- ILUSTRAÇÃO: LEO GIBRAN

Ney Matogrosso

Redação Publicado em 07/10/2009, às 13h31 - Atualizado às 13h40

Ney Matogrosso

Beijo Bandido

EMI

Ainda inclassificável, intérprete reforça sua natureza musical híbrida

Pop-rocks de Paula Toller, Herbert Vianna e Cazuza não têm nada a ver com canções de dor-de-cotovelo de Angela Maria e Dalva de Oliveira. A nordestinidade de Geraldo Azevedo e Zé Ramalho não combina com o folk argentino de Astor Piazzolla. Bossas de Vinícius de Morais e Edu Lobo são chiques, enquanto lacrimários de Roberto Carlos e tangos de Jair Amorim e Evaldo Gouveia são cafonas. A novidade de Vitor Ramil briga com a velharia de Herivelto Martins. Dentro de um disco de Ney Matogrosso, todas essas afirmações são mentirosas, se não simplesmente tolas. Em fase de grande e densa produtividade aos 68 anos de idade, o ex-líder da rebelião glam-pop chamada Secos & Molhados constrói Beijo Bandido , seu 30º álbum (sem contar os dois com os S&M), sob um arranjo lógico secreto, interior, pertencente apenas a ele próprio. “Nada por Mim” (lançada em 1985 por Marina Lima) é seguida de “Segredo” (popularizada em 1947 por Dalva de Oliveira), e ambas estão ali lado a lado porque ele quis, pronto. O que unifica o repertório é o tratamento musical. Em contraste direto com o pop-roqueiro Inclassificáveis, do ano passado, este é todo acústico, executado em piano, violão, bandolim, violino, violoncelo e percussão, sob direção musical de Leandro Braga. Assemelha-se portanto a discos graves como Ney Matogrosso Interpreta Cartola (2003), mas (felizmente) se preocupa menos com rebuscamento e grandilo quência. Pop e leve apesar de camerístico, segue mais a linha de As Aparências Enganam (1993), no qual cabiam samba-rock de Jorge Ben e o “Pavão Mysterioso” de Ednardo. O despojamento vai por conta, por exemplo, de “Tango para Tereza”. Melodrama cantado por Angela Maria nos anos 70, poderia ser interpretado como anacrônico ou cafona hoje em dia, mas Ney o trata sem malícia ou deboche, e ‘sim’ com respeito ou tristeza. A tristíssima “À Distância” embalou o Natal brasileiro de 1972 e há décadas saiu de voga até mesmo na voz de Roberto. Ney até justifica sua inclusão, citando a versão feminina, em italiano, ouvida num filme de Luchino Visconti (Violência e Paixão, 1974). Mas nem precisava explicar. Se no auge dos S&M “À Distância” era planeta incomunicável com o de “Flores Astrais” ou “O Vira”, hoje Ney e Roberto se pareiam, no mínimo, por serem talvez os dois maiores intérpretes masculinos vivos do Brasil. A memória daqueles anos fundadores ronda um dos pontos máximos, a regravação de “As Ilhas”, música de Piazzolla com versos de Geraldo Carneiro. Apareceu primeiro num compacto que vinha encartado no disco solo de estreia de Ney, Água do Céu – Pássaro (1975). Aquele (fenomenal) LP trazia futuros clássicos (“Corsário”, “Homem de Neanderthal”, “América do Sul”, “Cubanacan”), mas os dois tangos de Piazzolla ficaram esquecidos no tempo-espaço – até que Ney em pessoa viesse rever “As Ilhas” e os versos cortantes (imagine numa ditadura militar, cantado por um filho de militar) como “vi moscas urdindo fios/ de sombra na madrugada/ vi sangue numa gravura/ e morte em caras paradas”. O tom memorial não fere o faro descobridor, outra das qualidades nucleares do cantor. A “Cor do Desejo” parece feita sob medida (“a tua boca anda oca da minha língua/ a minha língua anda à míngua sem tua boca”), mas foi encontrada por ele em Maceió, num CD de Júnior Almeida, entregue pelo autor numa passagem de Ney pelas Alagoas. O pique pode quase se arrastar em certas enésimas releituras (como “Fascinação”), mas é compensado ali, e na balada de título autoexplicativo “Invento”, de Vitor Ramil. Em outra voz, as combinações testadas em “Beijo Bandido” soariam disparatadas – até podem mesmo soar, nas primeiras audições. Mas as aparências continuam a enganar, e nessa mistura louca se oculta a medula sempre híbrida de Ney Matogrosso, um artista que não pertence à MPB, ao brega, à bossa, ao rock, ao protesto ou ao pop, mas sabe deslizar maciamente pelos gêneros, os classificáveis e os inclassificáveis.

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

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