pode ser conferido em uma nova biografia, intitulada Bruce Lee – Uma Vida: a Biografia Definitiva da Lenda do Cinema Que Transformou as Artes Marciais em Um Fenômeno Global.

No livro trazido pela Editora Seoman, o autor Matthew Polly realiza um retrato humano e revelador de Lee, com diversas fotos raras e entrevistas inéditas do artista, integrantes da família, amigos e, até mesmo, com a atriz a qual estava com o ator no dia da morte.

 

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O primeiro capítulo, intitulado O Homem Doente da Ásia, mostra as origens de Bruce Lee desde a família dos avós até como os pais Li Hoi Chuen e Grace Ho se conheceram e se apaixonaram. Acompanhe o nascimento, o começo da infância e os primeiros trabalhos como ator dessa lenda as artes marciais.

Bruce Lee – Uma Vida é uma leitura essencial para quem é fã do artista e para quem quer conhecer melhor essa trajetória. Confira o primeiro capítulo de Bruce Lee – Uma Vida:

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O Homem Doente da Ásia

Aos 10 anos de idade, Li Hoi Chuen estava descalço sobre a ruazinha de terra batida, do lado de fora de um restaurante coberto com telhas de metal onduladas nos arredores da cidade de Foshan, no sul da China. Ele vestia roupas surradas, passadas para ele depois de terem sido usadas por seus três irmãos mais velhos. Enquanto os pedestres passavam pela ruazinha, Hoi Chuen cantava, em cantonês, sobre as especialidades do dia servidas pelo restaurante: “Amigos, conterrâneos, venham, venham! Venham experimentar nosso recém-preparado cozido de peito de boi, espinafre d’água com tofu fermentado, pernas de rã sobre folhas de lótus, mingau de arroz com ovos centenários e porco agridoce”. O tom de sua voz suave subia e baixava com a descrição de cada item do cardápio: um falsete dançante. Dentre as centenas de meninos camponeses empregados pelos restaurantes da cidade para que grasnassem seus menus, havia algo de especial na maneira como Hoi Chuen cantava – um tom humorístico subjacente de ironia e mordacidade. Naquele dia, um famoso cantor da Ópera Cantonesa passou diante do restaurante, distinguiu o humor na voz do jovem garoto e convidou-o para tornar-se seu aprendiz. O pai de Bruce Lee correu por todo o caminho de volta para o pequenino vilarejo em que vivia, para contar a boa-nova aos seus pais.

Transcorria o ano de 1914. Forças revolucionárias haviam deposto recentemente a Dinastia Qing e estabelecido uma república constitucional, pondo fim a quatro mil anos de domínio imperial. Mas o novo governo detinha o poder de forma instável, com várias facções competindo ferozmente pela manutenção do controle, revoltas populares irrompendo nas maiores cidades, bandoleiros rondando por todo o país e o campesinato lutando para sobreviver. O sofrimento era particularmente intenso na propriedade dos Li. Hoi Chuen era o quarto de seis irmãos. Seu pai, Li Jun Biao, sofrera tantos reveses da sorte que seus vizinhos acreditavam que ele fora amaldiçoado. Uma febre fortíssima durante a infância causara danos tão severos à garganta de Jun Biao que ele mal podia falar, levando muita gente a acreditar que ele fosse surdo-mudo. Ele lutou muito para conseguir trabalho suficiente para alimentar sua família. Ao mesmo tempo que tinha um emprego de meio período como segurança, também atuava como pescador. Muitas vezes levava seus filhos consigo para que apanhassem o jantar.

Os pais de Hoi Chuen ficaram exultantes ao saberem que o filho deles se tornaria aprendiz de um cantor de ópera. Isso significava ter uma boca a menos para alimentar e uma carreira em potencial para um de seus filhos. No dia marcado, Hoi Chuen deixou sua casa e iniciou seu treinamento: uma rotina brutal de treinamentos de representação, canto, acrobacias e kung fu (também chamado “gung fu”) do alvorecer ao crepúsculo. Diferentemente de sua mais sóbria e contida correspondente europeia, a Ópera Chinesa ostentava figurinos extravagantes, vistosas maquiagens faciais completas, canto em falsete, práticas de ginástica olímpica e combates encenados no palco, com as mãos nuas e também com o uso de armas.

Após anos de estudo, Li Hoi Chuen juntou-se aos atores veteranos nos palcos de Foshan. Ele se especializara na representação de papéis cômicos. Em 1928, sua trupe de ópera decidiu mudar-se para quase cem quilômetros ao sul, para Hong Kong, em busca de plateias maiores e com mais dinheiro. Sempre leal à sua família, Hoi Chuen convidou vários de seus irmãos para se juntarem a ele na colônia britânica, onde poderia ajudá-los a obter empregos como garçons e atendentes. Hoi Chuen ainda sustentava sua carreira artística com um trabalho de meio período em um restaurante.

À medida que Hoi Chuen e sua trupe de ópera apresentavam-se por toda a colônia, sua fama foi crescendo até que foram convidados para fazer uma apresentação privativa em uma suntuosa residência chamada Idlewild, de propriedade de Sir Robert Hotung Bosman, o homem mais rico de Hong Kong. Foi ali que o pai e a mãe de Bruce Lee, Li Hoi Chuen e Grace Ho, trocaram os primeiros olhares, além de poderem ter visto mais nitidamente as divisões econômicas, culturais e raciais existentes por toda a China. O lado materno da família de Bruce era rico e influente, enquanto seu lado paterno era pobre e não gozava de nenhum poder.

Grace Ho era membro do clã eurasiano dos Bosman-Hotung – o equivalente de Hong Kong dos Rockefeller ou dos Kennedy. Seu avô fora Charles Henri Maurice Bosman. Embora muitos pensem que Bosman fosse um católico alemão, o bisavô de Bruce Lee era um judeu holandês. Ele nascera Mozes Hartog Bosman, em Roterdã, em 29 de agosto de 1839.

