No lançamento de Só Vilão, Aqui Não Tem Herói (2024), Kyan mostra que tem muita consciência daquilo que tem para falar no rap
Felipe Grutter (@felipegrutter) Publicado em 04/10/2024, às 07h00
“Seja você herói da sua história. Vilão da história que deram para você. O vilão é apenas a vítima cuja história não foi contada. O vilão é a vítima cuja história não quis ser contada. Pelo contrário, foi esquecida, apagada. Mas ele tá de pé e tá aqui para contar a própria história. Para inspirar novas histórias. [...] Herói em casa, vilão na rua. Herói de quem me ama. Pesadelo de quem me odeia. O mundo e suas facetas. Eu e as minhas.”
Mais maduro e consciente do que nunca, Kyan segue em uma crescente muito interessante na carreira. No quarto disco de estúdio, intitulado Só Vilão, Aqui Não Tem Herói (2024), Renan Mesquita da Silva mostrou uma nova faceta e não teve medo de arriscar. Ao longo das 11 faixas, ele trouxe um trabalho com intuito de perdurar ao longo dos anos, não algo que terá uma vida útil curta, com impacto apenas nas redes sociais.
Claro, o álbum conta com todo um lance de ostentação e luxúria presentes em diversos trabalhos do rap, mas, aqui, o cantor de 26 anos opta por seguir um caminho mais consciente. Em entrevista à Rolling Stone Brasil, ele explicou como Só Vilão, Aqui Não Tem Herói é um dos trabalhos favoritos da carreira, com referências que passeiam de sonoridade da baixada santista, onde cresceu e morou por anos, até daquilo presente na cena de São Paulo.
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Talvez, aquele jovem de aproximadamente 20 anos, que cantava funk na baixada como Renan MC, não imaginava que se tornaria um dos principais artistas do rap contemporâneo, com diversos sucessos, além de se tornar empreendedor.
A realidade, hoje, é completamente diferente. Antes, Renan gravava as músicas e clipes com ajuda de amigos, que faziam as batidas com a boca na hora, com ele cantando por cima disso, no gogó. Agora, como Kyan, tem toda uma estrutura profissional e ainda uma empresa própria, a EHXIS, que encabeça com a namorada Tasha Okereke, que forma a dupla Tasha & Tracie ao lado da irmã.
Primeiro, Renan conheceu o rap graças à mãe, que infelizmente morreu antes do filho fazer sucesso na cena. Porém, após se mudar para a baixada santista e não morar mais com a progenitora, ele teve muito mais convívio com o funk.
Quando começou a cantar na igreja da avó, Kyan decidiu virar um MC de funk. “Como Renan MC, cantei [funk por] mais ou menos uns seis anos, mas daquele jeito mais amador. Ainda não conhecia o estúdio. Eu era bem novo,” relembrou. “Então só fazia umas letras, mandava palma, mandava o vídeo para a internet. Isso foi um bagulho também que me motivou bastante.”
Tudo mudou quando um amigo o apresentou o trap. Ele não escutava rap há muito tempo, mas voltou a ter contato com o gênero musical ao conhecer o trabalho de Djonga, que tinha grande volume de lançamentos na época.
Aí fiquei: ‘Cara***, rap está a chave de novo! Comecei a escutar Travis Scott e uns bagulhos assim.
Depois disso, Lucas, amigo de longa data e sócio da carreira de Renan, deu ideia dele cantar de maneira mais despojada, sem compromisso, visto que ele já estava desmotivado com o funk. Então, ele mudou a rota, mudou o nome artístico para Kyan e o resto… é história.
Já os motivos para o cantor deixar o funk variam. Na época, ele sentia que não estava encaixado no gênero na forma que deveria estar. Por exemplo, o artista queria abordar temas e estéticas que não casavam com o estilo: “Era um outro tipo de funk.”
“Funk e rap são irmãos gêmeos que nasceram em lugares diferentes, mas a minha motivação com o hip hop foi as causas pelas quais luta, abrange e fala,” disse. “A partir do momento que conheci o trap, consegui fazer essa ligação de experiências com o funk.” Atualmente, Kyan aprende muito com os dois gêneros musicais, basicamente “sou um eterno aluno dos dois.”
Na caminhada no rap e trap, Kyan tem um grande aliado: o DJ e produtor Mu540, que o ajudou a gravar a primeira música como rapper, “Mandrake,” lançada em 2019 nas plataformas digitais. Os dois se conheceram por uma amiga em comum, Cassandra.
