Livro de Corbin Reiff conta a história completa do rockstar, ícone do grunge; replicamos o trecho que narra seus últimos momentos
Eduardo do Valle (@duduvalle) Publicado em 17/05/2022, às 18h42 - Atualizado em 22/05/2022, às 14h30
“Detroit! Obrigado! Nos veremos em breve!” Foi assim, com uma promessa, que Chris Cornell despediu-se do público do Fox Theatre, em Detroit na noite daquele dia 17 de maio de 2017. De lá, seguiria com seu guarda-costas Martin Kirsten para o hotel MGM Garden, onde daria alguns autógrafos antes de seguir para o quarto 1136. Foi lá, no banheiro daquele apartamento, que seu corpo foi encontrado horas depois, na madrugada do dia 18. Chris Cornell estava morto.
O final trágico do rockstar, apenas comparável à sua trajetória memorável, é abordado com muito mais detalhes em Chris Cornell: a biografia. Escrita por Corbin Reiff, a obra retrata o início do movimento grunge em Seattle, do qual Cornell foi expoente, seguindo o músico através de arquivos de entrevistas e de depoimentos de pessoas próximas. Seus últimos momentos, há exatos cinco anos, em 2017, ganharam trecho especial no livro, lançado em 2020 e publicado no Brasil em 2021 pela Editora Estética Torta. A tradução é de Marcelo Vieira.
Neste dia, em que a morte de Chris Cornell completa cinco anos, publicamos o trecho que narra os últimos momentos do músico. Os detalhes da última apresentação, as últimas interações e até o parecer do legista que o examinou são descritos com minúcia, bem como as homenagens que se seguiram à notícia da morte.
E, se a promessa de rever o público de Detroit jamais seria cumprida, o mesmo não se pode dizer de outra decisão de Chris, tomada muitos anos antes e também descrita no livro de Reiff. Trata-se de uma lembrança compartilhada pelo rockstar em entrevista à Rolling Stone Australia dois anos antes de sua morte. Na ocasião, ele disse: “Independentemente do que acontecesse em termos de sucesso, eu faria música até o dia que eu viesse a morrer”. E essa promessa, sim, ele cumpriu até o final.
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Leia abaixo o trecho completo sobre a morte do rockstar, retirado de Chris Cornell: a biografia, de Corbin Reiff, à venda no site da Editora Estética Torta:
“Detroit, a cidade do rock, hein?!”, exclama ele após o fim da música. “Eu amo vocês aí em cima, mas vocês têm que se levantar e me mostrar a que vieram.Venho me gabando do público de Detroit há trinta anos. Então se levantem e façam barulho!” Uma explosão de gritos irrompe do mezanino. “Agora façam barulho vocês aqui embaixo para parabenizá-los”, diz Chris apontando para a primeira fila.“É isso aí!” A banda então volta no tempo e toca seu primeiro single,“Hunted Down”.
“Lembro que Chris tinha acabado de chegar [à cidade] e estava um pouco cansado e sua voz não estava cem por cento, mas por volta da quarta ou quinta música engrenou, e então foi, tipo, muito incrível – uma voz linda, clara e forte e, na minha opinião, particularmente emotiva”, disse Kim Thayil mais tarde à Billboard. Em certo momento, a guitarra de Chris desafina e ele tem de deixar o palco para pegar outra, mas, fora esse percalço, foi uma apresentação padrão do Soundgarden. Chris sorriu entre as músicas, contou histórias sobre a gênese de algumas, como “Mailman”, e aplaudiu o público por sua energia turbulenta.“Me sinto mal pela próxima cidade”, brincou ele.
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O set principal termina com “Jesus Christ Pose”. Após alguns momentos de intensa escuridão, o Soundgarden reaparece sob aplausos entusiasmados e se lança na frenética “Rusty Cage”. E então, assim como todas as outras noites da turnê, assim como fez centenas de vezes em casas como esta, Matt Cameron puxa a batida pesada de “Slaves & Bulldozers”. Momentos depois, Chris está gritando até o limite de seus pulmões, enquanto uma Gibson Les Paul sunburst balança em torno de seus quadris. Kim Thayil entra no solo psicodélico da música com furioso entusiasmo, enquanto Ben Shepherd martela o riff central em seu baixo. Perto do final, durante a jam, Chris interpola alguns versos de “In My Time of Dying”, canção gospel famosa na versão do Led Zeppelin. “And I promise”, proclama ele. “In my time of dying, I ain’t gonna cry and I ain’t gonna moan/All I need for you to do is drag my body home”. Luzes estroboscópicas verdes e brancas dançam em torno das cabeças da plateia, enquanto a banda conduz a música para um desfecho estupidificante.
“Detroit! Obrigado! Nos veremos em breve!”, promete Chris sobre a densa cacofonia do Soundgarden. Em seguida, ele tira sua Les Paul, caminha até seu amplificador, agacha-se e começa a extrair lamentos em forma de microfonia dos alto-falantes. Ele fica lá, agachado, enquanto o barulho passa por seus cabelos encaracolados por pouco menos de um minuto, antes de sumir de vista.
