- Caetano Veloso (Foto: Reprodução)

Em 1969, Caetano Veloso transformava tormento da ditadura em obra-prima de beleza singela

Conhecido como "disco da assinatura," Caetano Veloso (1969) contempla fase melancólica do "líder de uma juventude em busca de novos caminhos"

Marcelo Ferla Publicado em 01/02/2023, às 17h18

‘‘Eu quero ir minha gente / eu não sou daqui / eu não tenho nada / Quero ver Irene rir / Quero ver Irene dar sua risada.”

Os versos simples e retos de “Irene”, repetidos oito vezes em uma canção de 3 minutos e 48 segundos, não têm vocação para roteiro de cinema, nem imagens pictóricas de um país colorido. Caetano Veloso tinha perdido o comando do avião supersônico tropicalista para a ditadura militar, que o identificou como um subversivo. Ficou dois meses preso em quartéis militares do Rio de Janeiro, de dezembro de 1968 a fevereiro de 1969, primeiro trancafiado na solitária, depois em uma cela coletiva em que ouvia os gritos de torturados, com os cabelos raspados e sem o direito de tocar violão ou escutar rádio. Ao ser liberado, enfrentou cinco meses de prisão domiciliar, em Salvador.

Caetano Veloso (1969)

Quem conseguiria fazer deste tormento uma obra-prima de beleza singela? Caetano fez, auxiliado pelo produtor Rogério Duprat. A única canção que escreveu na prisão, nos últimos dias de confinamento, ele dedicou à irmã. “Irene”, porém, foi suficiente para sintetizar o sentimento em preto-e-branco de uma alma machucada que havia pouco explodia em cores vivas e desbundava pelo país, invocando a tradição e clamando pelo novo. A maioria das demais onze faixas reflete o estado depressivo do artista apontado como “o líder de uma juventude que busca novos caminhos”, mas tinha cerceado seu direito de ir e vir, de pensar e se manifestar.

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Irene” é a faixa de abertura do LP com a capa que emula o álbum branco dos Beatles, que Caetano pensou em chamar de Boleros & Sifilização, acabou novamente batizado Caetano Veloso e ficou conhecido como o “disco da assinatura” – e que tem também a caneta de André Midani e Manoel Barenbein, o big boss e o produtor da gravadora Philips. Foram eles que viabilizaram a produção da obra dentro das condições possíveis, transferindo técnicos e equipamentos para Salvador, onde também gravaram o novo LP de Gilberto Gil, o cara-metade tropicalista de Caetano que enfrentou o mesmo calvário de arbitrariedades do AI-5.

Para contornar as precariedades de um processo improvisado de gravação, o produtor Rogério Duprat sugeriu que Caetano gravasse apenas a voz, ao som do violão tocado por Gil, e do metrônomo. Com o material em mãos, ele voltou para São Paulo onde escreveu arranjos brilhantes e arregimentou um timaço para completar o serviço: Lanny Gordin nas guitarras, Sérgio Barroso no baixo, Wilson das Neves na bateria, Chiquinho de Moraes nos teclados e Tião Motorista na percussão.

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Recorrendo à imensidão do mar para evocar a liberdade perdida e a vida tempestuosa, Caetano destilou melancolia na bela “The Empty Boat”, cantada em inglês, foi buscar no folclore brasileiro a cantiga de roda “Marinheiro Só” (dos versos que enfatizam o recado de “Irene”, “Eu não sou daqui / eu não tenho amor”) e recorreu à mitologia grega no fado “Os Argonautas”, todas registradas no lado A, que ainda tem o seminal frevo baiano “Atrás do Trio Elétrico”, lançada em compacto em 1968 e sucesso do Carnaval de 1969, alegria destoante da obra. O lado B traz a tristeza de “Carolina”, de Chico Buarque, uma interpretação visceral para o tango “Cambalache” e a guitarra distorcida da superbacana “Não Identificado”, pérola sonora de um álbum profundo e elegante, que revelou a maturidade de Caetano, apesar dos pesares.

Destaques: "Irene", "The Empty Boat", "Não identificado".


Caetano Veloso (1969) é um dos discos resenhados no Especial 80 Anos de Música, uma edição exclusiva da Rolling Stone Brasil dedicada à Geração 1942, que reúne nomes essenciais da MPB, como o próprio Caetano Veloso, Milton Nascimento, Paulinho da Viola e Gilberto Gil, além de panorama global dos nascidos neste ano. O especial impresso já está nas bancas e nas bancas digitais. Clique aqui para saber mais.

Ouça Caetano Veloso (1969)

 

 

música MPB Caetano Veloso Rolling Stone 80

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