Após ganhar destaque com Pajubá (2017), a cantora Linn da Quebrada foge das armadilhas do mercado com o disco Trava Línguas
Julia Harumi Morita Publicado em 14/08/2021, às 12h00 - Atualizado em 18/01/2022, às 15h31
Linn da Quebrada sentiu a necessidade de criar Trava Línguas (2021) pelo adoecimento do corpo. Enquanto olhava para o que acreditava ser o próprio reflexo, a cantora percebeu estar diante de uma projeção realista, na qual não se reconhecia mais.
Era uma imagem sustentada por estruturas sutis e repetitivas de um mercado de trabalho articulado para não adoecer apenas Linn, mas o coletivo categorizado como minoria, seja preta ou LGBTQ+.
"Foi importante para esse 'start' a necessidade de constante explicação de si mesma e não da obra. Uma explicação de si que justifique a minha presença naquele espaço," explicou Linn durante uma chamada de vídeo com a Rolling Stone Brasil.
Além disso, a apropriação da representatividade foi outro sinal de alerta. "Trazem apenas uma de nós para representar toda a representatividade, né? Em uma disputa na qual não circulamos com o todo, disputamos uma com as outras para estar ali," aponta a cantora, atriz e compositora.
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Nessa complexa arquitetura, as escolhidas são sobrecarregadas com pautas, demandas e exposições redundantes, as quais mercantilizam, distraem e emburrecem corpos e mentes fora da "normalidade" cisgênera heteronormativa.
"Se a gente vai marcar uma música LGBT, a qual está falando da minha identidade [e] do meu corpo, então exijo que seja marcada a norma também. Se há uma música LGBT, vai ter que haver uma música cis heterossexual [...] o que está sendo circulado não é a minha obra, mas sou eu, meu corpo, e isso também é o que causa nosso esgotamento diante dessa circulação mercantil."
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Todos esses questionamentos são retratados em "I Míssil", terceira faixa de Trava Línguas. "Eu mudo a rima calada (é na força da farsa) /Sem rumo eu digo muito, sem dizer mais quase nada /É quase nada, é quase nada (é na força da farsa) /I míssil, I míssil, I míssil, em sua direção /I míssil, I míssil, em sua direção /Divagar mais, divulgar menos /Mais ou menos vulgar, essa é a sensação," canta Linn.
Se a expectativa era permanecer no território explícito, agitado, de certa forma, particular de Pajubá, Linn subverteu a lógica e traçou uma rota de fuga em direção a Trava Línguas. "Quando fui entendendo isso, falei: O que posso fazer com isso, agora? Como posso desfazer aquilo que fizeram de mim? O que é possível fazer com aquilo que fizeram de mim? Daí eu fiz esse disco."
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Em uma capoeira mental, Linn "suavizou" as letras e, ao lado da produtora Badsista e da percussionista Dominique Vieira, construiu melodias a partir de sonoridades familiares - o carimbó, forró, brega, funk - para ampliar o campo de comunicação do álbum, porém, não deixou de provocar a mente dos ouvintes com imagens e mensagens.
"Grande parte das pessoas que ouvem [Trava Línguas], talvez, por não ter palavrão, tenham uma sensação de que a linguagem se amacia. Mas o que estou construindo é uma linguagem que desliza e escapa."
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Linn também disse: "Na estrutura musical, coloco o mercado para pensar na linguagem [...] senti que é necessário atraí-lo através das letras e das melodias, propondo uma armadilha, uma arapuca, na qual, quando o mercado tivesse atraído até o ponto, eu pudesse afrontá-lo de outra maneira."
A multiartista coloca como exemplo "Medrosa - ode à Stella do Patrocínio," uma bossa nova com trompetes graciosos e trechos dos falatórios da empregada doméstica internada por quase três décadas na Colônia Juliano Moreira.
"Trazer Stella foi um dilema ético para mim. Por que? Como posso convocar Stella e não fazer o mesmo que a branquitude fez e faz com ela? Como posso me aproximar de Stella sem me apropriar de forma extrativista, de forma colonial daquilo que ela produz? Como posso continuar com Stella para incorporá-la e ser canal dessa discussão também?"
Para Linn, a violência sofrida por Stella se assemelha diametralmente a dela, apesar de estarem em "lugares muito diferentes." A poeta "convoca" a cantora a pensar sobre a própria vulnerabilidade, um tema presente de forma particular nos dois discos dela.
"Pajubá, para mim, opera através da fragilidade, transformando a fragilidade em potência, fazendo da minha pele preta o meu manto de coragem, convocando a 'enviadescer' em via de ser aquilo que somos e queremos ser. Agora, Trava Línguas fala do medo, da esquiva, do resgate. Ele se pergunta: Onde? Quem sou eu? Quem estou sendo dentro de tudo isso?"
As rotas de fuga se transformaram em rotas de buscas corpóreas, artísticas e ancestrais. A linguagem de Trava Línguas aproximou Linn da mãe, a qual acompanhou todo o processo de criação do disco.
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"Ela veio cuidar de mim depois que coloquei minhas próteses e ficou até se vacinar, por isso, fui compartilhando [o álbum] com ela. Enquanto ia para o estúdio, gravava e mandava a música para ela ouvir. Ela foi decorando as músicas, vendo as várias versões das faixas, dizendo que agora o disco teria sucesso."
Linn continuou: "Nunca subestimei minha mãe no sentido de conversar com sobre o mercado [e] a musicalidade para entender quem eu era, de onde a gente veio, de onde ela veio, o que trouxe ela para cá. Tudo isso fez com que ela ficasse mais próxima do álbum."
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A partir disso, Linn se permitiu divagar pela cidade natal da mãe, Viçosa (AL), reconstruindo o caminho dos familiares e dos mortos que passaram por aquelas terras, entre eles, Zumbi dos Palmares.
"Preciso saber quem sou. Quando eu falo isso, não estou falando só de mim, estou falando da criação de um imaginário coletivo de Brasil, constituído pela violência e apagamento étnico-racial. Estou falando de voltar e me deparar com a impossibilidade de saber quem sou."
No final, "a música é apenas uma desculpa." Em seus desdobramentos, Linn descobre novas formas de potência, conversas com o coletivo, outras imagens de si mesma e se prepara para futuros itinerários.
"A música é só uma desculpa. Quando lanço um álbum, muita coisa já foi vivida. Quando há o lancamento do disco, há muita coisa a ser vivida ainda, nos shows e tudo mais. Venho entendendo o álbum depois que eu lancei ele."
Linn completou: "No processo, entendi o que precisava ser enfrentado. Com o lançamento, estou enfrentando essas coisas e me botando mais uma vez em diálogo não só com os meios de comunicação, como com o público. Estou entendendo o que as pessoas fazem com aquilo que eu fiz. Um álbum se torna também um desdobramento a partir do que é feito."
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