Mozes se juntara ainda adolescente à Companhia Holandesa da Ásia Oriental, e chegou a Hong Kong em 1859. Sua fortuna foi conquistada por meio do comércio de coolies. Ele embarcava camponeses chineses para a Guiana Holandesa para trabalharem nas plantações de cana-de-açúcar, depois da abolição da escravidão africana; também enviava trabalhadores para a Califórnia, onde foram empregados na construção da ferrovia Central Pacific Railroad. Seu sucesso comercial levou-o a se tornar cônsul holandês em Hong Kong, em 1866. Devido ao antissemitismo vigente à época, todas as suas cartas endereçadas ao ministro de Assuntos Exteriores da Holanda eram assinadas apenas como “M Bosman”.

Logo que chegou a Hong Kong, Bosman adquiriu uma concubina chinesa, chamada Sze Tai. A adolescente havia crescido na Ilha Chongming, em Xangai, em uma boa família, tal como evidenciavam seus pés comprimidos (garotas provenientes de famílias abastadas, que não precisariam de seus pés para trabalhar, podiam suportar tê-los atados e comprimidos.) Porém, quando o pai dela faleceu, a família enfrentou tempos difíceis, e a garota acabou sendo vendida para que as dívidas fossem saldadas. Sze Tai teve seis filhos; e, como o pai das crianças era originário da Holanda, todos receberam o sobrenome chinês “Ho”. Mozes Hartog Bosman viu-se às voltas com sérias dificuldades financeiras e foi à falência em 1869. Abandonou então sua família chinesa e mudou-se para a Califórnia, onde também mudou seu nome para Charles Henri Maurice Bosman. Para proteger seus filhos, Sze Tai tornou-se a quarta concubina de um comerciante de gado chinês, chamado Kwok Chung. Ele demonstrava pouco interesse em prover as crianças eurasianas dela e mal lhes dava o suficiente para que pudessem se alimentar; mas Sze Tai o convenceu a pagar pelos estudos das crianças na prestigiosa Central School (atualmente, Queen’s College), onde puderam aprender inglês.

Robert Hotung era o mais velho dos seis filhos que Sze Tai tivera com Bosman. Ele cresceu e tornou-se um “comprador” (como eram chamados os agentes para o comércio exterior), a serviço da Jardine Matheson, o maior conglomerado comercial da Ásia Oriental. Ele fez fortuna com a navegação, seguros, negócios imobiliários e ópio. Aos 35 anos de idade, o tio-avô de Bruce Lee já era o homem mais rico de Hong Kong.

Para auxiliá-lo com seus vários interesses comerciais, Robert Hotung contratou seu irmão mais novo, Ho Kom Tong, que logo viria a se tornar o segundo homem mais rico de Hong Kong. As duas grandes paixões do avô de Bruce Lee eram a Ópera Cantonesa (ele chegou a atuar sobre os palcos para angariar fundos para eventos de caridade) e as mulheres. Ho Kom Tong casou-se aos 19 anos de idade e logo passou a colecionar concubinas, até atingir um
total de doze, em Hong Kong. Na propriedade que mantinha em Xangai por razões comerciais, Ho Kom Tong tomou sua décima terceira concubina, uma dama eurasiana, chamada Miss Cheung. Ele também mantinha secretamente uma amante inglesa em Xangai, e ela lhe daria mais uma filha – a décima terceira criança de sua prole – em 1911. Seu nome era Grace Ho, ou Ho Oi Yee, em chinês. Nada se sabe a respeito da mãe inglesa de Grace Ho, ou sobre por qual razão ela rejeitou sua bebezinha, mas Grace foi criada por Miss Cheung
como se fosse sua própria filha.

Sendo metade inglesa, um quarto judia-holandesa e um quarto chinesa Han, filha de uma família eurasiana na Xangai colonial, a criação de Grace Ho foi muito europeia. Em vez de aprender a ler com os caracteres chineses, ela foi alfabetizada em inglês e francês. Quando adolescente, estudou medicina ocidental, com esperanças de tornar-se enfermeira. Ela também converteu-se ao catolicismo, sem dúvida motivada por sua absoluta insistência quanto à monogamia e total condenação à poligamia.

Grace havia testemunhado a infelicidade de sua mãe adotiva, que precisava competir com uma dúzia de outras concubinas pela atenção de um homem. Grace estava determinada a ter uma vida muito diferente. “Ela não se sentia feliz com os modos tradicionais e pecaminosos de seu pai”, diz Phoebe Lee, a irmã mais velha de Bruce. Em vez de aceitar um casamento
arranjado, como era comum para as chinesas e eurasianas de sua classe social, Grace fugiu para Hong Kong aos 18 anos de idade, e foi morar com seu tio Robert. Grace tornou-se uma socialite em Hong Kong, preenchendo seus dias com reuniões e eventos sociais da moda. Ela era rica, independente e solteira com vinte e poucos anos – uma raridade entre as mulheres chinesas daquela época –, até o dia em que a trupe de Li Hoi Chuen chegou à mansão
Idlewild de Sir Robert Hotung.

Sir Robert pretendia oferecer o evento aos seus amigos, mas sua sobrinha, Grace Ho, pediu ao tio que lhe permitisse assisti-lo. Ela não tinha muita experiência com as formas tradicionais de arte chinesa, e desejava assistir à sua primeira apresentação de Ópera Cantonesa, que era considerada um divertimento vulgar e popularesco, tal como os espetáculos de vaudeville, destinados ao entretenimento das massas chinesas.

Li Hoi Chuen e sua trupe viajaram pela balsa Star Ferry de Kowloon para a ilha de Hong Kong, onde percorreram a pé todo o caminho para Idlewild, localizada no no 8 da Seymour Road, em Mid-Levels. Os atores pintaram o rosto com muita maquiagem, vestiram figurinos ornamentados e testaram armas de kung fu, antes de marcharem para o pátio para entreterem a plateia privativa das elites eurasianas.