No entanto, eles demoraram um pouco para gravar a canção em questão: “nunca tivemos tempo. Parecia que estávamos em outra sintonia.” Felizmente, os dois conseguiram se encontrar em estúdio e inauguraram uma das colaborações mais produtivas e bem-sucedidas do hip hop brasileiro.
Ele é tipo meu sensei. Divido tudo que penso com Mu540, o que preciso melhorar… e ele sempre me mostra vários caminhos possíveis. Nesse momento, temos diversas conversas sobre carreira, o que queremos alcançar e comprar. Conversas maturas. Ele me ajudou muito a ficar centrado no meu propósito e confiar no meu trabalho. Sou muito grato! Ele é minha dupla.
Um dos melhores projetos da carreira de Kyan, Só Vilão, Aqui Não Tem Herói foi viabilizado graças ao sucesso de UM Quebrada Inteligente, disco colaborativo com Mu540, que trouxe recurso para poder financiar. Inclusive, nesta sexta, 4, eles lançaram "Vilão da Mídia," primeiro single da continuação, DOIS Quebrada Inteligente.
Só Vilão, Aqui Não Tem Herói traz perspectivas pessoais de Kyan, principalmente o modo como ele enxerga o mundo, assim como a musicalidade da baixada santista, marcada pelo Miami Bass. O trabalho, mesmo sem caráter comercial, fez muito barulho logo após o lançamento e até alcançou o Top 5 Global do Spotify.
“Daqui a 10 anos, o pessoal vai escutar e conseguir ter a mesma percepção,” afirmou Kyan. “Acredito que é uma busca de valor para mim até em vida. Eu vou ganhar em streamings em mais tempo.” Agora em turnê pela Europa, na qual passa por países como Portugal e Espanha, ele explorará ainda mais horizontes com o disco.
Em muitas obras de ficção, sejam elas filmes, séries, histórias em quadrinhos ou livros, existe um conceito maniqueísta que, muitas vezes, não representam aquilo que é realmente bom ou mau na sociedade. Na vivência de Kyan, seja na zona norte de São Paulo ou baixada santista, muitos desses valores foram inversos.
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“Desde criança, sempre fui um cara que teve muito receio com a polícia. Nunca entendi ao certo qual era o benefício que eles traziam para nós,” comentou à Rolling Stone Brasil. “A primeira vez na qual tive contato com a polícia foi quando eu voltava da escola e acabei brigando com um moleque e saindo na mão com ele.”
“O moleque era bem maior que eu, só que chegou um policial e pensei: ‘Ah, agora o mano está fod***, a polícia vai me defender.' O policial chegou e falou: ‘Neguinho, você está arrumando confusão! Vai para tua casa,’” relembrou. “Naquele momento eu já falei: 'Ixi, mano, fui oprimido duas vezes.’”
A partir deste incidente, Kyan começou a notar uma inversão de valores sobre o que era bem e o que era mal — e isso é abordado em Só Vilão, Aqui Não Tem Herói. Ou seja, o rapper quer que as pessoas entendam que certos problemas vão existir para todas as pessoas.
Lembro que, desde criança, eu julgava muito minha mãe por beber e fumar. Hoje, adulto, entendo questões que ela tinha com ela mesma. Minha mãe foi uma mulher negra que morreu sendo amada por ninguém. Todo homem que passou pela vida dela deixou uma mágoa nela.
Ao lado de Tasha, Kyan fundou EHXIS, conjunto criativo cuja ideia é funcionar como uma espécie de faculdade para artistas independentes, principalmente aqueles que vêm da periferia. Lá, eles ensinam como podem se posicionar, cuidar da própria carreira, entender sobre royalties digitais, acordos com distribuidoras, processos criativos, etc.
“Somos um ambiente onde queremos trazer toda essa educação para o artista, a fim de que eles se desenvolvam como eu e Tasha nos desenvolvemos, e que não dependa de gravadoras ou de terceiras pessoas para a própria arte se movimentar,” explicou. “A partir do momento que você entende minimamente como administrar a sua carreira, já não está mais dependente de ninguém. A sua arte corre por si só.”
Muito consciente da própria arte e do tipo de mensagem que quer passar para quem o admira e escuta, Kyan mostra que está no auge da carreira, com muito estudo e maturidade. Seja no rap, trap ou funk, o artista comprova como ainda tem muito para falar nas próprias músicas.
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