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Os ouvidos da multidão ainda estão zumbindo quando, por volta das 23h, Chris entra em um carro com seu guarda-costas, Martin Kirsten, e, com escolta policial, dirige menos de um quilômetro em direção ao hotel MGM Grand. O resto da banda embarca em um ônibus e segue em direção à cidade seguinte.Assim que Chris chega ao hotel, dá alguns autógrafos antes de se dirigir ao quarto 1136. Kirsten acompanhou Chris até seu quarto e o ajudou a consertar seu computador. Depois lhe deu alguns remédios para dormir e ajudá-lo a relaxar e foi para seu quarto, a duas portas de distância no corredor. Pouco depois da meia-noite, Kirsten recebeu um telefonema de Vicky Cornell.“Ela estava nervosa, porque ele não atendia o telefone”, disse o guarda-costas à polícia.“Ela me disse pra ir até o quarto e ver se estava tudo bem”. De acordo com Vicky, que falou com a revista People semanas depois, Chris a acordou ligando e desligando as luzes de sua casa remotamente. Ela ficou alarmada e ligou para ele. “Percebi que ele estava embolando as palavras; estava diferente”, disse ela.“Eu falei: ‘Você precisa me dizer o que tomou’, e ele ficou puto”. A situação era terrível. Depois de Vicky entrar em contato com Kirsten, o guarda-costas saiu correndo pelo corredor. Ele tinha uma cópia da chave do quarto de Chris, mas a porta estava trancada por dentro com uma trava interna. Ele correu de volta para seu quarto e chamou os seguranças, pedindo-lhes para abrirem a porta, mas disseram que não, porque não era seu quarto. Kirsten atualizou Vicky, e ela disse para ele arrombar a porta, o que fez prontamente. Quando ele entrou no quarto, Chris não estava em lugar nenhum, e a porta do quarto de dormir estava trancada. Mais uma vez, Kirsten ligou para os funcionários do hotel, pedindo ajuda dos seguranças para abrirem a porta. Novamente disseram que não. Kirsten lhes disse que estava prestes a derrubar a outra porta e pediu que a operadora chamasse uma ambulância. Após uns seis ou sete chutes bem dados, Kirsten conseguiu acessar o quarto de dormir. Ele entrou e percebeu que a porta do banheiro estava entreaberta.Tudo que conseguia ver era um par de pés. Olhando mais fundo na sala, Kirsten viu que Chris havia amarrado uma faixa vermelha para exercícios em volta do pescoço. A outra extremidade estava presa com um mosquetão na parte superior da porta do banheiro.
Kirsten desamarrou a faixa. Chris não estava respirando. Imediatamente o guarda-costas começou a realizar a RCP. Por volta de 1h da manhã, os paramédicos finalmente chegaram e iniciaram os protocolos de sal- vamento. Por meia hora tentaram reanimar Chris, mas sem sucesso. À 1h30, o médico no local declarou o óbito.
Chris Cornell estava morto. Ele tinha 52 anos.
Uma autópsia foi concluída pelo médico legista do condado de Wayne, que encontrou várias substâncias no organismo de Chris, incluindo butalbital, um barbitúrico, um descongestionante chamado pseudoefedrina, bem como seu metabólito não pseudoefedrina, cafeína e naloxona, um antiopioide utilizado por profissionais médicos em situações de overdose. Eles também detectaram a presença de 41 ng/ ml de lorazepam, um ansiolítico. Com base nas circunstâncias acerca da morte e do que foi encontrado na autópsia, o legista confirmou que “as substâncias encontradas nele não contribuíram para a morte”.
Vicky Cornell chamou o laudo de “completamente enganoso”, dizendo ao Detroit News: “Perdi meu marido. Meus filhos perderam o pai. Estamos sofrendo muito e ainda temos que lidar com esse monte de gente atrás de nós. Se o laudo da autópsia fosse completo, acredito que parte disso poderia estar sendo evitada”. “Meu irmão doava livremente suas habilidades e isso nunca foi uma luta”, escreveu Peter Cornell no Facebook.“Ele se manteve fora da saturação da celebridade de uma forma muito humilde. O poder, a fúria e a paixão de meu irmão pela música sempre foram genuínos, originais e legítimos. Ele era um cara poderoso, sensível, frágil, bravo, místico que existirá para sempre no seu trabalho. E ele fez isso por TODOS nós. Dando-o. Deixando no palco ou nos discos que o manterão imortal”.
Tom Morello manifestou seu amor e seu respeito por Chris no Instagram. “Estou devastado e profundamente triste que você tenha partido, meu querido amigo, mas seu rock desenfreado e poderoso com melodias delicadas e soturnas e a memória do seu sorriso estarão conosco para sempre”, escreveu o guitarrista. Mais tarde, ele escreveu um poema que compartilhou com a Rolling Stone no qual o chama de “um revelador de visões, você é o passageiro, você é uma cicatriz que nunca some/Você é crepúsculo e o brilho de uma estrela e escuridão”.