Grace ficou intrigada e encantada com as performances, mas quanto mais assistia a eles, mais suas atenções se concentravam sobre um jovem e atraente ator, dotado de excelente timing para a comédia. “Apenas aqueles dez minutos, pouco mais ou pouco menos, em que papai ficava no palco”, diz Robert Lee, o irmão mais novo de Bruce, “foram suficientes para que mamãe ficasse profundamente impressionada por suas técnicas de representação e desenvolvesse alguns sentimentos por ele.” Ela se apaixonou por papai porque ele a fez rir.

Na China, nos anos 1930, era algo inusitado que uma mulher fosse atrás de um homem, mas Grace procurou por Li Hoi Chuen e o encantou. Algo duplamente escandaloso era que essa mulher era a filha de uma família abastada que se apaixonou por um ator que lutava duramente para ganhar a vida. O casamento era uma instituição financeira, que deixava pouco espaço para o romantismo. Supunha-se que Grace viesse a se casar com um rico eurasiano, de respeitável e longa linhagem; não com um filho de camponeses analfabetos.
Seu clã inteiro opôs-se ao relacionamento. Foram feitas ameaças. Pressões foram aplicadas. “Mas mamãe era muito independente, voluntariosa e adaptável”, diz Robert, “e ela, afinal, decidiu que queria ficar com papai.” Como filha de duas culturas, a opção de Grace era um microcosmo do conflito entre o individualismo ocidental e o tradicionalismo chinês; o romantismo contra as obrigações familiares. Em meio à cultura chinesa tradicional, patriarcal e poligâmica, Grace Ho casou-se por amor. Ela não foi formalmente deserdada, mas sua decisão de fugir secretamente para casar-se causou uma ruptura, e ela foi financeiramente excluída. Grace deixou de ser uma rica socialite para tornar-se a esposa de um ator chinês.

Se Grace sentiu algum arrependimento por sua decisão, jamais falou sobre isso. Depois da romântica rebelião contra sua família, ela se adaptou confortavelmente à frugalidade da vida de uma esposa chinesa comum. Ela se vestia com roupas simples, usando um cheongsam (um vestido reto e justo, com uma gola alta e uma fenda na saia) somente em ocasiões especiais. Ela adorava tricotar e jogar mahjong* com suas amigas. Sua personalidade corporificava o ideal chinês de mulher – wenrou ( ) –; ou seja, silenciosa, gentil e carinhosa. “Minha mãe era muito paciente, muito bondosa e capaz de controlar suas emoções”,
diz Phoebe. “Ela era muito refinada; não falava muito e sorria o dia inteiro. O tipo de mulher tradicional.”

Confúcio modelara a sociedade chinesa sobre a família patriarcal: o imperador como um pai rigoroso, mas benevolente, e o povo como seus filhos obedientes. Como o mais bem-sucedido membro de sua família, cabia a Li Hoi Chuen o dever de sustentar todo seu clã, servindo como seu imperador. Quando o pai de Li Hoi Chuen morreu, ele apoiou e sustentou sua mãe, como seria esperado do cumprimento de seu dever filial. “Meu pai entregava todo seu salário à mãe dele, e minha mãe fazia o mesmo”, diz Phoebe. “Minha avó retirava apenas um pouco para si e devolvia todo o restante ao meu pai. Quando ele se recusava a aceitar, ela insistia para que pegasse o dinheiro como se fosse dela própria.” Quando um dos irmãos mais velhos de Hoi Chuen também morreu de forma inesperada, ele transferiu a viúva deste, com seus cinco filhos, para o minúsculo apartamento em que vivia com Grace.

Como esposa, era dever de Grace apoiar seu marido e produzir-lhe uma prole – especialmente com herdeiros do sexo masculino. Há um dito popular chinês – duo zi duo fu –, segundo o qual “quanto mais filhos, mais felicidade”. Para completo deleite de seu marido, o primeiro filho de Grace foi um menino. Tragicamente, porém, ele morreu quando tinha apenas três meses de vida. Embora as taxas de mortalidade infantil à época fossem muito mais elevadas do que hoje em dia, a perda de um menino ainda era considerada um mau agouro; talvez até mesmo o sinal de uma maldição. Quando Grace estava no oitavo mês de gravidez do segundo filho do casal, a família adotou uma garotinha e deu-lhe o nome de Phoebe. Tal atitude parecia extremamente inoportuna: Hoi Chuen lutava muito para sustentar a mãe e a família de seu irmão falecido; ele não precisava de nenhuma boca a mais para alimentar. Uma explicação é a de que Phoebe seria uma espécie de “apólice de seguro” contra uma profecia ruim. A superstição ditava que a segunda criança da prole de um casal deveria ser uma menina; se Grace estivesse grávida de um menino, ele estaria em perigo, a menos que tivesse uma irmã mais velha. Porém, o mais provável é que Phoebe não tenha sido uma órfã aleatoriamente escolhida. A menina seria filha de Hoi Chuen com outra mulher,
que, após ter dado à luz uma filha, e não a um altamente valorizado filho, entregou a garota para que Hoi Chuen a criasse. De sua parte, Phoebe, que é muito sensível quanto a esse assunto, afirma ser parente de sangue de seus irmãos: “Apesar de termos personalidades distintas, nós somos muito próximos. O sangue é mais espesso do que a água, e nossos genes são os mesmos!”. Um mês depois da adoção de Phoebe, Grace deu à luz outra filha, que foi
chamada de Agnes. “Phoebe é minha filha adotiva”, declarou Li Hoi Chuen às autoridades da Imigração dos Estados Unidos, em 1941. “Ela é cerca de quarenta dias mais velha do que minha filha, Agnes.”

Depois de Agnes, Grace logo engravidou novamente e deu à luz um filho, Peter, em 23 de outubro de 1939. Imediatamente, o menino teve a orelha furada. Ainda que tivesse duas irmãs mais velhas, ainda se considerava que Peter corresse o risco de ser apanhado por míticos espíritos malévolos que roubavam garotinhos. Devido ao fato de o primeiro filho do casal ter morrido ainda na infância, qualquer menino nascido posteriormente teria de ser vestido como uma menina, ser chamado por um apelido feminino e ter uma orelha furada para enganar o demônio raptor de meninos. Tratava-se de um costume antigo, que, nesse caso, funcionou. Peter viveria uma vida longa, a despeito de outro demônio que rondava o país, vitimando crianças e adultos em números assombrosos: o Império do Japão.

