Trocando as marchinhas brasileiras pelas guitarras latinas, Esteban Tavares conta como foi o festival cordobês que reuniu 100 mil pessoas e mais de 100 bandas no último fim de semana
Redação Publicado em 24/02/2023, às 10h57
Foi no último sábado, 18, enquanto o Brasil se unia em um aguardado grito de Carnaval, que, do outro lado da fronteira, para lá dos rios Paraná e Uruguai, a província de Córdoba, na Argentina, emitiu outro grito: o do Cosquín Rock. Um dos principais festivais do continente, com mais de 20 anos de história, o Cosquín reuniu em 2023 mais de 100 mil pessoas na Villa Carlos Paz, para conferir mais de 100 bandas em dois dias de celebração latina. Por lá, distante das marchinhas brasileiras, quem conferiu a programação em primeira pessoa foi o músico Esteban Tavares, que descreveu o relato e a excitação de um dos festivais mais interessantes do continente e do mundo. Confira abaixo:
Direto de Carlos Paz, Argentina, para Rolling Stone Brasil, Esteban Tavares.
Saio de uma São Paulo chuvosa rumo a Córdoba, capital do estado de mesmo nome, na Argentina. Três horas de voo depois, me encontro na cidade mais boêmia do país. Acompanhado de dois amigos cordobeses, pegamos o carro e vamos à Villa Carlos Paz, na serra, destino de férias popular entre os locais. Carlos Paz é uma cidade charmosa, com mais de 50 teatros, onde os atores vão apresentar seus espetáculos na temporada. Quase uma Las Vegas latina, mas sem jogos e com um ambiente muito familiar. De lá partimos para o aeroporto agrícola de Santa Maria de Punilla, popularmente conhecido como Cosquín Rock. Em 2023, o Cosquín anunciou 113 bandas nos seus seis palcos. É surreal pensar que um país de 40 milhões de habitantes pode levar tantas bandas locais e tanta gente a um aeroporto perdido, no meio do nada. Já na chegada, me deparo com bandeiras de toda a América Latina, mostrando que o hype não é só entre os nativos. Os ingressos estavam esgotados um mês antes do festival, o que me deixava com uma incerteza do que esperar, visto que já tinha visitado a edição 2022.
Assim que chego, me deparo com meu primeiro concerto: no palco Montaña, Usted Señalemelo desfila hits. O indie na Argentina é enorme, o público do estilo não tem idade. Adolescentes, pais e filhos, avós: todos admirávamos Juan Saieg cantar a plenos pulmões as músicas que fazem parte da nova onda argentina. Um show curto e poderoso que, apesar do frio, me tirou as primeiras gotas de suor. Mas eu não estava lá por eles, eu estava esperando o maior fenômeno da música argentina dos últimos anos, Mateo Sujatovich, o Conociendo Rusia.
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CR é, de longe, o novo Charly, o novo Luis Alberto Spinetta, o novo Fito Paez. Em um show recheado de hits que alcançaram o primeiro lugar nas rádios e serviços de streaming, Ruso (como é carinhosamente chamado) entregou tudo. Aqui começa uma aventura que se chama “público argentino”. É como uma espécie de torcida organizada. Bandeiras balançavam por todos os lados e se misturavam às vozes de, nessa hora do dia, 60 mil pessoas. Mateo é impecável, a banda é impecável. Meus amigos Guille Salort (bateria) e Nicolás Btesh (guitarra) estavam no ponto. Eu estava presenciando o Elvis argentino. Um concerto impecável, que lava a alma, um carinho aos ouvidos. Um show certeiro, onde o melhor de cada disco estava distribuído em uma setlist de uma hora. O frio chegava rápido enquanto o sol caía, chegando à temperatura de 8 °C, mas nada que impedisse o público de se manter quente. Na verdade, o público manteve o calor do lugar. A pista de pouso se tornava cada vez mais cheia enquanto esperávamos o fenômeno do trap argentino, Trueno. Um garoto de, no máximo, 24 anos [n.e.: 20 anos, completos em março de 2022]. Trueno acaba de lançar uma música com os brasileiros do Planet Hemp, tentando mais uma vez chegar aos ouvidos dos latinos que falam português. Um espetáculo muito bem produzido, com músicos incríveis, que flerta trap com rock. Embora não conhecesse a maioria das músicas, fiquei ali parado, admirando o garoto que entregou tudo, cercado por uma imensidão de fanáticos. O Trueno está apenas começando e não me parece que vai frear por aqui. Acredito que será um hit nos países de língua espanhola em poucos meses, pois tem raça. Como disse anteriormente, cada show é uma partida de futebol, tanto da parte do público quanto dos músicos.
Finalizada a apresentação, corremos para o palco norte, para finalizarmos nossa experiência no primeiro dia. Lá estavam Divididos, uma banda experiente, criada a partir do racha entre integrantes da importante banda Sumo, da qual saíram Las Pelotas e Divididos. A banda é relativamente antiga, com seus líderes na faixa dos 60 anos, cheios de equipamentos vintage e com um desfile enorme de guitarras e hits. Ricardo Mollo (guitarra e voz) e Diego Arnedo passam por cima da idade como dois adolescentes, aproveitando todo momento do show como se fossem seus próprios fãs. Nessa hora, já eram 105 mil pessoas no aeródromo de Santa Maria. A onda de impacto era imensa. Os Divididos não estão muito preocupados com set list, espetáculo ou algo do gênero. São amigos que fazem um ensaio aberto e, mesmo assim, tomam toda a atenção para eles. Décadas de hit atrás de hit. Um show de rock de sexagenários para um público de todas as idades.
