Bicho foi tratado como “um convite à alienação” e “exemplo da dominação estrangeira” por um país amordaçado
Marcelo Ferla Publicado em 08/02/2023, às 15h28 - Atualizado em 10/02/2023, às 10h19
Se a rigidez da ditadura arrefecia lentamente em 1977, seu estrago estava consolidado em todos os âmbitos da sociedade. Só mesmo a falta de perspectiva global de um país amordaçado seria capaz de tratar Bicho, um LP moderno, ecumênico e celebratório, como “um convite à alienação” e “exemplo da dominação estrangeira”, como fizeram alas da esquerda e boa parte da crítica musical – que cobravam de Caetano Veloso o mesmo engajamento de Gilberto Gil e Chico Buarque. E aqui, o baiano que resolveu exorcizar seus fantasmas dançando, novamente remete ao Bob Dylan que decepcionou os fãs quando eletrificou seu folk.
Bicho era mesmo um convite para a descontração, mas a tal dominação estrangeira se refere a músicas dançantes de origens afro (como a disco music, maior vilã desta história) – nada de novo no front caetânico, que também gravou “Olha o Menino”, de Jorge Ben. Um pouco mais de boa vontade apontaria o impacto que o baiano sentiu com a pobreza na recente visita à Nigéria como o propulsor do disco. O mesmo Caetano que canta sobre a mulher empoderada que “gostava de política em 1966 / mas agora dança no Frenetic Dancing’ Days” em “Tigresa”, e foca no hedonismo dançante em “Odara”, enfatiza que “gente é pra brilhar / não pra morrer de fome” em “Gente”.
Caetano Veloso tinha 35 anos quando resolveu apontar suas antenas para as pistas de dança do planeta no auge da disco music, mas também incluiu juju music no repertório, uma novidade para ouvidos brasileiros. “Two Nayra Fifty Kobo” (“No meu coração da mata gritou Pelé, Pelé / Faz força com o pé na África / O certo é ser gente linda e dançar, dançar, dançar / O certo é fazendo música”) é uma das canções subestimadas de sua obra. Caetano contou que ela surgiu inspirada em “um motorista de ônibus nigeriano que colocava juju music no toca-fitas e dançava horas seguidas sobre o asfalto da rua deserta, transmitindo doçura e melancolia”.
Doçura, por sinal, é o principal ingrediente de “Leãozinho”, composta para o baixista Dadi, do grupo A Cor do Som. Bicho também tem “Um Índio”, um reggae de versos apocalípticos como “E aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio”. É tão óbvio quanto a ideia de que dançar é bom – pra ficar odara.
DESTAQUES: “Two Nayra Fifty Kobo”, “Tigresa”, “Gente”.
Bicho (1977) é um dos discos resenhados no Especial 80 Anos de Música, uma edição exclusiva da Rolling Stone Brasil dedicada à Geração 1942, que reúne nomes essenciais da MPB, como o próprio Caetano Veloso, Milton Nascimento, Paulinho da Viola e Gilberto Gil, além de panorama global dos nascidos neste ano. O especial impresso já está nas bancas e nas bancas digitais. Clique aqui para saber mais.
Ouça Bicho:
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