Por dois mil anos, a China viu a si mesma como a civilização mais avançada sobre a face da Terra; o próprio nome do país, Jong Guo ( ), significa, literalmente, “País Central”. A chegada dos colonizadores europeus, com sua superioridade militar e tecnológica, abalou as bases do chauvinismo chinês. Quando o governo Qing tentou impedir que comerciantes britânicos importassem ópio, que estava causando uma epidemia de dependência química, o
Reino Unido deflagrou a Primeira Guerra do Ópio (1839-1842) e esmagou a oposição chinesa. Apelando formalmente pela paz, o imperador Qing cedeu Hong Kong – então uma ilha rochosa, com uma população de apenas 7 mil pescadores – e abriu, por meio de tratados, alguns poucos portos ao comércio internacional. Em vez de apaziguar os bárbaros de nariz grande, as concessões apenas deram mostras de uma fraqueza que aguçou ainda mais os apetites dos imperialistas ocidentais. A Inglaterra, a França e os Estados Unidos apossaramse
de mais territórios, incluindo partes de Xangai, o centro urbano comercial mais importante do país.

O povo chinês considerou a perda de Xangai para os ocidentais como um insulto gravíssimo. Isso marcou o início do que os patriotas chineses chamaram de “O Século da Humilhação”. Em 1899, um levante de praticantes de artes marciais chineses (chamados Boxers), convencidos de que os poderes místicos do kung fu poderiam deter as balas estrangeiras, convergiram para Beijing (ou Pequim) com a seguinte palavra de ordem: “Apoiem o governo
Qing e exterminem os estrangeiros”. Revelou-se que seu kung fu não podia deter projéteis metálicos disparados em alta velocidade e os Boxers, junto com o exército chinês que lhes proporcionava uma retaguarda, foram massacrados pela aliança formada por sete nações – a Inglaterra, a França, os Estados Unidos, a Alemanha, a Itália, a Áustria-Hungria e o Japão. A ineficácia do governo e do kung fu para proteger o povo chinês abalou sua autoconfiança e
provocou a derrocada da Dinastia Qing, em 1912, resultando em décadas de caos, formação de milícias regionais e guerra civil. A China ficou conhecida como “O Homem Doente da Ásia”.

Ao contrário da China, que não foi capaz de adaptar-se com a rapidez necessária, o Japão não demorou para adotar a tecnologia militar do Ocidente e suas políticas imperialistas. Imitando o que os europeus haviam feito nas Américas, na África e na Ásia, os japoneses expulsaram os ocidentais da Ásia Oriental para colonizá-la eles mesmos. Eles voltaram os olhos para o Homem Doente. Depois de arrebatar territórios ao longo da periferia da China (tais como
as Ilhas Senkaku, Taiwan, a Coreia e a Manchúria), os japoneses lançaram uma ofensiva em larga escala e invadiram as terras continentais do país em 7 de julho de 1937, avançando rapidamente e matando milhões.

A colônia britânica de Hong Kong servia como um ponto crucial na linha de abastecimento de suprimentos para a resistência chinesa e como um campo de refugiados. A população da ilha aumentara em 63%, contando com mais de 600 mil habitantes. Depois da irrupção da guerra entre a Inglaterra e a Alemanha, em 1939, os britânicos continuaram a ostentar o estoicismo, sua “marca registrada”, convencendo seus súditos chineses de que estariam protegidos pela invencível Marinha Real Britânica e pela superioridade da raça branca. Mas, na esfera privada, o governo britânico percebeu que “não seria realista esperar que Hong Kong possa ser mantida por muito tempo mais” contra uma invasão japonesa, e que “a demora na tomada de uma ação seria o melhor pelo que se poderia esperar”.

Naqueles tempos de guerra e sob a falsa sensação de segurança de uma Pax Britannica, Li Hoi Chuen e Grace Ho tomaram uma decisão fatídica. No outono de 1939, a trupe de ópera de Hoi Chuen foi convidada a fazer uma longa turnê, com duração de um ano, pela América. O objetivo era arrecadar fundos com as comunidades chinesas de ultramar para que contribuíssem com o esforço de guerra. O problema era que ele só poderia levar consigo um membro da sua família. Enquanto as forças japonesas aproximavam-se cada vez mais de
Hong Kong, Grace teve de decidir se o acompanharia, deixando seus três filhos (Peter tinha menos de dois meses de vida) aos cuidados da sogra, ou se permitiria que seu marido viajasse através de meio mundo por um ano, totalmente desacompanhado. Foi a sogra de Grace quem a convenceu para que acompanhasse seu filho. “Minha avó paterna disse que ela deveria viajar junto com meu pai, ou ele poderia ser tentado por alguém”, diz Phoebe com um sorrisinho. “Ela disse à minha mãe para que não se preocupasse, pois enquanto a vovó
estivesse por aqui, ninguém iria maltratar essas três crianças. Então, minha mãe
foi com ele, enquanto Agnes, Peter e eu permanecemos em Hong Kong.” Hoi Chuen solicitou um visto de não imigrante válido para os Estados Unidos no dia 15 de novembro de 1939. Seu motivo alegado para viajar para os Estados Unidos foi “exclusivamente para trabalho teatral” e registrou sua profissão como “ator”. Na solicitação de Grace, ela escreveu que seu motivo era o de “acompanhar meu marido”. Ela fingiu sua ocupação como sendo a de
“atriz, encarregada de guarda-roupas”. Ela era na verdade dona de casa e mãe. Todos os familiares compareceram às docas do porto de Hong Kong. Em lágrimas, Hoi Chuen e Grace beijaram seus filhos pequeninos e despediram-se deles antes de subirem a rampa de acesso para o navio a vapor SS President Coolidge, para sua longa viagem à América. Era a primeira vez que ambos deixavam a Ásia.