Foram cinco shows em uma noite. Parece pouco, mas andar de um palco a outro acabou esgotando as pernas deste que vos escreve. Tremenda noite, tremendo festival. Em meio a esportes radicais, parques de alimentação e zonas de descanso e hidratação, me despedi do dia 18 feliz, esperando ansiosamente pelo dia seguinte.
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Saímos mais cedo em direção ao festival, pois não podia perder uma das atrações internacionais, ou simplesmente a maior banda espanhola da atualidade: Vetusta Morla. Ainda não tão conhecida na Argentina, o Vetusta é o hit do momento no outro lado do oceano.
O show estava marcado para às 17h e, ao contrário do dia anterior, o calor tomava conta do Cosquín. Parece que estávamos em estações diferentes. Com 27 °C e um lindo dia, a banda liderada por Pucho fez um apanhado da carreira e entregou um lindo espetáculo. Problemas técnicos à parte, se movimentavam como se estivessem tocando em Madrid, onde lotam estádios (sim, a média de público na cidade natal é de 55 mil pessoas) e, mesmo com uma certa desconfiança dos argentinos, deram sangue. Um show memorável, na primeira aparição da banda neste grande festival.
O clima então era de espera pelo dono de tudo: Fito Paez. O senhor Paez sempre toca no crepúsculo, quando o sol se esconde entre as montanhas da serra. O que dizer de Fito Paez? Detentor do disco mais vendido da história do rock latino, ganhador de diversos Grammys (inclusive o americano), Fito estava em casa e mandava em todos. Às 18h35 entra em cena e leva 90% do público ao palco Sul. É impressionante a devoção que o mesmo tem por esse lados. Em um show repleto de hits e comemorando 30 anos do álbum El amor después del amor, Fito foi impecável. Acompanhado de sua mega banda, tomou conta de tudo e de todos, como um rei que aparece para discursar aos súbitos. Acredito que 80 mil pessoas já estavam por lá nesse momento, criando uma espécie de “revolução da felicidade”, entoando cantos do fundo da garganta e despejando lágrimas que se confundem com a areia levantada pelo que chamam de “pogo”. Que show Fito entregou! Deve ser a 20ª vez que lhe assisto e, mesmo assim, tenho as emoções mais diversas ao ver essa entidade. Fechando com o mega hit “Mariposa Tecnicolor”, Fito foi um alento à alma, ao coração e aos pulmões. Sua majestade agraciada por uma enorme explosão de carinho.
Enquanto Paez tocava a última música, comecei a me deslocar para o palco Montaña, onde me esperavam os geniais artistas do Bandalos Chinos. “Che, ¡que banda!”. Bandalos Chinos é a juventude indie em todo seu esplendor. Goyo Degano é um artista que sinto falta no Brasil. Cantor, escritor, dançarino, stage man. Bah, que concerto dos Chinos. Nessa hora me retirei um pouco do posto de repórter e me coloquei aos cuidados da banda. Me deixei levar por uma tormenta de hits, levei as mãos ao céu e me permiti aproveitar tudo o que estava passando em frente aos meus olhos. Que anoitecer Goyo e seus amigos nos entregaram. Saem da edição 2023 como um dos melhores shows do festival.
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Quando mal tinha me recuperado daquele show histórico, comecei a correr para o palco norte onde o “dono” do festival, Ciro, começaria sua apresentação. Ciro era vocalista de uma das grandes bandas dos anos 90, o Los Piojos, e em sua carreira solo, já se apresentava pela 21ª vez, em 23 edições do mesmo. Hit atrás de hit, misturados a mais de 200 bandeiras na pista, Ciro realmente merece o posto de “proprietário do Cosquín”. Na pista, 105 mil pessoas cantavam cada sílaba que saía de sua boca. Levou os filhos para cantar, levou os amigos e aqueceu os corações argentinos. Admito que nessa hora tive um pouco de receio, porque o público parecia estar em um show de trash metal, pulando, empurrando para todos os lados, fazendo uma onda de choque enorme, que assusta quem assiste pela primeira vez. Ciro é impecável e sabe conduzir multidões como ninguém.
Para fechar a noite no modo “light”, fui ao palco Boomerang, assistir ao talentosíssimo Lisandro Aristmuño, um artista solo que mistura pop, rock e indie com a cultura popular dos pampas e andinos. Com uma banda enorme, Lisandro tocou tranquilo, para um público tranquilo, que precisava “descansar” os ouvidos e os joelhos. Com talento ímpar, munido de instrumentos de orquestra, Lisandro fazia minha despedida mais tranquila. Um showzaço.
A impressão que Cosquín me traz é de alegria e esperança. Um país sustentável musicalmente, cheio de amor pra dar e receber. Dessa parte, já lhes digo: em todo fevereiro estarei aqui. Presenciar isso é uma coisa necessária a todo amante da música. Me despeço com uma certa tristeza, mas com a certeza de que estaremos em 2024. E termino como meus hermanos: "¡Aguante, Cosquín Rock!”, foi um prazer. Da minha parte, já tenho saudades.
Um agradecimento especial ao meu irmão Eduardo Moreno por me aguentar e me proporcionar, mais uma vez, essa experiência.
*Agradecimento especial a Rafael Dai Prá, que cedeu as fotos para este artigo: @rafaeldaipra
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