Elton John prestou sua homenagem online.Assim como Courtney Love, Perry Farrell, Slash, Joe Perry, Robbie Robertson, Lin-Manuel Miranda, Paul Stanley, Sheryl Crow, Daniel Craig, Alice Cooper, St. Vincent, Chuck D e Jimmy Page, que resumiu os sentimentos da maioria nos termos mais simples:“Incrivelmente talentoso. Incrivelmente jovem. Sua falta será incrivelmente sentida”. Em sua cidade natal, Seattle, a estação de rádio local KEXP tocou músicas de Chris durante todo o dia. O corpo de Chris Cornell foi cremado em uma cerimônia privada, em 23 de maio, em Los Angeles. Sua esposa,Vicky, estava lá. Também estavam presentes seu irmão Peter, o cantor J. D. King e Linda Ramone, viúva de Johnny Ramone. O Hollywood Forever, a menos de um quilômetro de distância do Cello Studio, onde gravou o primeiro álbum do Audioslave, foi escolhido como seu local de descanso final. Sua lápide foi posicionada a poucos metros da de Johnny Ramone, em um local tranquilo com vista para o lago repleto de cisnes do cemitério.
O funeral aconteceu numa sexta-feira à tarde. O céu tipicamente ensolarado de Los Angeles ficou encoberto por nuvens cinzentas enquanto amigos e familiares de Chris se reuniam para se despedir. Em algum lugar próximo, uma pessoa modificou uma placa que dizia “Garden of Legends” para “SOUND Garden of Legends”.
O produtor de cinema Eric Esrailian, o ator Josh Brolin,Tom Morello, Jeff Ament, Kim Thayil e Matt Cameron, que chamou Chris de irmão e alma gêmea artística, fizeram os elogios.Talvez o momento mais comovente tenha ocorrido quando Chester Bennington, acompanhado por seu colega de banda Brad Delson, cantou uma angustiante versão da música que o amigo de Chris, Jeff Buckley, havia tornado famosa:“Hallelujah”. Bennington tirou a própria vida apenas alguns meses depois, no dia 20 de julho, data que marcaria o aniversário de 53 anos de Chris.
Enquanto os enlutados saíam do funeral, os acordes de “All Night Thing”, que encerra Temple of the Dog, encheram o ar. Lá pelas 15h, o público foi autorizado a prestar suas homenagens. Um de cada vez, eles tocaram a lápide preta brilhante com o nome de Chris. Um a um, eles estenderam a mão para tocar as letras entalhadas na placa permanente.
VOICE OF OUR GENERATION AND AN ARTIST FOR ALL TIME
CHRIS CORNELL
1964-2017
BELOVED HUSBAND AND FATHER
Há muito tempo, quase uma vida antes desse dia sombrio, muito antes de Audioslave, Temple of the Dog e Soundgarden; muito antes de se tornar o Deus do Rock e o Rei do Sexo; muito antes dos prêmios Grammy, das capas de revistas e dos shows esgotados; muito antes de trocar cumprimentos com presidentes e membros da realeza, Chris Cornell era um garoto de 19 anos, alto, com cara de bebê, voltando do trabalho para casa em seu velho Ford Galaxie verde. Apenas mais um zé-ninguém de uma região amplamente ignorada do país; um evasor do ensino médio para quem uma vida de trabalhos braçais parecia predeterminada.
Foi uma noite como muitas outras no Ray’s Boathouse; outra noite de pratos sujos e tripas de peixe. Mas, enquanto Chris dirigia de volta para casa, um momento de clareza caiu sobre ele como a garoa de Seattle. “Me dei conta de que não havia garantia de que eu como músico ficaria rico, mas tudo bem”, lembra-se de ter pensado. Naquela noite, enquanto navegava pela noite escura do Noroeste do Pacífico, ele fez uma promessa para si mesmo: “Independentemente do que acontecesse em termos de sucesso, eu faria música até o dia que eu viesse a morrer”.
Por causa da maneira trágica como a sua vida terminou, as pessoas ficam inclinadas a ver sua história como uma tragédia. Que equívoco. Chris Cornell a vivenciou ao máximo. Ele superou barreiras aparentemente intransponíveis na busca de um sonho que parecia grande demais para ser compreendido. Ele usou as ferramentas que tinha à disposição – sua voz única, seu violão e sua imaginação – para criar músicas que definiram uma era a que muitos recorreram inúmeras vezes em momentos de tristeza, raiva, alegria, angústia, medo, dúvida e paixão. Ele elevou os corações e mentes de inúmeras pessoas de todas as esferas da vida em quase todos os cantos do planeta com sua arte única e incomparável. Ele fez o que amava e, ao longo do caminho, criou um legado musical que perdurará por gerações.
Chris Cornell manteve sua promessa.
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