Depois de uma jornada de três semanas, com uma parada em Honolulu, o President Coolidge enfim singrou as águas da baía de São Francisco no dia 8 de dezembro de 1939. Hoi Chuen e Grace contemplaram, maravilhados, a recentemente construída Golden Gate, a mais alta e mais longa ponte suspensa do mundo. Enquanto o vapor lentamente seguia seu curso através da baía, o casal também pôde avistar a prisão federal na Ilha de Alcatraz e a Feira Mundial de
1939, sediada na Treasure Island (“Ilha do Tesouro”), que exibia uma gigantesca estátua de mais de 24 metros de altura representando Pacífica, a deusa do Oceano Pacífico. O Coolidge atracou na Ilha Angel, chamada de “Ilha Ellis do Oeste”.* Imigrantes chineses em busca de residência permanente muitas vezes permaneciam ali detidos por meses. O Ato de Exclusão de Chineses, instituído em 1882 e que ficaria vigente até 1943, proibia a imigração de trabalhadores chineses com baixa qualificação profissional. Como Hoi Chuen e Grace chegaram com um visto válido por um ano como trabalhadores culturais, sua situação
foi processada com relativa rapidez.

Recebidos por um representante do Teatro Mandarim, que havia patrocinado seus vistos, Hoi Chuen e Grace foram guiados através das ruas de Chinatown. Aquele era o maior enclave chinês fora da Ásia, e a única área em São Francisco onde um chinês poderia ter uma propriedade. Reconstruído após o terremoto de 1906, o aglomerado densamente povoado de edifícios de tijolos de três ou quatro andares que se estendia por uma área de 24 quarteirões já era, havia muito tempo, uma importante atração turística, com seus numerosos restaurantes, antros de jogatina e bordéis. O clube noturno Forbidden City (“Cidade Proibida”) era famoso por suas exóticas apresentações tipicamente orientais. Li Po, que atendia a quaisquer demandas de uma clientela homossexual, anunciava seu estabelecimento como “um jovial e informal bar de coquetéis de Chinatown”, onde era possível encontrar “amor, paixão e vida noturna”. Em todas as esquinas, garotos chineses vendiam jornais editados em inglês e em chinês. A manchete do San Francisco Chronicle tratava do julgamento de um líder trabalhista local acusado de ser comunista.

Hoi Chuen e Grace caminharam pelo trecho mais movimentado da Grant Street, no coração de Chinatown, para conhecerem o que seria seu local de trabalho pelo próximo ano, o Teatro Mandarim. Construído em 1924, com um distinto toldo arqueado verde, vermelho e dourado, o Teatro Mandarim desempenharia um papel-chave na cultura de apresentações ao vivo de ópera (e, posteriormente, de cinema) por décadas. Seu principal concorrente era o Grande Teatro China, a apenas um quarteirão de distância a leste, na Jackson Street. As duas casas estavam constantemente competindo para importar os maiores talentos da ópera provenientes da China. Foi no contexto dessa rivalidade que o Mandarim contratara a trupe de Hoi Chuen, intermediando junto ao Departamento de Imigração o processo de aceitação de cada um dos atores e pagando muito mais por seus talentos do que eles jamais haviam recebido em Hong Kong. Hoi Chuen e Grace foram morar na pensão mantida pelo Teatro Mandarim, no no 18 da Trenton Street, a um quarteirão do Hospital Chinês, a “pedra angular” da vizinhança e que se revelou uma localização afortunada. Àquela época, o Hospital Chinês era o único estabelecimento de saúde que aceitava tratar de pacientes chineses. Em abril, Grace se deu conta de que estava grávida mais uma vez. Quando a data prevista para o parto já se aproximava, a trupe de Hoi Chuen foi escalada para apresentar-se em Nova York. Com grande relutância, ele deixou a esposa grávida sozinha em uma cidade estrangeira, nos últimos estágios de sua gravidez, e embarcou em uma viagem de trem que atravessaria todo o país. Grace escondia sua ansiedade por trás de um sorriso fixo. Quando ela entrou em trabalho de parto, poucas semanas depois, vizinhos a ajudaram a caminhar pela rua até o hospital. Um belo e saudável menino – cinco oitavos chinês Han, dois oitavos inglês e um oitavo judeu-holandês – nasceu às 7h12 da manhã do dia 27 de novembro de 1940. Vizinhos telefonaram para o Teatro Le Qian Qiu, na Chinatown de Nova York, e deixaram um recado para Hoi Chuen: “É um menino!”. Quando ouviu a boa notícia naquela noite, Hoi Chuen celebrou com todo o elenco, presenteando a todos com cigarros – o equivalente chinês à distribuição de charutos aos amigos, no Ocidente. A primeira pergunta que todos os companheiros atores lhe fizeram foi: “Quais são os signos astrológicos dele?”. O zodíaco chinês não considera apenas os conhecidos doze animais – o rato, o boi, o tigre, o coelho, o dragão, a serpente, o cavalo, o carneiro, o macaco, o galo, o cão e o javali – atribuindo-os ao ano de nascimento de cada pessoa (chamados de animais exteriores); mas, também, o mês (os chamados animais interiores), o dia (os animais verdadeiros) e a hora do nascimento (os animais secretos). Dentre os doze signos natais, o do dragão é considerado o mais poderoso e o mais propício. Os imperadores chineses adotavam o dragão como seus símbolos, fazendo com que esse animal mitológico fosse sempre associado à liderança e à autoridade. Muitos pais chineses tentam programar o tempo das gestações esperando que seus filhos nasçam no ano, no mês, no dia e na hora do dragão.

Orgulhosamente, Hoi Chuen informou a todos que seu garoto nascera no ano do dragão, no mês do javali, no dia do cão e na hora do dragão. Dois signos do dragão, especialmente se um deles fosse o do ano, eram considerados excepcionalmente auspiciosos. Toda a trupe o parabenizou: “Seu filho está destinado à grandeza”.

