- ADAMS CARVALHO

Caetano Veloso

Redação Publicado em 06/04/2009, às 18h50 - Atualizado em 12/05/2009, às 21h27

Caetano Veloso

Zii e Zie

Universal

Influências e referências se embaralham em disco que apresenta matizes híbridos

Se as capas dos discos pudessem contar a história dos discos, as de Caetano Veloso talvez desnudassem confissões perturbadoras. O rei-sol leãozinho, que enchera de luzes e cores a maioria das capas desde pelo menos 1979, de repente se turvou, à beirada do século 21. De 1999 para cá, tudo virou escuridão nas vitrines de seus discos autorais. As nuvens carregadas na capa marítima do novoZii e Zie exacerbam este já comprido ciclo de sombra – e, não, o assunto aqui não é a embalagem do CD. Em 2002, como num soluço otimista, Caetano se ligou ao bardo esganiçado Jorge Mautner e lançou Eu Não Peço Desculpa, ensolarado da capa à sequência de canções pop leves, quase descontraídas. E então o tempo fechou, e fechado continua. , de 2006, inaugurou e Zii e Zie eleva às alturas algo que eu arrisco chamar de uma “estética do desagradável” dentro destes 41 anos de caetanografia. Nos dois álbuns, o artista arranca de dentro e põe para fora, às dezenas, motivos de ódio, desolação, separação, tristeza, depressão, inveja, solidão, dor, medo, morte. Delineia-se daí um Caetano franco, quase transparente, mas duro de ouvir. À gosma roxa de Cê somam-se agora modos de cantar do dono da banda, entre agressivos e lamuriosos (“Por Quem?”, “Tarado”) e a aspereza das sonoridades e da banda. Suas novas criações não são de cantarolar ou assoviar junto, e custa um bom número de audições até começarem a causar alguma empatia. Mesmo nos que pendem à bossa nova, não há barquinho, nem patinho, nem saudadinha – exemplos dessa vertente são a (des) esperançosa “Sem Cais” (“inda posso me apaixonar”, ele canta e não-canta), a zangada “Falso Leblon”, a relutante “Lapa” e “Lobão Tem Razão”, por sobre a qual a morte ronda assustadora. A barra aqui é pesada, como se dizia nos tempos da obra-prima Transa,lá por 1972. A ponte induzida entre Transa e Zii e Zie é evidente, mas os temas de lástima de agora (e de ) mais fazem lembrar Araçá Azul, de 1973. Lá, a atitude anti pop se chamava “experimentalismo”. Aqui, se parece mais com melancolia e desamparo – e até empatia, quando os espinhos de “Sem Cais” penetram os ouvidos ou quando “Perdeu” passa a soar menos estranha e sua rispidez começa a fazer sentido. O subtítulo original de Zii e Zie deveria ser Transamba. Não se sabe se Caetano queria se referir a um esquecido LP chamado Transamba, lançado em 1973 pelo futuro cantor de samba enredo Marcos Moran, com versões black- pop para sambas de Chico Buarque, Novos Baianos, Antonio Carlos & Jocafi e Paulinho da Viola. Mas é transparente a intenção de bulir com o samba, do modo torto e arrevesado de hábito. Mesmo nos dois espécimes pinçados do disco de 1976 de Clementina de Jesus (“Incompatibilidade de Gênios”, de João Bosco e Aldir Blanc, e “Ingenuidade”, de Serafim Adriano), o andamento desacelera, a simpatia se esfumaça, a ironia é ressaltada. Leal ao samba de uma nota só dos tempos idos da crucial invenção tropicalista, Caetano reafirma, quantas vezes julgar necessário: chova ou faça sol, a música para ele é, sempre e ainda, musa híbrida. Desorganizado e despido de sua (suposta) caretice, o santo samba em Caetano é trans. Se há no fundo dos cutucões ao samba uma sombra de rivalidade entre os modos baiano e carioca de sentir alegria (e tristeza), Caetano não deixa claro – ele nunca deixa, e esse é outro ponto nuclear do programa de governo tropicalista. Incrível é perceber que estes tempos, esteja brigando com o samba, listando termos repulsivos, berrando raivas, tentando repelir o ouvinte ou fazendo as guitarras gritarem, Caetano só faz falar de amor, o tempo todo. Faria então sentido o mar que quebra majestoso na praia lúgubre da capa de Zii e Zie. Deve ser esse o modo tropicalista de amar. E muita gente fala esse idioma por aqui.

Pedro Alexandre Sanches

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