Músico dispensa colaboradores e mergulha na melancolia e no isolamento. - Divulgação

O Rigor e a Misericórdia

Lobão

José Flávio Júnior Publicado em 24/02/2016, às 11h56 - Atualizado em 22/12/2016, às 11h30

Somente um pedregulho não se emocionará ao tomar contato com as 14 faixas do primeiro álbum de inéditas de Lobão em uma década. Mais do que o exercício de um músico compondo todas as canções, tocando todos os instrumentos e cuidando de todos os aspectos técnicos da gravação, O Rigor e a Misericórdia é um convite à reflexão sobre a solidão, sobre se exilar em seu próprio universo, sobre se tornar um “ermitão urbano”. E colocar-se nesse lugar pode ser penoso para o ouvinte.

Vimos Lobão mudar de turma diversas vezes no curso da carreira. Inúmeros parceiros e amigos queridos viraram desafetos desde que o garoto – então apenas – baterista ganhou os holofotes, nos idos de 1970. Só que sempre surgia uma nova gangue, uma nova patota de músicos para compartilhar ideias e ideais. Na época do lançamento de Canções Dentro da Noite Escura (2005), Lobão vivia um momento bastante gregário, lançando artistas do circuito alternativo por meio da revista dele – a extinta Outracoisa – e tocando em festivais independentes pelo país. Outra característica do período é que ele ainda tinha o Rio de Janeiro como inspiração, algo latente em versos sobre o Leblon e demais paisagens da zona sul.

O Rigor e a Misericórdia é o primeiro disco paulistano de Lobão. Mas a cidade que escolheu para morar após meio século de vida carioca pouco aparece no trabalho. Sem uma matilha para chamar de sua, Lobão concebeu o repertório enfurnado em seu estúdio, lidando com fantasmas reais (“Ação Fantasmagórica à Distância” enseja uma reconciliação com o finado pai; já “A Esperança É a Praia de um Outro Mar” trata da cunhada vitimada por um câncer em 2014) e coisas possíveis (a balada “Uma Ilha na Lua” celebra o aconchego do lar, ao lado da esposa e dos gatos Lampião, Maria Bonita e Dalila).

A falta de mediação de um produtor ou de qualquer músico com voz ativa tem potencial para incomodar fãs de longa data. Esses sabem que vários clássicos de Lobão foram concebidos em cumplicidade com outros autores e que, mesmo discos bem íntimos, como A Vida É Doce (1999), beneficiaram- se de visões externas. Na solitude, o artista retornou ao seu embrião sonoro, envelopando quase todas as novas criações em um hard rock setentista. Dado o seu atual jeito de cantar, muitas faixas soam como um Grand Funk Railroad liderado por alguém com pretensões de Zé Ramalho. É árduo ouvir o álbum, é aterrorizante imaginar tamanho isolamento. Mas o papel de Lobão no cenário sociocultural brasileiro nunca foi o de aliviar. Ele veio para machucar.

Fonte: Tratore

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