Em São Francisco, Grace precisava escolher um nome americano para seu filho, um cidadão natural dos Estados Unidos. Quando Li Hoi Chuen solicitara o visto de não imigrante, seu sobrenome foi modificado, de “Li” para a versão anglicizada “Lee”, tornando-se Lee Hoi Chuen. Assim, na certidão de nascimento do garoto, seu último nome também foi grafado como “Lee”, e uma sutil alteração na grafia marcava um rompimento com o passado e um novo começo. Para o primeiro nome, Grace, que falava muito pouco o inglês, apelou para a ajuda de um amigo sino-americano. Este consultou a parteira, Mary E. Glover, que fizera o parto e assinara a certidão de nascimento. Ela sugeriu-lhe “Bruce”.

Sozinha com o filho, Grace escolheu um nome chinês para o menino: Li Jun Fan ( ). “Li” era o sobrenome da família; “Jun” era parte do nome do pai de Hoi Chuen (Li Jun Biao), que significa “agitar”, “despertar” ou “excitar”; e “Fan” é o caractere chinês correspondente a São Francisco. Assim, o nome chinês de Bruce Lee significaria “Agitar e excitar São Francisco”.

Hoi Chuen voltou para a esposa e o filho recém-nascido logo que foi possível. Tempos depois, Grace diria aos amigos, em tom de brincadeira, que ele chegara com o rosto ainda coberto com a reluzente pintura branca da Ópera Cantonesa. Hoi Chuen decidira que, tendo sido a vida de seu pai tão amaldiçoada pela fortuna, usar no nome de seu filho o mesmo caractere, “Jun," poderia atrair má sorte. Ele então o modificou para um caractere “Jun” ligeiramente diferente, que significa “ecoar”, “reverberar” ou “ressoar”. Hoi Chuen tampouco gostou de “Bruce”; mas, uma vez que este já estava registrado na certidão de nascimento, era tarde demais. Isso não o impediu de queixar-se: “Eu não consigo pronunciar isso”.

Li Hoi Chuen viera para a América para angariar fundos junto às comunidades chinesas de além-mar para financiar o esforço de guerra em casa. Como parte desse processo, ele fizera um grande número de amigos muito próximos. Entre eles, estava Esther Eng, uma pioneira diretora cinematográfica que se especializara na realização de patrióticos filmes de guerra. Enquanto filmava Golden Gate Girl, que também é conhecido como Tears of San Francisco, ela precisou de uma garota recém-nascida para a filmagem de várias cenas e pediu a Hoi Chuen se poderia tomar Bruce “emprestado”. Ele hesitou. Conhecendo intimamente as inconstâncias da vida artística, ele não desejava que o filho viesse a seguir seus passos; mas, como um homem chinês tradicional, ele acreditava profundamente no guanxi, o sistema de relacionamentos, conexões, favores pessoais e reciprocidade que alicerça e mantém fortemente unida a sociedade chinesa. Quando, tempos depois, ele explicou por que decidira emprestar o filho, Hoi Chuen disse que os chineses devem ajudar-se mutuamente, sobretudo quando se encontram em terras estrangeiras. “Papai era muito consciencioso quanto à reciprocidade entre amigos”, diz Robert Lee.

Nascido na estrada, em meio a aplausos, Bruce Lee representou seu primeiro papel cinematográfico antes que sequer tivesse idade suficiente para engatinhar. Mas essa foi sua primeira e última interpretação de uma pessoa do sexo oposto. Em uma breve cena, Bruce, aos dois meses de vida, é embalado em um bercinho de vime usando uma touca com lacinhos e uma blusinha feminina. Sua mãe, Grace, sentiu-se ao mesmo tempo agitada e confusa ao ver seu delicado bebê ser de tal maneira transfigurado para aparecer diante das câmeras. Em outra cena, o bebê Bruce aparece em um close-up com o corpo enrolado em uma manta, e chora inconsolável, com os olhinhos fechados, a boca escancarada, agitando os bracinhos; com as bochechas gorduchas e o queixo duplo vibrando, enquanto o som de seus berros ecoa por toda São Francisco.

Como Bruce ainda era muito jovem para viajar, a família Li estendeu sua permanência por cinco meses além do que seus vistos permitiam. Já fazia quase um ano e meio que Hoi Chuen e Grace não viam seus outros filhos, e eles estavam ansiosos para voltar para casa.

Porém, eles temiam que Bruce talvez não obtivesse permissão para retornar aos Estados Unidos. Funcionários dos serviços de imigração preconceituosos e antichineses costumavam negar a reentrada de crianças chinesas nascidas no país sob a alegação de que teriam se repatriado (isto é, renunciado à sua cidadania norte-americana) ou questionando a validade de sua documentação. Para assegurar-se de que isso não aconteceria com seu filho, Hoi Chuen e Grace contrataram a – apropriadamente nomeada – firma de advogados White & White (ou seja, “Branco & Branco”), à qual apresentaram toda a documentação que evidenciava o nascimento de Bruce em São Francisco, candidataram-se à obtenção de um Formulário de Regresso de Cidadão para seu filho e submeteram-se a um questionamento, sob juramento, pelos Serviços de Imigração e Naturalização dos Estados Unidos. Anexada à solicitação para o retorno havia uma fotografia do rechonchudo e saudável garotinho de três meses, com poucos fios de cabelo e a orelha esquerda furada. O motivo alegado para deixar os Estados Unidos foi o de “uma visita temporária ao estrangeiro.” Uma visita que duraria dezoito anos. Partindo do porto de São Francisco, eles subiram ao convés do SS President Pierce no dia 6 de abril de 1941, para uma viagem de dezoito dias de volta a Hong Kong. Hoi Chuen deve ter considerado sua temporada no exterior um estrondoso sucesso: sua esposa dera-lhe um segundo filho e, agora, ele tinha um herdeiro e um “de reserva”. Como um dos atores mais famosos da turnê, Hoi Chuen contribuíra para agitar os patrióticos corações de muitos sino-americanos. "Ao ouvirem meu pai cantar canções tais como ‘Primeiro-Ministro Unificando os Seis Reinos’, ‘Mártires pela Família Real Ming’ e ‘Os Cavaleiros Carmesins’, muitos chineses expatriados sentiam-se compelidos a voluntariar-se e fazer donativos”, diz Robert Lee.

Cada mínima porção de reciprocidade seria necessária e muito útil, pois Bruce e seus pais estavam voltando para casa e para uma situação que estava ficando cada vez pior.

Ninguém se sentia mais feliz do que vovó Li por ver o regresso de seu filho e de sua nora em segurança para o antigo apartamento na rua Mau Lam. Ela contava então com 70 anos de idade e havia cuidado de Phoebe, Agnes e Peter por dezoito meses, bem como de sua nora viúva e dos cinco filhos dela, em um minúsculo apartamento com apenas dois quartos e um único banheiro. Todos estavam exultantes por conhecer o mais novo membro da família, Bruce Jun Fan. Vovó Li logo o apelidou como “Pequena Fênix”, o animal mitológico que é a contraparte feminina do dragão na mitologia chinesa, para mantê-lo a salvo dos fantasmas de bois e espíritos de serpentes que gostavam de machucar garotinhos. “Embora papai não gostasse muito desse nome de menina, ele foi sempre muito respeitoso quanto aos desejos de sua mãe”, diz Robert Lee, “e, assim, seguiu em frente.” A alegria e o deleite do reencontro logo foram obscurecidos pelas terríveis notícias que chegavam de fora e de dentro do país.

A Segunda Guerra Mundial estava envolvendo todo o planeta em fogo e sangue. Forças japonesas avançavam pelo coração da China. Na Europa, a Luftwaffe alemã bombardeava cidades inglesas e os submarinos U-Boot alemães punham a pique navios de suprimentos provenientes da América. Hong Kong havia sido apartada tanto da China quanto da Inglaterra, restando indefesa e sozinha.

Assim como chineses e britânicos, o jovem Bruce Jun Fan Lee também lutava para sobreviver. Nascido respirando o ar fresco da pacífica atmosfera de São Francisco, o rechonchudo garotinho caiu perigosamente doente no ambiente úmido e infestado de baratas dos tempos de guerra em Hong Kong. Um surto de cólera devastava a colônia, e Bruce Jun Fan ficou tão fraco e magro que seus pais temeram por sua morte. Já tendo perdido um menino, Grace dedicou todo cuidado possível ao filho debilitado. “Acho que eu o mimei demais porque ele era tão frágil”, disse Grace, tempos depois. De fato, devido à enfermidade quase fatal, Bruce Lee cresceu mais frágil do que as outras crianças de sua idade. Ele não conseguia andar sem cambalear até completar 4 anos de idade.

Em 8 de dezembro de 1941, o dia que todos temiam finalmente chegou para a colônia britânica. Oito horas depois do sorrateiro ataque a Pearl Harbor, o Japão invadiu Hong Kong, declarando guerra simultaneamente aos Estados Unidos e à Inglaterra. A guarnição dos Aliados, composta por ingleses, canadenses, indianos e um pequeno grupo de voluntários chineses, era sobrepujada na proporção de quatro homens contra um – eram 52 mil invasores japoneses contra 14 mil Aliados.

Milhares de civis foram mortos durante a batalha, que se espalhou por Kowloon, na extremidade sul da China continental, atravessando o porto e tomando a ilha de Hong Kong. Dentre os que quase morreram estava o pai de Bruce Lee, Hoi Chuen. Tal como muitos cantores de Ópera Cantonesa, ele fumava ópio. Quando Hoi Chuen compartilhava um cachimbo com outro ator em um antro de ópio das vizinhanças, uma bomba lançada por um avião japonês atravessou o teto, esmagando seu companheiro de trabalho na cama contigua à sua, rompendo o piso e levando os destroços e o corpo do ator para o porão do estabelecimento. A bomba falhou e não explodiu, razão pela qual Hoi Chuen sobreviveu.

Menos de três semanas foram necessárias para que os japoneses tomassem o muito vulnerável posto avançado imperial, no dia 25 de dezembro de 1941 – data que, desde então, tornou-se conhecida em Hong Kong como o “Natal Negro”. Foi a primeira vez que uma colônia britânica se rendeu a uma força invasora. Quaisquer ressentimentos que os chineses tivessem quanto à frouxidão do controle colonial britânico, nada se comparava ao horror que experimentariam com a brutalidade totalitária de seus novos senhores japoneses, que decidiram que a melhor maneira de controlar a colônia seria despovoá-la. Quem não tivesse residência fixa ou um emprego fixo era forçado a deixá-la. Os que permaneceram padeceram sob um reinado do terror. Dez mil mulheres sofreram estupros coletivos. Em três anos e oito meses de ocupação japonesa, a população caiu de 1,5 milhão para 600 mil habitantes. Um terço das pessoas fugiu – em sua maioria para a colônia portuguesa de Macau, nas proximidades; outro terço sobreviveu, por quaisquer meios necessários; e o restante morreu de fome ou foi assassinado. Militares japoneses costumavam fuzilar ou decapitar passantes chineses que se esquecessem de curvar-se reverentemente diante deles.

Civis eram mortos ao serem escolhidos aleatoriamente como “sacos de pancadas” em exercícios da prática do jiu jítsu, sendo rude e repetidamente atirados ao chão até tornarem-se incapazes de mover um músculo, quando eram, então, mortos a golpes de baionetas. Em média, três centenas de cadáveres eram coletados das ruas todos os dias durante o período da ocupação – os que não haviam sido assassinados morriam devido a doenças ou à desnutrição.

Li Hoi Chuen era o único provedor de uma residência onde viviam treze pessoas. Se fossem forçados a fugir para Macau, seria improvável que todos os membros da família sobrevivessem – especialmente seu filho caçula, Bruce, que mal havia se recuperado de sua enfermidade quase fatal. Felizmente para HoiO Chuen e seus dependentes, os japoneses apreciavam a Ópera Chinesa. O encarregado do Ministério das Comunicações japonês, Wakuda Kosuke, fez uma oferta a todos os atores mais famosos de ópera – inclusive a Hoi Chuen, que era um dos quatro grandes atores cômicos ao estilo “clown”* – que eles não poderiam recusar. O que foi dito exatamente, não se sabe. “Papai jamais falou a ninguém sobre isso”, diz Robert Lee. “Mas, considerando a tática japonesa de empregar o racionamento de comida para ameaçar as pessoas, só podemos imaginar que ele não tenha tido outra escolha.” Phoebe diz: “Os japoneses forçaram meu pai a atuar, mas não o pagavam com dinheiro. Em vez disso, eles o pagavam com arroz, de modo que tínhamos arroz para uma refeição, uma vez por semana. No restante das vezes, tínhamos de usar farinha de tapioca para fazermos bok-chan (uma espécie de panqueca cantonesa)”.

Os japoneses acreditavam que a continuidade das apresentações de ópera criavam uma impressão de paz dentro do que eles chamavam de “Esfera de Coprosperidade da Grande Ásia Oriental”. Assim, o trabalho de Hoi Chuen como ator de ópera conferia a ele e sua família um status ligeiramente mais elevado. Mais tarde, Grace diria aos seus filhos que, sempre que soldados japoneses se aproximavam demais, ela apenas dizia que seu marido era um ator de ópera chinês e eles não lhe causavam nenhum problema.

Na densamente povoada Hong Kong dos dias anteriores à guerra, o bem mais valioso era uma propriedade imobiliária. Ao remover dois terços da população local, os japoneses acabaram inundando o mercado imobiliário com propriedades disponíveis. De um momento para o outro, os poucos que, como Hoi Chuen, tivessem um trabalho e acesso a rações alimentares decentes poderiam melhorar dramaticamente sua condição de vida. Cerca de um ano depois da ocupação, ele se mudou com os treze membros de sua família para um apartamento com mais de 350 metros quadrados – muito espaçoso para os padrões de Hong Kong. O aspecto comercial mais atrativo do apartamento era a sua localização, no no 218 da Nathan Road, em Kowloon, bem em frente, cruzando um pequeno parque, do quartel-general japonês da ocupação. Isso tornava a vizinhança segura em meio à desesperada criminalidade dos famintos habitantes locais que tentavam sobreviver. Ao longo dos dois anos seguintes, Hoi Chuen fez bons negócios, adquirindo, por valores muito baixos, quatro outros apartamentos, como propriedades para locação.

Porém, mesmo para as famílias muito afortunadas como os Li, a vida ainda era uma batalha diária pela sobrevivência, repleta de privações, miséria e humilhação. Um estrito toque de recolher noturno era imposto, concomitante com a exigência de absoluto silêncio. Certa noite, durante a ocupação, uma das tias de Bruce participava de uma ruidosa partida de mah-jong no apartamento de alguns amigos. Isso fez com que soldados japoneses chutassem e derrubassem a porta para fazê-los parar com o barulho. Quando a tia objetou, empregando um tom de voz ainda mais alto, um soldado japonês aplicou-lhe uma bofetada no rosto, forçou-a a se curvar reverentemente e obrigou-a a desculpar-se cem vezes.

A vergonha coletiva e a humilhação sofridas durante a ocupação levaram muitos a exagerarem dizendo que sua capacidade de resistência teria se esgotado. Uma das mais antigas histórias que a família gostava de contar acerca de Bruce Jun Fan era a de que o patriótico e resoluto menininho punha-se em pé na sacada do apartamento e “brandia seu punho desafiadoramente para os aviões japoneses que sobrevoavam a cidade”. Essa é uma imagem carregada de orgulho, mas traz consigo um problema. Quando o jovem Bruce, nascido em 27 de novembro de 1940, já tinha idade suficiente para ficar em pé e erguer um punho cerrado, os japoneses já haviam perdido o controle do espaço aéreo da colônia para os Aliados. Se Bruce alguma vez brandiu seu punho para algum avião estrangeiro, certamente terá sido para um avião norte-americano. “Eu estava em Macau durante a guerra”, diz Marciano Baptista, um colega de classe do irmão mais velho de Bruce, Peter. “Aviões americanos atacavam as estações de energia elétrica e os estoques de petróleo em 1943, 1944. Nós ainda brandíamos nossos punhos para eles porque eles estavam provocando o caos.” Ainda que os Aliados controlassem o espaço aéreo havia vários anos, a libertação de Hong Kong teria de esperar até depois de Hiroshima, Nagasaki e a rendição do Japão, em 15 de agosto de 1945. Tanto os chineses quanto os oficiais norte-americanos esperavam que o controle de Hong Kong fosse devolvido à China, mas os britânicos, que consideravam a restauração da ordem colonial uma questão de honra e uma necessidade para os seus interesses comerciais na Ásia, apressaram se a enviar uma força-tarefa da Marinha Real a Hong Kong para aceitar a rendição japonesa e recuperar o controle de Hong Kong para si, em 30 de agosto.

Examinando agora, esse foi o melhor desfecho possível para Hong Kong. A China estava a ponto de ser consumida por uma guerra civil entre os nacionalistas e os comunistas, liderados por Mao Tsé-Tung, que iria dividir ainda mais o país e, depois, afundá-lo em décadas de isolamento, tumultos e incertezas. Em contrapartida, os habitantes de Hong Kong floresceriam – sobretudo os membros de famílias como a dos Li, que desfrutaram de seu período mais próspero depois das amarguras da ocupação de três anos e oito meses. 

Trecho extraído de Bruce Lee – Uma Vida: a Biografia Definitiva da Lenda do Cinema Que Transformou as Artes Marciais em Um Fenômeno Global, de Matthew Polly © 2021 da Editora Seoman com permissão do Grupo Editorial Pensamento. Todos os direitos reservados.


Serviço

Bruce Lee - Uma Vida foi publicado em 8 de julho de 2021, pela Editora Seoman. O livro pode ser encontrado em versão física, a qual custa R$ 109,90 e contém 712 páginas, e versão e-book, por R$ 76,98.

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